quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Álbum original do ano 2016 - Top 10

Estamos naquela altura do ano. É o tempo dos Tops de tudo e por isso aqui fica o primeiro dos meus, na categoria de Álbum original do ano.

10. The Dear Hunter — "Act V: Hymns with the Devil in Confessional"

Longo e tortuoso foi o caminho que o Rock Progressivo percorreu desde que os King Crimson se aventuraram no "Court Of The Crimson King" em 1969. Já lá vão quase 50 anos, mas o género nunca se livrou do epíteto de música mais uncool do espectro do Rock. De facto, o Prog não é para todos os gostos e se hoje essa asserção é do conhecimento geral, pobres dos rapazes que tentavam impressionar as namoradas com o "Supper's Ready" ("tens mesmo que ouvir isto!"), para ao fim de 24 minutos olharem para o lado e se aperceberem que ela já lá não estava. Com sorte, tinha-se deixado dormir e não era do clorofórmio. Mas divago.
O Prog foi a forma dos meninos com formação clássica e gosto pelo Jazz se expressarem no meio do Rock nos anos 60 e desde então, como tudo o resto, evoluiu. Nos anos 80, com o deslocamento da juventude para o Metal e restantes subgéneros mais pesados, o Prog também se passou a manifestar no Metal Progressivo. Numa altura em que é o Indie que tem a maior amplitude mainstream no Rock, faz todo o sentido que surja uma espécie de "Indie Progressivo". Se conseguirem visualizar (e ouvir) esta amálgama difusa de Indie Rock, Prog, Folk Jazz, voilá, têm "Act V: Hymns with the Devil in Confessional" - o último álbum dos The Dear Hunter. "Act V" é, como o nome sugere, a quinta parte de uma história épica contada em 6 capítulos, aos quais correspondem 6 álbuns.
Como o Prog em geral, "Act V" não é para todos os gostos. Muita coisa se passa ao mesmo tempo e o mais provável é haver segmentos de maior agrado ("The Moon" / Awake") e outros nem tanto ("Mr. Usher"). Globalmente, é uma viagem (haverá maior lugar-comum para descrever um álbum Prog?) e uma audição progressivamente (lá está) enriquecedora. Não se esqueçam, porém, de proceder com cuidado quando mostrarem isto ao vosso mais-que-tudo. Se não fugiu a sete pés, agarrem-se a ela/ele, que é capaz de ser a/o tal.

9. Kaitlyn Aurelia Smith / Suzanne Ciani — "FRKWYS Vol. 13: Sunergy"

Desde que lançou o seu álbum de estreia - e grande obra-prima - "Seven Waves", em 1982, que Suzanne Ciani carrega o chapéu de mestre e pioneira da música electrónica. E com toda a razão. A sua colaboração com Kaitlyn Aurelia Smith (que este ano também lançou o excelente álbum "Ears" em nome próprio) mostra que, chegados a 2016, Suzanne continua sem mostrar medo de explorar territórios novos.
"Sunergy" é um trabalho mais experimental e menos melódico que o referido "Seven Waves", aproximando-se mais da Ambient Music que ouvimos em "Ears" de Kaitlyn. Mas é o cunho de Suzanne que equilibra os pratos da balança e nos entrega um dos mais gratificantes álbuns instrumentais de 2016. Mais seguirão.

8. Agnes Obel — "Citizen Of Glass"

Lembram-se da Enya? Música celta aguada e polida para pessoas que vão ao cinema ver filmes do James Cameron. Recordam-se? Imaginem que a Enya tinha sido possuída pelo Demo e se tinha tornado numa mulher densa, sombria e perturbada. À primeira nota, a música até parece ser semelhante, mas após um minuto, somos levados para uma visão lynchiana de um quarto escuro, uma mesa e uma cadeira de metal, com uma luz meia-fundida a piscar nervosamente. Qual Twisted Enya, "Citizen Of Glass" é um álbum introspectivo e pungente sobre a fragilidade humana e o fatalismo da exposição à sociedade. Um dos álbuns mais surpreendentes e interessantes deste ano.

7. Jóhann Jóhannsson — "Orphée"

Fui parar a Jóhann Jóhannsson por conta de uma notícia que me deixou terrivelmente abalado: a sequela de "Blade Runner" não vai ter a banda sonora de Vangelis e será entregue ao compositor islandês. "Blade Runner" sem Vangelis? Como? Por melhor que seja o filme, é o mesmo que tirar o Jonas ao Mitroglou - fica mais triste e menos eficaz. Em pânico, fui logo ouvir o álbum mais recente de Jóhann e o melhor que posso dizer é que fiquei (um bocadinho mais) descansado. Não porque a música de "Orphée" me recordasse a banda sonora mais-que-perfeita de "Blade Runner" (há até quem diga que é a melhor de sempre; eu, por exemplo), mas pelo menos lembrou-me outras grandes bandas sonoras. "The Drowned World", por exemplo, lembrou-me o tema principal de "Solaris", de outro Johann, esse Bach. 
Baseado na figura mitológica de Orfeu, "Orphée" é cinemático do princípio ao fim e mais um álbum instrumental nesta lista, o que reflecte o tipo de música que mais me atraiu este ano (ou não fosse o álbum que mais ouvi este ano, precisamente, a banda sonora do "Blade Runner").

6. Leonard Cohen — "You Want It Darker"

O primeiro dos álbuns-fúnebres desta lista. 2016 foi um ano madrasto para a música popular, perdemos Prince, Glenn Frey, Leon Russell, Greg Lake, David Bowie (já lá vamos) e Leonard Cohen. Os últimos dois parecem ter preparado a morte da sua cadeira de artista. "I'm ready, my Lord", anuncia Leonard no tema-título "You Want It Darker", uma das mais poderosas canções do ano. Poucos dias depois do lançamento do álbum, Leonard cumpriu a sua profecia.

5. Iggy Pop — "Post Pop Depression"

Uma das boas notícias que 2016 trouxe, logo em Janeiro, foi o anúncio da colaboração entre Iggy Pop e Josh Homme, num álbum que contava com Dean Fertita (também dos Queens Of the Stone Age) e Matt Helders, baterista dos Arctic Monkeys. Parecia uma colaboração escrita nas estrelas, com tudo para dar certo. Mas a verdade é que "Post Pop Depression" não é tão bom como o mundo desejava que fosse. O álbum produziu momentos de absoluto êxtase como "Break Into Your Heart", onde a voz de Iggy e a guitarra de Josh convergem na perfeição, como se tivessem sido feitos um para o outro. Aliás, a guitarra de Josh está tão alta na mistura que mais parece um dueto. "Gardenia" é mais um triunfo deste casamento, mas à medida que o álbum vai avançando, mais dá a sensação que o álbum podia ter sido muito melhor.

4. Kyle Dixon & Michael Stein — "Stranger Things OST, Vol. 1 & Vol. 2"

Kyle Dixon? Quem? Pois, também não sabia. Mas não interessa. O que interessa é que se trata do homem que criou a banda sonora de uma das melhores séries de 2016. "Stranger Things" é um hino à cultura dos anos 80 em toda a linha, mas o melhor da série é a sua banda sonora. Já nem falo da escolha musical mestra da série, que inclui nomes como Vangelis, Tangerine Dream, New Order, Television, Joy Division, The Smiths, The Clash, Moby, enfim, uma verdadeira constelação musical.
A acompanhar estes gigantes, temos uma banda sonora à medida, a fazer lembrar os sintetizadores dos próprios Vangelis e Tangerine Dream e que teve tanto sucesso que já foi lançada em dois volumes. "Kids", "Upside Down" e claro, o tema-título (ainda melhor na reinterpretação de Luke Million) são jóias tão apetitosas que apetecem agarrar, acariciar e estimar e que, à semelhança de outras bandas sonoras (já vos falei no "Blade Runner"?), elevam a música a um estatuto de independência da própria série para a qual foi criada.

3. David Bowie — "★"

O epílogo da obra de um dos mais completos artistas que já pisou o nosso planeta, tão superlativo que em tempos convenceu meio mundo que nem sequer era deste planeta. Até na morte, David Bowie deixou a sua marca artística: na Quinta lança o vídeo de "Lazarus" (onde o vemos no seu leito de morte), na Sexta - dia do seu aniversário - lança o álbum "★" (leia-se "Blackstar") e no Domingo, morre. A morte é o último acto, é parte do espectáculo.
"★" é um álbum denso, de audição difícil, que como todas as obras-primas recompensa audições repetidas. Mostra que David nunca perdeu o foco e puxou os limites até ao fim. "★" é um álbum sobre a vida, a morte e a fina linha que as separa. Mais sobre isso já a seguir.

2. Nick Cave & The Bad Seeds — "Skeleton Tree"

Admito que falo do que não sei (felizmente), mas imagino que pior do que lidar com a dor da própria morte iminente, só mesmo lidar com a dor da morte de um filho. Especialmente quando este ficou com tanto para viver. Materializar essa dor num disco foi a tarefa a que Nick Cave se propôs em "Skeleton Tree", depois de perder o filho de 15 anos numa queda de uma falésia em Brighton, durante uma trip de LSD. Era uma tarefa mastodôntica com tanto de coragem, como de insanidade. Insanidade, pelo que acarreta fazer um álbum sobre a morte de um filho; coragem, por expor desta maneira despida a sua própria desgraça.
"Skeleton Tree" é um álbum esmagador, niilista e desconfortavelmente pessoal. Ainda mais que o anterior número desta lista, é um trabalho de escuta difícil; é um murro no estômago e não é aconselhável ouvi-lo com muita frequência; segurar as lágrimas em "Jesus Alone" é, só por si, um desafio. Mas recompensa pela beleza e sinceridade e porque tem aquilo que, por princípio, eu mais estimo numa obra de arte: consegue mexer comigo e obrigar-me a reavaliar os meus dogmas.

1. Radiohead — "A Moon Shaped Pool"

Nas semanas após o seu lançamento, fiquei trancado dentro de "A Moon Shaped Pool". Com tanta informação a cair diariamente e tanta música para ouvir, não há muitos álbuns que em 2016 mereçam este tipo de honra. Logo a abrir, levamos com o superlativo "Burn The Witch" - o melhor tema dos Radiohead desde "Pyramid Song", ou sei lá, desde "Paranoid Android" - e chegam-me evocações de "Tomcats Screaming Outside" de Roland Orzabal. Tudo o que me lembra Roland, só pode ser bom. Viajando pela luz de "Daydreaming", pela solidão de "Decks Dark", até ao clássico que antes-de-ser-já-o-era "True Love Waits", os Radiohead não desarmam, naquele que é o mais completo, mais belo e mais satisfatório álbum de 2016. E, acreditem, fala-vos um descrente na religião Yorkiana.
"A Moon Shaped Pool" é um regresso a casa para os Radiohead. Depois de um álbum feio e opaco como "The King Of Limbs", é reconfortante saber que ainda há espaço para a luz (lembram-se do vídeo de "Daydreaming"?) e para a beleza nos Radiohead. Álbum do ano.

0. David Bowie — "The Gouster"

"The Gouster" foi gravado e posto na gaveta por David Bowie em 1974, por isso não qualifica para o Top 10 desta categoria. mas como foi finalmente tirado da gaveta e lançado em 2016, merece a distinção como número 0.

Fascinado pela América e cego pela sua música negra, em 1974 David Bowie resolveu fazer um golpe de harakiri à sua carreira: lançar um álbum de Soul. Classic Bowie, diremos hoje entre sorrisos, agora que conhecemos o espectro completo da sua obra. Na altura, o público ficou muito baralhado.
David agregou uma banda que pudesse tocar a música que queria ouvir (entre eles, um tal de Carlos Alomar), alugou um estúdio em Filadélfia em Agosto de 1974 e mergulhou a fundo na sua nova sonoridade. As primeiras tentativas das sessões Soul deram origem a "The Gouster" — "40 minutos de Funk glorioso", como lhe chamou Tony Visconti, o produtor de sempre de David. Funk glorioso não sei, mas Soul glorioso, certamente que temos às pazadas em "The Gouster"
O "álbum Soul" conheceu diversas iterações, com diferentes baptismos – "Dancin'", "One Damn Song", "Fascination", ou "Somebody Up There Likes Me" – mas Bowie continuava indeciso. Até que em Janeiro de 1975 apareceu em estúdio um outro tal de John Lennon que gravou com David dois temas: "Fame" e uma nova versão de "Across The Universe". Nascia assim "Young Americans".
Na iteração de "The Gouster", que aparece na caixa "Who Can I Be Now?" - lançada este ano -, o álbum abria com uma versão Funk de 7 minutos de "John I'm Only Dancing", que eu honestamente dispenso, mas depois arrancava para uma sequência gloriosa de Soul com dois temas que foram lamentavelmente suprimidos do álbum final: "It's Gonna Be Me" e "Who Can I Be Now?". Principalmente este último, que é um dos melhores de toda a carreira de Bowie e foi o tema que mais ouvi este ano.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

David Bowie desafiou os limites até ao fim

As últimas faixas gravadas nas sessões de "Blackstar" estão aqui. Será que valem a pena?


As últimas três faixas que faltavam ouvir das Blackstar Sessions chegaram. Dão pelo nome de "No Plan, "When I Met You" e"Killing A Little Time"e estão a partir de hoje disponíveis na banda sonora do musical off-Broadway de David Bowie."Killing A Little Time" é a mais fascinante e mind-bending das três canções e, como sempre acontece quando se fala de Bowie (principalmente na sua fase pós-milénio), é impossível de categorizar. Bowie atingiu um estado de tal aristocracia sónica desde a viragem do primeiro dígito do calendário, que parece controlar as ondas com uma batuta só dele. Para ser simplista, isto não se parece com nada que já ouvimos antes e no entanto, tem elementos de tudo um pouco.

Sabem quando abrimos várias janelas no Youtube e elas começam inadvertidamente a tocar ao mesmo tempo, criando um ruído indecifrável? Não raras vezes, "Killing A Little Time" parece-se exactamente com isso. Esqueçam os tempos do rock progressivo, em que se colavam sequencialmente vários temas com andamentos diferentes (Bowie fê-lo com mestria em "Station To Station") e assim se criava uma obra complexa. Tempos idos. Bowie inventou agora um novo método: a colagem simultânea. Há uma guitarra a tocar um riff metal à frente, temos um baterista lá atrás a fazer a cena dele, temos um Bowie a mandar versos fora dos lugares comuns, de vez em quando aparecem uns saxofones perdidos e ainda há um piano nervoso, a tocar ora à frente, ora atrás na mistura, como um balão que se esvazia caótico, enquanto embate nos quatro cantos da sala. Parecem três músicas diferentes a tocar ao mesmo tempo, às vezes de forma confusa, às vezes num casamento inesperadamente perfeito. Deixa-nos confusos, mas no fim, resulta. Como diz a inviolável sabedoria popular, primeiro estranha-se e depois entranha-se.

Ouvir "Killing A Little Time" recordou-me a sensação da primeira vez que ouvi "Blackstar", ainda antes da morte de Bowie. Estava no carro, a ouvir a Radar no regresso a casa e enquanto fazia a descida de Monsanto na A5, telefona-me o meu chefe, provavelmente estacionado poucos metros à frente ou atrás no mesmo engarrafamento: "Nuno, estás a ouvir isto?! O Bowie passou-se de vez!". Depois de largos minutos a processar o que acabara de ouvir, só pude concordar. É engraçado que "onde estava a primeira vez que ouvi Blackstar" pode ser o novo "onde estava quando os aviões embateram nas torres gémeas" dos melómanos (ou, para a geração mais velha, "onde estava no 25 de Abril"). Mas divago.

As outras duas faixas chamam-se "No Plan" e "When I Met You". "No Plan" é um óbvio out-take de "Blackstar", perfeitamente enquadrado na lírica, temática e sonoridade do álbum. "When I Met You" é bem mais interessante: perigoso e cortante, soa a algo saído de "Scary Monsters". Não é bem o mood de "Blackstar", mas é uma das melhores faixas das últimas sessões de gravação de Bowie e prova uma coisa: David Bowie desafiou os limites até ao fim. Só podemos imaginar até onde os poderia esticar ainda mais.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Nenhuma mulher pode amar um homem que ouve Phil Collins

Mas pode Phil voltar a amar-se a si mesmo?



O título da crónica é uma citação de "Sing Street", um dos meus filmes preferidos deste ano. Como fã de Phil Collins e dos Genesis, desmanchei-me a rir com esta fala do filme e adoptei-a como uma possível explicação para a minha própria turbulenta vida amorosa. Talvez o facto de amar o Phil Collins justifique o meu fado com o sexo oposto, não sei; mas sei que Phil deixou de se amar a ele própio há muito tempo, por não aguentar ser sujeito a décadas deste tipo de enxovalho. E que isso quase acabou com ele.

No dia em que foi anunciado o seu regresso aos espectáculos, a crónica que escrevi aqui em Janeiro sobre a necessária reapreciação do seu valor faz mais sentido que nunca. Independentemente do passado, sobra-me dizer mais umas coisas sobre o Phil e a sua nova digressão.

Vi a conferência de imprensa do anúncio da digressão em directo. Deu-me pena. Adoro o Phil. Para mim, o Phil é família; é como um tio não muito afastado que esteve sempre "ali". É difícil vê-lo tão fisicamente e animicamente acabado, um farrapo cheio de ressentimentos (confessou que reatou com a última mulher, mas que esta "não lhe devolveu o dinheiro que lhe tirou") e uma sombra do poço de vida que já foi.

Phil sempre teve muita dificuldade em lidar com a visão que o mundo tinha dele. Primeiro, quando o elevaram a superestrela depois de ter feito um álbum intimista e silencioso sobre o seu próprio divórcio. Depois, quando o atiraram para objecto de anedotas por ter continuado a fazer o que sempre fizera. Phil não conseguiu lidar com a dinâmica da opinião pública e como primeira defesa, isolou-se. Sem perceber que os Genesis eram a entidade que em última instância o protegia, enxotou-os após uma passagem triunfal por Knebworth em 1992 (sempre Knebworth como cemitério) e quando a Britpop estoirou, a sua imprensa só piorou. A defesa de Phil foi isolar-se ainda mais e avançar para uma reforma prematura, retirando-se da música agastado, surdo e sociologicamente queimado.

Quando voltou para casa para ser um pai a tempo inteiro, Phil foi recebido com o embate de um camião TIR. A mulher pediu-lhe o divórcio e com ela levou os filhos e o dinheiro. Phil ficou sozinho, agora sim, completamente isolado. Seguiram-se anos de depressão, alcoolismo solitário no sofá a olhar para a televisão e conversas com a linha de suicídio. Até Peter Gabriel teve que intervir na situação, para salvar o seu amigo Phil.

Eventualmente, Phil Collins começou a trepar lentamente para fora do buraco em 2014. A sua ex-mulher aceitou-o de volta (ficando com o dinheiro, como ele próprio sublinhou), Phil voltou a poder estar com os filhos e chegámos ao dia de hoje, em que ele anuncia uma digressão. Phil volta para um punhado de espectáculos a solo no Royal Albert Hall, em Colónia (terra santa para os Genesis, deuses eternos das Alemanhas) e em Paris.

Mas pela enésima vez, desde que despachou os Genesis em Knebworth, Phil volta a tomar a decisão errada, ignorando aquilo que realmente o protege: o chapéu-de-chuva dos Genesis.
O que Phil deveria ter feito era simples: telefonava aos seus (verdadeiros) amigos Mike Rutherford e Tony Banks, deixava-os tratar de tudo e limitava-se a sentar-se num banco à frente do palco, a cantar as músicas dos Genesis para gáudio de milhares de pessoas que desesperam para o ver (eu! eu! eu!) interpretar aquelas canções. Acontecesse o que acontecesse, Phil teria sempre o apoio de Tony, Mike e da máquina dos Genesis. Assim, volta à estrada por sua conta e risco, vulnerável a tudo o que lhe possa cair em cima.

Dito isto, toda a sorte do mundo para o Phil. Espero mesmo que ele derrote os seus fantasmas e que aprenda a voltar a amar-se a si mesmo. Aconteça o que acontecer, Phil, I will always love you. E cá estarei para defender o teu legado.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Os tempos, eles estão a-mudar

E às vezes para melhor: rejubilemos, Bob Dylan é o Nobel da Literatura. 


Não vou fingir o contrário: o Nobel da Literatura deste ano foi uma enorme surpresa. E das boas.
É a primeira vez que um poeta da música é reconhecido com este galardão e, que júbilo, já não era sem tempo. Apesar do impacto social dos escritores de canções ser indiscutivelmente maior que a esmagadora maioria dos receptores habituais deste prémio (e com uma longevidade de mais de meio século), os músicos sempre foram olhados de soslaio pela crítica literária. A verdade é que houve mais gente a ler e a ouvir os poemas de Bob Dylan, do que todos os outros prémios Nobel juntos. Há casos e casos, é certo, mas o caso de Dylan é inatacável.

A literatura é apenas uma das dimensões do espaço vectorial onde Bob Dylan opera. Dylan foi um homem que revolucionou a música popular, ora como diário confessional, ora como instrumento de intervenção. Nada foi igual depois da sua afirmação com "The Freewheelin' Bob Dylan" em 1963. Ao contrário da natureza estritamente lúdica da música popular que aparecia nas tabelas de então, as canções de Dylan incorporavam um peso intelectual que atraía uma audiência mais sofisticada, gente que ouvia música sentada em sofás enquanto fumava substâncias nem-sempre-legais e dissertava sobre o sentido da vida e o peso da existência. Dylan não valia só pela música, valia também pela poesia e pela mensagem.

Bob Dylan mudou tudo e é a ele que devemos uma quantidade astronómica da nossa música preferida, mesmo a que não foi composta por ele. Nem os Beatles seriam quem nós conhecemos hoje se não fosse Dylan. Foi ele quem convenceu John Lennon a deixar os "I love you"s e a dar outra profundidade e realidade à sua música, isto depois de lhe apresentar o charro.

Como melómano, alguém cuja vida foi conduzida pela música que ouvia, sinto que este Nobel é também um bocadinho meu. Em 2016, já escrevi uma série de textos de homenagem porque a morte dos respectivos artistas assim me obrigou (Bowie, Prince, Frey, já estava farto). Felizmente, posso fazer o louvor a Dylan enquanto ele ainda cá está. Ainda bem que a Academia também teve essa coragem.

Dylan anunciava em 1964 que os tempos, eles estavam a-mudar. Em 2016, eles estão a-mudar mais ferozmente que nunca e é por isso que importa que se reconheçam os génios e se separe o trigo do joio no meio de todo este ruído da tecnologia e das redes sociais. Este Nobel é totalmente merecido e vem no momento certo. Muito bem, Academia.

Agora falta o Lobo Antunes. E já agora, o Bruce Springsteen.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Vamos lá falar nos Bon Jovi

Os Bon Jovi têm um tema novo. E é mau que dói.


Não, esta não é mais uma crónica a desancar nos Bon Jovi como uma banda foleira, kitsch, ou outro chavão qualquer que se habituaram a ler na imprensa. Nem eu me atreveria a tal heresia, por dois motivos: em primeiro lugar, porque tenho amor à vida e não me quero meter com os fãs portugueses da banda, que são em tal número (58.5 mil no Facebook!) que em jogos de Champions mal cabiam no Estádio da Luz e tão poderosos que em 2011 obrigaram a Zon / Nos a retirar um anúncio do ar; em segundo, porque isso simplesmente não é verdade. Ao contrário do que vos fizeram crer, Bon Jovi rocks. Sim, é música despretensiosa, invariável e despida de múltiplas layers de interpretação. Mas e depois? It's a lot of fun. Cantar o refrão de "Livin' On A Prayer" a plenos pulmões não é só um cliché do Plateau: é terapêutico.

Não tenho problema nenhum com o Hair Metal. Da mesma forma que gosto de deprimir com uns Joy Division, também preciso do hedonismo stripper de um "Pour Some Sugar On Me", ou da simples pieguice de um "Love Bites". E por que não? Até os (sobreviventes) JD precisaram de sair da penumbra e formaram os New Order. Não andei no liceu na época, por isso sou imune aos preconceitos do status quo de então, olho para tudo com maior distância emocional. Aliás, toda a gente parece divertir-se tanto com as suas fartas permanentes nos videoclips dos anos 80, que não raramente eu fantasio em fazer uma, se tal fosse socialmente aceitável em 2016. Mas divago. Voltemos aos Bon Jovi.

De banda de proa de Hair Metal e ídolos Pop dos anos 80, os Bon Jovi metamorfosearam-se em standards clean dos 90s, munidos de Ray-Bans, cabelo liso (lá se foi a permanente) e vídeos em tons de sépia. Nesta transformação, os Bon Jovi mantiveram-se sempre os Bon Jovi, cool à sua maneira suburbana, sempre a tentar rescrever a mesma música, uma e outra vez, sem nunca venderem a sua sonoridade à moda vigente. E o mundo continuou a amá-los por isso. Eu pelo menos continuei.

Depois vieram os 00s e os Bon Jovi conseguiram a proeza de voltar aos liceus com "It's My Life" (desta vez quem lá andava era eu) - adivinhem como - ao continuarem a ser os Bon Jovi. "It's My Life" era uma cópia de "Livin' On A Prayer", mas era isso mesmo que o público queria. Havia diferenças: desta vez o vídeo começava com um jovem a escrever um e-mail (o advento da internet!) e, claro está, já não havia permanentes no cabelo (tirando o teclista David Bryan, que se manteve como o bastião Hair Metal da banda). De resto, a receita foi a mesma de sempre. O que me leva até ao dia de hoje, quando ouvi o novo single da banda de New Jersey, "Born Again Tomorrow". Parece que os Bon Jovi decidiram, finalmente, inovar. E o resultado é trágico.

O primeiro single do novo álbum "This House Is Not For Sale", com o mesmo nome, foi lançado em Agosto e era Bon Jovi em piloto automático. Tudo na mesma, parecia apenas um pretexto para voltar às digressões. "Born Again Tomorrow" mostra uns Bon Jovi diferentes; diferentes, na medida em que me pela primeira vez me apeteceu cravar uma lapiseira nos ouvidos ao ouvir Bon Jovi.

Em "Born Again Tomorrow", Jon Bon Jovi decidiu "modernizar" a sonoridade da banda, que é o mesmo que dizer que decidiu que a banda devia soar igual a tudo o resto que passa na rádio. Por outras palavras, decidiu Coldplayzar os Bon Jovi. Há ali a meio um solo de guitarra de 10 segundos que soa mais ou menos a Bon Jovi, mas de resto, aquilo soa tanto a Coldplay que parece que a qualquer momento vai sair um "'cos you're a skaaaay, 'cos you're a skaaaay". Até dói.

Jon Bon Jovi parece perdido desde que o guitarrista da banda Richie Sambora se foi embora em 2013. Pelos vistos, Richie era a alma da banda e tinha um papel muito mais importante do que poderíamos pensar (e sempre teve bom gosto). O que se passa com Jon? O desespero para voltar aos liceus é assim tão grande? Será que o convenceram que para tocar na RFM, é preciso soar como a toda a trampa que lá passa? Um dia Jon disse que a diferença entre tocar em arenas e em estádios era um "hit single". Mas isso foi há duas décadas. Os anos provaram que os Bon Jovi não precisam disto para encher as grandes salas, até porque nos estádios ninguém quer ouvir as músicas novas. Querem os clássicos de peito cheio, querem o Richie de volta (por favor) e querem os Bon Jovi iguais ao de sempre. Até porque, se a inovação é isto, mais vale estarem quietos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Apocalipse, Soul e Cocaína - Bowie vai para a América



Na sequência da fabulosa caixa "Five Years (1969 – 1973)" (que eu tenho lá em casa em formato vinil), que compreendia os primeiros anos da carreira de David Bowie e o seu período Ziggy, chega agora o volume seguinte: "Who Can I Be Now? (1974 – 1976)". Antes de mais, louvo a intenção do campo de Bowie, que assim pode organizar a caótica e difusa discografia de David Bowie e com isso, pode também encher os bolsos uma vez mais com a obra que o alien mais terráqueo nos deixou.

Incluídos nesta nova caixa, estão os álbuns do período de charneira de David Bowie, que fazem a ponte entre a fase Glam Rock de Ziggy ao período de fusão electrónica de Berlim: "Diamond Dogs", "Young Americans" e "Station To Station". E é aqui reside o grande senão deste set. Em virtude de consistência temática, isto é, para não cortar a meio nenhuma das diferentes fases da carreira de Bowie, "Who Can I Be Now" contém apenas três álbuns originais, contra os seis de "Five Years". É muito pouco "value for money". "Mas não têm ambas o mesmo número de discos?", perguntar-me-ão. Ter, têm, mas estes estão espalhados por "David Live" (duas misturas: 3LP + 2LP), "Live At Nassau Colisseum" (2LP), uma versão alternativa de "Station To Station" e, como já devem saber se chegaram até aqui, "The Gouster".

"The Gouster" foi promovido como um álbum "novo", não editado, uma jóia perdia de David Bowie e como o grande atractivo de "Who Can I Be Now". Calma. "The Gouster" tem o seu interesse, já lá vamos, mas não é mais que uma versão arcaica do que viria a ser "Young Americans".

Poderão estar a pensar que este período de Bowie entre Londres e Berlim, retratado nesta caixa, é de somenos. Nada disso. Na verdade, o "período americano" deu origem a uma das suas obras-primas, o superlativo e em doses iguais perigoso e maravilhoso "Station To Station". Não tenho aqui espaço para falar muito de STS (ide aqui), a não ser que é um dos álbuns da minha vida e se não é da vossa, é porque ainda não o ouviram muito bem.

Estes foram os anos que viram David Bowie a fascinar-se pela América e a injectá-la alarvemente na sua música. No apocalíptico "Diamond Dogs", inicialmente pensado para uma produção teatral de "1984" de Orwell (a utilização dos direitos foi recusada), ainda cheiramos Ziggy em "Rebel Rebel", mas o aroma ao Soul de Filadélfia já começa a dominar lá mais para o Lado B. Pessoalmente, não é o meu álbum preferido de Bowie (há tanto por onde escolher), mas atentem na intensidade da sequência "Sweet Thing" / "Candidate" / "Sweet Thing (Reprise)". É um dos pontos altos da sua discografia.

Fascinado pela América e cego na sua obsessão pela música Soul desta altura, David resolve fazer um golpe de harakiri à sua carreira: lançar um álbum de Soul. "Classic Bowie", dizemos hoje entre sorrisos. Na altura, o público deve ter ficado baralhado. David agregou uma banda que pudesse tocar a música que queria ouvir (entre eles, um tal de Carlos Alomar), alugou um estúdio em Filadélfia em Agosto de 1974 e mergulhou a fundo na sua nova sonoridade. As primeiras tentativas das sessões Soul deram origem a "The Gouster" - "40 minutos de funk glorioso", como lhe chamou Tony Visconti, o produtor de sempre de David. O "álbum Soul" conheceu diversas iterações, com diferentes baptismos - "Dancin'", "One Damn Song", "Fascination", ou "Somebody Up There Likes Me" - mas ainda não era "isto" que Bowie queria. Até que em Janeiro de 1975 apareceu em estúdio um tal de John Lennon e gravou com David dois temas: "Fame" e uma nova versão de "Across The Universe". Nascia assim "Young Americans".

No fim do ano, Bowie mudou de Costa e foi para Los Angeles, onde se afundou na coca. Do buraco, saiu "Station To Station". Daí, foi curar-se para Berlim. O resto saberemos na próxima caixa.

domingo, 11 de setembro de 2016

Nick Cave — Em nome do Pai

Nick Cave conversa com a morte, com Deus e com o filho que perdeu no ano passado


Não estou qualificado para falar sobre o que é para um Pai, a dor de perder um filho. Não sei, nem tenho intenção de saber o que é, só imagino que seja o pior dos pesadelos. Materializar essa dor num disco foi a tarefa a que Nick Cave se propôs, depois da morte do seu filho de 15 anos, que caiu de uma falésia em Brighton após ter experimentado LSD pela primeira vez. Era uma tarefa mastodôntica com tanto de coragem, como de insanidade. Insanidade, pelo que acarreta fazer um álbum sobre a morte de um filho; coragem, por expor desta maneira despida a sua própria desgraça.

Quando ouvi a primeira amostra do álbum — "Jesus Alone" — na semana passada, fiquei esmagado. Debaixo de uma cortina negra de sintentizadores a puxar os limites dos graves, intercalados por gemidos de quem roga por salvação, Nick leva-nos directamente para o penhasco onde a tragédia aconteceu. Num niilismo agressivo e assustador,  Nick lamenta-se que a sua fé em Deus de nada lhe valeu, como quem se apercebe da sua condição solitária no Universo. A tristeza, escuridão e aridez de "Jesus Alone" pinta uma tundra desoladora. Mas se a motivação daquela canção era óbvia, esperava que Nick desse tréguas ao ouvinte no resto do álbum. Enganei-me.

"Skeleton Tree" agarra-nos pelo pescoço e ao longo dos 40 minutos da duração do álbum, não nos dá descanso. Nesta árvore de esqueletos, somos arrastados numa viagem até ao último ramo do luto de Nick Cave, onde o ouvimos conversar com a morte, com Deus e com o filho. Aqui, a dor é tão real ("nothing really matters when the one you love is gone"— "I Need You"), tão gráfica ("in the bathroom mirror I see me vomit in the sink" — "Magneto"), tão visceral ("all the things we love, we lose" — "Anthrocene"), que chega a ser palpável nos sulcos do disco. É um álbum pesado, sombrio e agressivamente pessoal, de escuta difícil. Mas é tão bonito.

Nick Cave é um dos grandes compositores do nosso tempo (recordem o brilhante "Push The Sky Away" de 2013) e parece aprimorar a sua arte com a idade e — para mal dele — com o seu próprio sofrimento. A desgraça de Nick Cave é a nossa sorte, por conseguir canalizar o seu luto de Pai em música e nos abençoar com um álbum destes — um confessionário onde pôde libertar os seus próprios traumas. Espero que, pelo menos, a música lhe tenha servido de terapia. Um abraço, Nick.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O que veio primeiro? A música ou a miséria?

A banda sonora que engrandece as nossas vidas

A pergunta é feita por John Cusack no filme "High Fidelity" e tem muito que se lhe diga. Dono de uma loja de discos e de uma vasta colecção de vinil organizada autobiograficamente, John Cusack representa uma visão acabada do melómano-coleccionador, romântico-obsessivo, apaixonado pelo sexo oposto e pela música em partes iguais e complementares. Tão bem que o compreendo.

É pertinente, a sua reflexão melómano-existencialista. Será que ouvimos música porque nos sentimos miseráveis, ou sentimo-nos miseráveis porque ouvimos música? Preocupamo-nos tanto com a exposição das crianças ao sexo e à violência (pelo menos teoricamente; na prática, basta ligar a televisão para perceber que é uma treta, não é CMTV?), mas ninguém reflecte sobre a permanente exposição a música sobre rejeição, dor e miséria. Quando usamos a música para lidar com o que nos atormenta, será que nos cura da dor, ou prolonga o nosso sofrimento? Parece uma charada reminiscente do ovo e da galinha, mas — se quisermos aplicar a sabedoria popular — eu diria que é mais um caso de pescadinha de rabo na boca.

Se não fosse a música, os psicólogos e os psiquiatras teriam muito mais trabalho

Não há paciência para ouvir o "Happy" do Pharrel, depois de uma segunda-feira de trânsito caótico e chefe insuportável, à espera de uma mensagem dela que nunca chega. À saída do trabalho, toca o telemóvel — uma mensagem! "Hoje não dá", diz. "Happy"? Tenho lá paciência para alegrias. "It's laughter I disdain", dizia muito bem o Paul Simon. O que apetece mesmo é chegar a casa, chutar os sapatos à porta e pôr The Smiths, preferencialmente um tema ermo do "Hatful Of Hollow", só para calcar mais o estado de espírito e curtir a depressão. É um ciclo vicioso: quanto mais em baixo estou, mais down é a música que quero ouvir.
E se estiver mesmo na merda, então só lá vou com algo violentamente niilista dos Godspeed You! Black Emperor, a pintar um cenário apocalíptico onde as bandeiras estão todas mortas no cimo das hastes. Não me tira do buraco, mas é a terapia que tenho à mão. Se não fosse a música, os psicólogos e os psiquiatras teriam muito mais trabalho.

Então e se o dia correr bem? Sexta-feira soalheira, almoço com ela na praia e o trabalho todo feito. Nesse caso, sim, já apetece pôr uns Duran Duran e abrir a janela do carro para curtir um ventinho na cara. Ou puxar de uns Deep Purple e carregar no acelerador na auto-estrada. Ou o melhor talvez seja ir buscar aquela mixtape dos Radiohead e recordar como eram bons os tempos gloriosos da depressão.

Moral da história? Não interessa quem veio primeiro, se a música, se a miséria. A música, como a vida, é o que quisermos dela. Mas a soma de ambas resulta numa vivência intensa e cinemática que nos esconde e protege do marasmo da realidade. E é sempre melhor ter música, que não ter. Porque todos os filmes ficam engrandecidos com uma banda sonora, mesmo se esse filme for a nossa vida mundana.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Roland Orzabal, o génio esquecido da música Pop

A história do ícone dos anos 80 que nunca o foi

"Quem?", soltarão os mais incautos. Quando pensamos em ícones da cena alternativa dos anos 80, falamos em Morrissey, Robert Smith e Ian Curtis, mas nunca em Roland Orzabal. Muitos não reconhecem sequer o nome de um dos mais subvalorizados músicos da década. Quem ouve a M80 ou frequenta o Plateau, saberá quem são os Tears For Fears, mas talvez seja preciso cantar "Shout, shout, let it all out" para que todos saibam de quem estou a falar. Mas desenganem-se, não é em "Shout" que reside a genialidade de Roland Orzabal; quanto muito, é aí que a percepção do seu virtuosismo no ofício esbarra.

Não atiro facilmente a palavra 'génio' para uma discussão. Não há muitos. Quando se diz que o novo álbum do Kanye West é 'genial', não só se comete um abuso de linguagem, como também se diminui a magnitude do adjectivo. Roland Orzabal não é um génio porque escreveu umas musiquinhas que foram líderes das tabelas em ambos os lados do Atlântico, nem porque já vendeu 30 milhões de álbuns, nem porque gastou mais dinheiro a gravar um álbum do que qualquer outro artista do seu tempo. É-o porque domina a arte da música Pop como catarse, porque sabe burilar pequenas jóias de 4 minutos que condensam emoções e libertam traumas. É-o porque fê-lo consistentemente (embora com largos períodos de interregno, a proactividade não é o seu forte), em estilos diferentes e durante um período de 3 décadas. Pena que ninguém a tenha ouvido (parte dela, pelo menos).

Por ocasião do seu aniversário que ninguém festejou, façamos uma resenha histórica.

Roland foi o principal compositor dos Tears For Fears, banda que formou em Bath com Curt Smith, corria 1981. Curt era a face alegre da banda, a voz açucarada que adocicava a música amarga de Roland. Duas personalidades diferentes, unidas pelas relações traumáticas que tiveram com os respectivos progenitores. Muitos medos e muitas lágrimas. O nome da banda é, aliás, para ser levado à letra — foi retirado de "Prisoners of Pain", livro de Arthur Janov, autor de "The Primal Scream" e responsável pela terapia primal que defendia a substituição dos medos pelas lágrimas. E foi essa premissa que sempre alimentou a música dos Tears For Fears.

"Shout" e "Everybody Wants To Rule The World" foram os temas que atiraram os Tears For Fears para a estratosfera da Pop em 1985 e ainda hoje são habitués nas rádios generalistas. O problema é que são também os menires que tapam a vista do restante trabalho da banda de Bath, largamente ignorado devido à presunção de serem uns meros two-hit-wonders. Longe disso.
O arco discográfico da banda de Bath não é extenso, mas é rico e preciso. Não há uma única maçã podre na caixa. Os anos 80 viram três álbuns, cada um radicalmente diferente do anterior: "The Hurting", "Songs From The Big Chair" e "The Seeds Of Love".

"The Hurting" — o álbum de estreia — é sombrio, introspectivo e minimalista, firmemente indexado na estética sonora da New Wave. Qual "OK Computer", não há álbum tão maravilhosamente depressivo como este. "Mad World", "Pale Shelter" e "Change" foram êxitos, mas longe do sucesso dos seus pares com sentido estético visual mais apurado (como os Duran Duran). Mas como um álbum tão depressivo e desconfortavelmente pessoal poderia ambicionar o sucesso mainstream? Essas ambições estariam guardadas para o segundo álbum.

Em "Songs From The Big The Chair", o campo sonoro expandiu-se e com ele, expandiu-se o público: ambos saíram da cave e foram para os estádios. Os conflitos internos deram lugar aos conflitos com a sociedade e com o sexo oposto e o público pôde finalmente identificar-se com os traumas de Roland ("these are the things I can do without"). Os sucessos vieram em barda: "Shout", "Everybody Wants To Rule The World" e "Head Over Heels".

Mas Roland é um pirómano da vida: sempre que consegue construir qualquer coisa, tem que destruir tudo logo a seguir para fazer de novo. Nunca nada é suficiente ou suficientemente bom. "Para criar, tenho que destruir", diz. E quando todos (público e editora) esperavam uma continuação da fórmula de sucesso de "Songs", Roland gastou 3 anos, 4 produtores, 9 estúdios e 1 milhão de libras para fazer um novo álbum (números absolutamente inauditos na época). Assim nasceu "The Seeds Of Love", um álbum de produção épica e meticulosa e beleza extraordinária, fruto da obsessão de Roland com o detalhe, em busca de um perfeccionismo que só parecia existir na sua mente.

A personalidade obsessiva de Roland atirou Curt para fora dos Tears For Fears e deixou-o a solo na década de 90, onde nos deu dois álbuns criminosamente ignorados: "Elemental" e "Raoul And The Kings Of Spain". Principalmente "Raoul", onde Roland volta a mergulhar em águas profundas dos seus conflitos, desta vez com a família e a religião ("Can we ever hope to seek asylum from the bounds of fate and family?"). Sozinho, sem o açúcar de Curt, ficou a amargura. Roland reflecte sobre a importância da família, explora as relações como campos de batalha, confessa adultério e promete redenção, tudo no mesmo álbum.

Nos anos 00, Roland lançou "Tomcats Screaming Outside" — o seu primeiro (e único) trabalho a solo, inspirado no álbum Drum and Bass de David Bowie, "Outside". Só que o álbum teve o azar de ser lançado no dia 11 de Setembro de 2001 (esse mesmo) e como tal passou completamente despercebido. Depois vieram as pazes com Curt Smith fizeram e um álbum com título a condizer: "Everybody Loves A Happy Ending". Pegando no ponto que deixaram em "Seeds", sob forte influência de Paul McCartney ("because McCartney is, of course, the new Lennon", diz Roland) e das paisagens de "Sgt. Pepper", "Happy Ending" é de longe o álbum mais colorido da banda. À boa maneira dos Tears For Fears, todo o álbum é um exercício de catarse. Foi da dor que saíram todos os álbuns da banda — da infância ("The Hurting"), da procura do sucesso ("Songs"), da sua destruição ("Seeds"), da separação ("Elemental") e do casamento ("Raoul") — mas desta feita, da dor resultou um arco-íris.

Curt e Roland voltaram a gravar e esperam-se novidades para breve. Da minha parte, confesso-me particularmente expectante por este novo desafio do nosso herói. Roland é um recluso e nunca se sabe muito dele, mas julgando pelos posts espirituosos que vai fazendo no Twitter, este será o primeiro álbum que fará enquanto goza de paz de espírito. Não me levem a mal, adoro-o, mas sabendo que foi da dor que surgiu toda a sua arte, que será do novo álbum dos Tears For Fears com um Roland feliz? Ou será que Roland Orzabal é como todos nós e a sua vida nas redes sociais é muito melhor do que a sua vida na realidade? O novo álbum dar-nos-á essa resposta.

Se quiserem conhecer melhor o Roland e os Tears For Fears, não deixem de checar a playlist.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Plágio, inspiração ou ganância? - O Rock N' Roll em julgamento

Quando Led Zeppelin, Pharrell Williams e The Verve vão ao palco do tribunal

Muito pouco se tem passado no mundo da música. Com a queda dos bad boys que entretinham o nosso quotidiano mundano (temos que ser politicamente correctos, não é?) e com a míngua de novas "bandas-marca" que vendem t-shirts e enchem estádios, a indústria sofre e isso reflecte-se tanto na tão falada queda de vendas, como na falta de assunto nas publicações musicais. Têm seguido o feed da NME e da Rolling Stone? Pois. Notícias requentadas e histórias sobre cinema e séries para encher o mural. Se até o Cid foi obrigado a pedir desculpas - e a chorar - por causa de uma brincadeira, numa das cenas mais indecorosas por que já vi passar uma estrela Rock, vai ficar muito difícil a sobrevivência destas publicações.

Não alheio ao assunto da falta de assunto está a nova moda dos processos por plágio. Uma das (poucas) notícias deste Verão foi o processo movido aos Led Zeppelin pelos Spirit, por alegadamente terem copiado a introdução acústica de "Stairway To Heaven" (de 1970), a partir do instrumental "Taurus" de 1968. Os Led Zeppelin abriram para os Spirit na sua primeira digressão americana e isso deixou sempre Randy California (vocalista e guitarrista dos Spirit e autor de "Taurus") com a convicção que Stairway era dele e melindrado por não lhe ter sido dado o crédito, "nem sequer um telefonema de agradecimento". Randy morreu em 1997 e agora foi a família, em posse dos direitos de autor do falecido guitarrista, quem processou à banda britânica.

O julgamento já terminou e absolveu os Led Zeppelin das acusações de plágio. E ainda bem. Ainda bem, porque os Led Zeppelin não copiaram os Spirit? Claro que copiaram! Mas o gamanço faz parte do Rock N' Roll. Que seria do Rock N' Roll sem o "empréstimo" (para lhe dar um nome mais leve) de melodias? Quantas progressões de acordes são possíveis? É um número finito. Quantas vezes as mesmas progressões harmónicas foram repetidas e copiadas? É um número infinito. Porque é que de todos os "empréstimos", foi o "Stairway To Heaven" que foi a tribunal? Porque é aqui que está o dinheiro.  Que maneira mais fácil de fazer dinheiro do que mover um processo contra uma mega-banda por causa de uma mega-canção? E é isto.

"Stairway To Heaven" é muito mais que "só" uma canção, é uma marca em si mesma. Na verdade, o historial de "empréstimos" dos Zeppelin é muitíssimo mais vasto e com casos bem mais evidentes que Stairway. Mesmo relativamente a "Stairway To Heaven", outros se poderiam queixar. Dêem uma passagem pelos links para ouvirem alguns casos pelos vossos ouvidos e tirarem as vossa conclusões.
A questão que importa colocar não é se os Zeppelin roubaram ou não esta ou aquela parte de músicas deste ou daquele artista para criarem a sua própria obra. A verdadeira questão é: e depois? Vamos agora limitar a música num sistema finito e fechado, sem lugar à inspiração por parte de terceiros? Já nem vou falar na subjectividade que acarreta tal apreciação. Se toda a gente for processar toda a gente, para além de se abrir um novelo sem fim, acaba-se com a música Rock de vez.

A sentença no caso Led Zeppelin é por isso justa e esperada. Inesperada, foi a sentença no caso de plágio movido a Pharrell Williams pela família de Marvin Gaye por causa de "Blurred Lines", onde Pharrell foi considerado culpado e obrigado a pagar milhões aos filhos de Marvin. Integridade artística? O tanas. Tal como no caso dos Zeppelin, foi a família - e não o próprio artista - a mover o processo. E porquê? Dinheiro, claro está. Muito. É que "Blurred Lines" foi "só" a canção mais tocada de 2013, tornando-se um dos singles mais vendidos de sempre, com quase 15 milhões de cópias. O problema é que este caso abriu um precedente gravíssimo, que felizmente não foi respeitado no julgamento "Stairway To Heaven".

Outro precedente já aberto foi o vergonhoso processo dos Rolling Stones contra os The Verve nos anos 90, devido a "Bitter Sweet Symphony". Tudo por causa de um sample de uma versão de "The Last Time" cuja utilização, imagine-se, eles próprios tinham autorizado, pese embora o arranjo tenha sido escrito por outro músico. Quando Symphony se tornou um fenómeno de popularidade em todo o mundo durante 1997 e 1998, a editora dos Stones mudou de ideias e achou que Richard Ashcroft havia, afinal, "abusado" no uso do sample que, ironicamente, nem sequer faz parte da versão original de "The Last Time". A editora processou-o pelos créditos do tema e ganhou. Todo o dinheiro ganho com "Bitter Sweet Symphony", retroactivos incluídos, vai agora para as contas dos Stones. Como se todo o dinheiro do mundo não fosse já suficiente para Mick e Keith. Pura ganância.

Quem não se lembra do "Anzol" dos Rádio Macau e da sua inusitada semelhança com "Just Like Heaven" dos The Cure, lançada uns meses antes? (offtopic: o quão badass é a Xana neste vídeo e 1988?) Estão a ver o Robert Smith a processar o Flak pelos direitos do "Anzol" e respectivos lucros das vendas dos Rádio Macau? Pois.

terça-feira, 26 de julho de 2016

David Gilmour em Pompeia: depois disto, não há mais nada para ver

Qualquer superlativo encontrado neste texto é pura realidade


Foi como um sonho. Um sonho bom. Um daqueles sonhos de onde não queremos acordar e quando o maldito despertador toca, metemos o snooze para tentar voltar ao ponto onde ficámos, nem que seja só por mais 5 minutos.

Podia dizer que "não há palavras para descrever" este sonho, mas como essa expressão é normalmente seguida de um longo discurso descritivo, vou poupar-vos a contradições retóricas. Há muito para dizer. Começo por vos confessar uma heresia: não costumo falar com Deus. Isso deve-se a vários factos que se sucederam ao longo da minha vida, entre os quais aquele penálti assinalado a um mergulho do Jardel, que me levou a concluir que Deus - a existir - estava a fazer um péssimo trabalho ao pactuar com injustiças daquele calibre. Hoje reconheço que talvez tenha sido injusto, uma vez que Deus naquela altura estaria mais preocupado a preparar os concertos no Royal Festival Hall.

O cenário em Pompeia exigia que eu voltasse a fazer contacto com Ele: eu estava à espera em pé há mais de 7 horas, debaixo de uma sauna de 35 graus e já tinha transpirado uma garrafa de água de litro e meio; no delírio do momento da abertura de portas, com o meu coração a mil e os carabinieri a ameaçarem quem corresse para o Anfiteatro das ruínas de Pompeia, eu falei com Ele e pedi-Lhe (falando a Sua língua) "please, please, please, let me get what I want this time" (presumo que Deus goste dos The Smiths). Queria ficar na fila da frente; queria ser, por uma vez na vida, um dos maluquinhos das grades.

O sonho tornou-se realidade.

David Gilmour ao vivo em Pompeia, visto da fila da frente. Como é que foi? Vou ser directo: foi o melhor dos melhores de todos os tempos, a milhas de distância do segundo classificado. Se me leram mais que uma vez, saberão da minha tendência para o superlativo, principalmente quando se trata de música. Mas acreditem, isto é diferente. Lembram-se das estórias de Paris e de Pula? Das melhores noites da minha vida e o camandro? Esqueçam. Foi tudo pulverizado por esta noite.

Foi tudo perfeito: a música, o espaço, o espectáculo de luz, lasers e fogo de artifício e claro, o spot frontal. Mas o toque de génio só chegou quando aconteceu o impensável: o David irritou-se. Tudo porque um grupo à frente gritava insistentemente por "Echoes", mesmo sabendo à partida que o épico de "Meddle" não iria ser tocado. David perdeu as estribeiras e deu um raspanete à audiência: "O Rick [teclista dos Pink Floyd] está morto, não vou tocar mais o "Echoes"". E por momentos ficou um ambiente esquisito.
Depois, aconteceu magia. Como mostra a História, é quando se zanga que Gilmour está no seu melhor. Outrora instigado pelas tensões com Roger Waters, ali pelo seu próprio público, David vingou-se na sua guitarra, golpeando-a a cada acorde em performances épicas de "Sorrow" e "Comfortably Numb".

Faltava o melhor da noite.

Depois do habitual ritual de despedida de David (chama a banda, fazem uma vénia conjunta e saem), este regressou sozinho para a frente do palco e, talvez apercebendo-se da importância do momento (foi o primeiro espectáculo com público desde que as ruínas foram desenterradas), David fez o que nunca o vira fazer: bateu palmas a um público que só pecou pelo entusiasmo a roçar no fanatismo.
Foi aqui que também eu tive o "meu" momento. Aos meus gritos histéricos de "I LOVE YOU, DAVID! I LOVE YOU, DAVID! I LOVE YOU, DAVID!", enquanto vestia um sorriso a tocar nas orelhas e gesticulava o lançamento do meu coração na sua direcção, ele deixou-se rir e fez uma vénia dizendo "thank you". Obrigado eu, David. Obrigado eu. Que tempo glorioso para se estar vivo.

Vamos pôr as coisas nestes termos: depois disto, sinto que já não há mais nada para ver.

(OK, entretanto já fui ao SBSR mas um que é um gajo há de fazer? Passar fome porque comeu o melhor bife do mundo?)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A noite escaldante de Iggy Pop

Ao segundo dia, o Super Bock Super Rock 2016 ferveu


Se a primeira jornada do Super Bock Super Rock 2016 tinha sido um pouco morna, a segunda noite do festival alinhou o diapasão com a temperatura que se fazia sentir junto ao Tejo — foi escaldante.
O Palco Super Bock começou com os Bloc Party, num concerto ainda a meio gás. Foi um início tépido com as bancadas despidas e uma plateia que não passava da mesa de som, onde só as filas da frente pareciam aderir. A reviravolta no marcador deu-se em "Banquet", o hit balsâmico de que todos estavam à espera para soltar voz e braços no ar. O entusiasmo manteve-se na recta final do concerto com "Helicopter" e "Ratchet" e, como na tropa, fica a sensação que só no fim é que o púbico ficou preparado para receber a banda de Kele Okereke.

Para o que ninguém estava preparado, era para o que viria a seguir. Em 2016, já não há muitas lendas do Rock para ver. Uns já nos deixaram, outros ficaram e murcharam, poucos valem o valor do bilhete que cobram. A organização do SBSR agarrou um dos poucos que sobram e esperava que fosse um dos pratos fortes do festival. Mas com certeza que não estava à espera do que se passou ontem.
Apresentando-se na sua indumentária habitual, ou seja, sem indumentária (devido àquela condição clínica que não lhe permite vestir uma t-shirt), Iggy Pop chegou e logo carregou a fundo no pedal com dois clássicos dos Stooges — "No Fun" e "I Wanna Be Your Dog". Cerveja a voar, Iggy a cuspir, público a saltar, mosh, crowdsurfing, este é o meu povo e é disto que o meu povo gosta. É só Rock N' Roll, mas nós gostamos.
Por esta altura, já o Meo Arena estava muito e bem composto. E quem disse que o Rock é coisa de homens? A plateia estava cheia de roqueiras giras e roqueiras giras são como as crianças: são o melhor do mundo.
Visivelmente injectado pela vibração que o público lhe retribuía, Iggy continuou prego a fundo numa auto-estrada insana de setlist, a passar por "The Passenger", "Lust for Life", "Sixteen" (todos do álbum "Lust For Life"), "1969" dos Stooges, ou "Sister Midnight" do (maravilhoso) "The Idiot", prólogo da trilogia de Berlim de David Bowie. Mas o ponto alto da noite estava guardado para o tema seguinte.  Iggy deixou o aviso: "I can't slow down, I'm not like you, I'm a real wild one". Quem olha para ele, um homem de 69 anos que levou uma vida a alta velocidade e que ainda aparenta ter mais gás que qualquer um de nós, percebe que ele não está a mentir. Está nos olhos dele e acima de tudo, está nas gloriosas pregas que apresenta no torso, cicatrizes de muitas batalhas travadas no passado. Depois do aviso, rebentou "Real Wild Child" e rebentou o motim no público. Pés no ar, mosh intenso — o meu primeiro desde que parti o pé em The Prodigy no Alive do ano passado (desta vez só rebentei os ténis) — e muita transpiração. A loucura total. O próprio Iggy mostrou-se surpreendido com a reacção e antes de acalmar os ânimos com o drum loop de "Nightclubbing" (mais uma malha de "The Idiot") disse e passo a citar: "fuck, fuck, fuck, fuck, fuck, fuck, fuck, fuck, fuckin' motherfuckers!". Tudo dito.
Iggy fechou o concerto com "Search And Destroy" dos Stooges e a casa voltou a ir abaixo (e eu dei um high-five ao Iggy!). Que Rei. Depois da saída da banda, Iggy ainda ficou no palco uns bons minutos a adorar o seu reino, em poses triunfais de quem percebeu ter feito uma coisa maravilhosa ali, naquele momento, em comunhão com o seu povo. Olhando à minha volta, todos pareciam contagiados por um sorriso idiota de quem também tinha percebido a importância daquele momento. Que concerto. Que noite. É para viver estes momentos que um gajo vive. Ao segundo dia, o Super Bock Super Rock 2016 a escaldar.

O Palco Super Bock fechou o segundo dia com os Massive Attack, acompanhados pelos Young Fathers. A banda de Bristol trouxe a Lisboa um espectáculo irrepreensível, hipnotizante, de longe o melhor a nível visual no SBSR e ainda conseguiu a proeza de pôr o Meo Arena a soar bem. Foi um espectáculo de 2016 para 2016: à mesma hora que acontecia um golpe militar na Turquia, já as projecções davam conta do sucedido no palco.
Foi um concerto dado para as bancadas (cheias), com os êxitos (poucos) guardados para o fim: "Safe From Harm" e "Unfinished Sympathy", docinhos para alegrar as hostes que só entraram em apoteose quando apareceu nos ecrãs que Portugal é Campeão Europeu. Foi bom, mas um anti-clímax para o que se viveu umas horas antes. Mas depois da descarga de adrenalina em Iggy Pop, o que se podia esperar?

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Concertos mornos em noite abrasadora junto ao Tejo

Os destaques do primeiro dia do Super Bock Super Rock 2016 foram The National e... Éder

O Super Bock Super Rock apresentou-se em 2016 com algumas novidades e na maioria dos casos, para melhor. O local é o mesmo, mas a organização preocupou-se – e bem – em limar várias arestas do ano passado. Em primeiro lugar, desapareceu aquela obscena zona VIP que ocupava uma faixa gigantesca do lado esquerdo do palco (e que só era ocupada quando o artista tirava um hit da mala). Depois, trouxeram aqueles copos cool que não só diminuem exponencialmente o lixo, como são também boas recordações para levar para casa (quem é que não prefere beber cerveja de um copo com o nome do Iggy Pop?). Sim, é um hassle ter que andar com o copo na mão toda a noite, mas enfim, não se pode ter tudo. Agora, a música.

A contrastar com a brasa que se fazia sentir junto ao Tejo, a primeira noite do festival foi apenas morna. A minha começou com Kurt Vile no Palco EDP. Com dois álbuns superlativos na bagagem ("Wakin on a Pretty Daze" de 2013 e "b'lieve I'm goin down..." de 2015) e uma carreira que já conta com 10 anos e uma passagem pelos The War On Drugs (que fundou com Adam Granduciel), Kurt Vile chegava a Lisboa com a fasquia muito alta e a responsabilidade de abrir as hostes. Mas apesar das minhas expectativas, Kurt não correspondeu. Talvez por causa do espaço aberto, talvez por causa da luz natural que ainda raiava, talvez por causa do público que ainda estava enferrujado na madrugada do festival. Não sei. Mas Kurt só conseguiu conquistar a audiência quando sacou de "Pretty Pimpin", o primeiro momento de apoteose do SBSR 2016 (consta que a apoteose foi tal, que houve meninas em topless, mas como eu estava concentrado no palco, pics or it didn't happen). No resto, enquanto Vile vagueava entre o Neil Young caótico e o Bruce Springsteen poético (com direito a um cover personalizado de "Downbound Train"), o público não aderiu. Pena. Espero vê-lo cá mais vezes.

Seguiu-se The National no Meo Arena, outrora Pavilhão Atlântico e por estes dias, Palco Super Bock. À chegada, um cenário deprimente: meia casa. A plateia em pé não passava a mesa de som, apesar do Balcão 1 estar composto (com o avançar do concerto, a metade traseira da arena também se foi salpicando). Mas é como diz o povo: "poucos mas bons". Quem lá esteve, vibrou à grande; bateu palmas, cantou as músicas de trás para a frente e de tal forma, que em partes o público ouvia-se em maior volume que o próprio Matt Berninger. Impressionante. No fim, Matt retribuiu com um crowdsurfing, um carinho para a poderíssima fanbase portuguesa dos The National. É evidente que a banda joga em casa em Portugal e não admira por isso que eles voltem todos os anos.
Para mim, foram uma revelação. Confesso que durante anos não dei a devida atenção aos The National e nem consigo explicar porquê, tanto que tinha as orelhas as escaldar de ouvir amigos clamarem a sua excelência. Talvez tenha sido isso, achava exagerado o culto. Ontem converti-me.
Agora, a parte chata: na parte final, com os êxitos vieram os telemóveis para cima. Malta, já estamos em 2016 e o êxtase das câmaras nos telemóveis já devia ter amainado. Quantas vezes é preciso dizer e em quantas formas é preciso escrever para que baixem a porra dos telemóveis. Uma foto, ok. Um vídeo de 30 segundos para o insta, ninguém leva a mal. Musicas inteiras, pá, não.

Voltando ao EDP para Jamie XX, vê-se o palco muito bem composto. O público, digo. No palco só está mesmo Jamie, num DJ Set glorificado que, faça-se justiça, arrancou muito entusiasmo do público (então era aqui que eles estavam!). Não foi propriamente um Avicii, até porque a música que saía das colunas era incomparavelmente melhor (o álbum "In Colour" foi um dos melhores do ano passado), mas não sei se podemos classificar aquilo de música "ao vivo". A escolha musical de Jamie andou entre o piso de cima e o piso de baixo do Lux. Nos melhores momentos, esteve no piso de cima, como em "Loud Places", com a voz dos The XX, Romy Madley Croft.
À saída, cantou-se a plenos pulmões e com afinação apurada que "foi o Éder que os fodeu". Mais do que a música e à falta de concertos lendários, foi ainda a ressaca da vitória da Selecção no Europeu que trouxe a euforia ao Parque das Nações, numa noite gloriosamente abrasadora.

A fechar a noite, os Disclosure no Meo Arena, agora transformado em discoteca: casa cheia na plateia em pé e bancadas despidas. Estava lá eu que, mesmo com o House castigador que saía das colunas, ouvia cristalinamente um ruído de conversa vindo de toda a plateia a sobrepôr-se à música. Como quem estava lá em baixo, também eu só queria conversar e por isso fui para o bar terminar a minha noite.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Adeus, David Gilmour

As horas angustiantes que antecedem o regresso a Pompeia

No último ano ano vi o David Gilmour ao vivo por 5 vezes em 3 países diferentes: Pula, Verona, Florença e duas vezes em Hollywood. A sexta - e última - será hoje, daqui a poucas horas: no grande anfiteatro das ruínas de Pompeia, um local sagrado. Mas já lá vamos.Escrevo ainda em Roma, deitado no piso de cima de um beliche periclitante, num quarto que chora com o fedor de 10 pessoas amontoadas a padecer de hidrofobia. Mas como condenar os hidrófobos, quando a casa de banho parece ter mais vida selvagem que o Amazonas?
Tenho que me levantar daqui a um par de horas para levar um carro alugado até ao sopé do Vesúvio, mas não consigo dormir. Não é o cheiro a cavalo, é o cavalo do meu coração que bate a galope, com tanto de excitação, como de nervosismo.

Já ando nisto há semanas. Ver os Pink Floyd sempre foi o meu sonho (o outro é ver os Queen com o Freddie Mercury; eu sei, não sou meigo a pedir), mas como os Floyd já lá vão e sem o Rick já não voltam, ver o David Gilmour ao vivo é a next best thing. Fui um dos sortudos que em 2006 pôde vê-lo com Richard, numa mini-digressão por salas intimistas para promover o álbum "On An Island".
Numa altura em que era estudante, aproveitava o Verão para ganhar uns trocos, normalmente para torrar em música. Juntei as poupanças de um ano e fui a Paris, onde vi o David no Grand Rex - um pequeno teatro com menos de 500 pessoas - e ouvi "Echoes", "High Hopes" e "Wot's Uh The Deal". Foi a melhor noite da minha vida.


Como a vida não é mais que esta incessante perseguição de um momento mágico, quando David anunciou nova digressão no ano passado, tratei de marcar o maior número de concertos que pude: Pula foi mágico como Paris, só faltou Richard; Verona foi o caos e em Florença, terceiro concerto em 4 dias, ver David já era quase corriqueiro; este ano fui duas vezes ao Hollywood Bowl (sempre desejara ali ver um concerto) e foi fantástico, mas aquela magia de Paris e Pula nunca mais voltou.
Por isso decidi que esta será a última vez que vou ver o David Gilmour. E que melhor maneira de terminar, se não no sítio onde tudo começou?

Foi aos 16 anos, quando fui de Castelo Branco a Lisboa, para ver o Benfica. Não ia a Lisboa muitas vezes, era um acontecimento para mim. Já na altura, fazia uns biscates no Verão para juntar dinheiro e comprar os CDs que queria durante o ano, mas naquele dia vinha com os bolsos lisos. Tive que convencer o meu Pai a oferecer-me o DVD com o filme "Pink Floyd Live At Pompeii". Afinal, fora ele quem me tinha introduzido aos Pink Floyd, expondo-me sucessivamente à gravação ("em noite de trovoada", diria agora o meu Pai) do concerto no Canal Grande, em Veneza, tinha eu apenas 3 anos. O meu Pai anuiu ao meu discurso e eu lá trouxe o DVD. Mal eu sabia que o filme iria para sempre mudar a minha vida.
Durante meses, vivi obcecado com o filme. Perturbou-me. Deu-me pesadelos. Para a mente susceptível de um rapaz de 16 anos da Beira que não conhecia muito do mundo, aquilo era a coisa mais cool que já vira na vida.

Não se trata apenas de ter aberto a porta da minha vida aos Pink Floyd e de me ter tornado um fã tão fanático, capaz de despender um salário para ver um dos membros da banda (e faltar a um edição recheadíssima do Alive). É muito mais que isso.
O "Live At Pompeii" abriu a minha mente a diferentes tipos de música e de arte, no geral. Tornou-me menos empírico e mais criativo. Ensinou-me a aceitar o que é estranho, esquisito e inóspito. Ensinou-me a ver a beleza no que à primeira parece feio. Ensinou-me a gostar mais do áspero do que o polido. Ensinou-me a ver virtude na diferença. Em suma, mudou a minha forma de ver o mundo.
Acima de tudo, fez-me sentir que era aceitável ser diferente, pensar fora da caixa, não querer ser do rebanho. Se eu hoje sou quem sou, muito se deve à weirdness daquele filme.
Por tudo isto, faz todo o sentido terminar ali. É como se toda a minha vida confluísse neste dia, neste lugar sagrado onde tudo começou. É um ciclo que se fecha.

Isto é tudo muito poético, mas a verdade é que agora estou numa pilha de nervos. Como em todas as grandes aventuras, esta também envolve perigo. Chegarei a tempo? Chegarei à frente junto às grades? Fuck knows.
Compreendam a minha ansiedade. Nunca me casei, nunca tive filhos, nunca vi o Benfica na final da Champions. Este é possivelmente o dia mais importante da minha vida - o dia da minha despedida do David.

Bem, pensando melhor, tudo começou quando o meu Pai me submeteu ao visionamento do concerto de Veneza em 1989. Quem sabe se o David não volta ao Canal Grande? Tinha que voltar a despedir-me dele, parece-me.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

"Há quem lhe chame um one night stand, mas nós podemos chamar-lhe o paraíso" - O sucesso meteórico dos Duran Duran

Recordar a Pop deliciosa dos Duran Duran

No que à imagem diz respeito, podemos dividir a cena musical do Reino Unido na primeira metade dos anos 80 em três campos principais: os dinossauros, naturalmente ancorados às décadas anteriores e com tentativas embaraçosas de ligação ao estilo vigente (Queen, Pink Floyd, Genesis); as bandas de rock alternativo, filhos do punk e dos sintetizadores a emergir em caves de zonas urbanas deprimidas, mais preocupados em preservar um certo glamour intelectual do que em seguir o guarda-roupa dos 80s (The Smiths, Joy Division, Tears For Fears); e as bandas Pop perfeitamente enquadradas no fashion style da década, ostensivamente explorando a sua imagem na promoção da sua música (Wham!, Duran Duran, Frankie Goes To Hollywood). Esta divisão não remete necessariamente o último campo para um plano secundário, como provam os Wham! (link) e os seus maiores concorrentes, os não menos superlativos Duran Duran.

Juntamente com os Wham!, os Duran Duran foram a banda da moda da primeira metade dos anos 80 e tal como a banda de George Michael, gozaram de um sucesso meteórico. Revelando uma profunda percepção da época que viviam, Simon Le Bon, Nick Rhodes, John Taylor, Andy Taylor e Roger Taylor (curiosamente não há aqui familiares) perceberam que para atingir o patamar cimeiro da atenção mediática, não lhes bastava a música, tinham também que pensar a sua imagem. Inicialmente rotulados com o movimento New Romantic, os Duran Duran desenvolveram um estilo próprio, elegante e refinado, tanto na roupa como na música, sem nunca abdicar das cores garridas e da extravagância que os ancora a uma década que os próprios ajudaram a definir. Plenos de vaidade, ostensividade e pretensiosismo, os Duran Duran comportavam-se como realeza Pop e durante meia década, foram tratados como tal.

O quinteto de Birmingham fazia furor entre as meninas que hoje vivem os quarentas e enchia as capas das Bravos e revistas semelhantes, matéria prima para os milhares de recortes que povoavam os cadernos da escola. A loucura era tal, que chegaram a ser apelidados de "Fab Five", em alusão a um sucesso só comparável aos Beatles, vinte anos antes. Reconheça-se porém que "os novos Beatles" estão para o Reino Unido como "o novo Eusébio" no Benfica: é um epíteto fácil que diz mais sobre a vontade de replicar o passado, do que da realidade do presente.

Se a preocupação com a imagem juntava os Wham! e os Duran Duran no mesmo campo, musicalmente eram animais muito diferentes. Pegando na linha que os Roxy Music começaram a traçar 10 anos antes, os Duran Duran apanharam o comboio da New Wave, fundindo Punk e Electronica e incorporando os sintetizadores de Nick Rhodes e os riffs de Andy Taylor em estruturas rígidas de canções Pop.

As canções invadiram as tabelas, as rádios e as televisões, com o "novo" formato videoclip que então ganhava força. A MTV dava os seus primeiros passos e os vídeos cinemáticos dos Duran Duran eram como manteiga em pão quente para o canal televisivo.
Foi uma relação simbiótica que começou com o ousadíssimo vídeo de "Girls On Film", que mostrava imagens tão sugestivas como lutas na lama de meninas em topless. Os Duran Duran queriam publicidade e o resultado não podia ter sido melhor: apesar do conteúdo explícito do vídeo ditar que este não podia passar antes da meia-noite, a restrição só serviu para disparar o interesse do público. A MTV acabaria por criar uma versão severamente editada para exibição em horário normal e a "Girls On Film" seguiram-se maravilhas como "Rio" (com os cocktails dentro de água), "Save A Prayer" e "Hungry like The Wolf" (com a banda no Sri Lanka). Enquanto a estação ganhava audiências à custa dos Duran Duran, a banda vendia discos à custa da promoção na MTV. Dizia-se que nos anos 80 se a MTV gostasse de ti, o mundo gostava de ti; a MTV adorava os Duran Duran e o mundo seguiu-lhe os passos.

Tal como a imagem, também a música dos Duran Duran trazia uma mensagem perfeitamente ajustada à década que os projectou. Eram temas sobre a liberdade individual e sexual, a importância do momento presente e a celebração do amor efémero. "Não vamos pensar no que significa, não vamos pensar no que vai ser amanhã. Vamos pensar no que vai ser este momento, é a única coisa que importa.", diz Simon Le Bon acerca de "Save A Prayer", um dos ex-libris da banda e o meu personal favourite. "Há quem lhe chame um one night stand, mas nós podemos chamar-lhe o paraíso" foi também um dos ex-libris da minha vida durante alguns anos.

O álbum "Rio" - o segundo da banda -, ao mesmo tempo que é um dos LPs que melhor define a década de 80, consegue soar tão bem hoje como há 30 anos. Não há um único stinker no álbum. Em 2106, mantém-se um exemplo perfeito de Pop dançável polida e carregada de rasgo. Era este rasgo incutido pela guitarra incisiva de Andy Taylor que distinguia os Duran Duran de todas as outras bandas Pop. Rude e áspera, a guitarra de Andy dilacerava as texturas minuciosas saídas dos sintetizadores de Nick Rhodes e conferia aos Duran Duran um edge único no panorama Pop da época. Quando Andy quis fazer algo mais adequado às suas raízes Punk e saiu durante a gravação do álbum "Notorious", os Duran Duran deixaram de ser excelentes e passaram a ser apenas bons.

Entretanto, os fãs adolescentes cresceram, a música evoluiu com a experiência nos projectos paralelos dos Arcadia (Simon, Nick e Roger) e dos Power Station (John e Andy) e a banda entrou em processo de negação contra-cíclica, sempre à procura de adaptar a sua música ao que se ouvia na rádio. Se George Michael teve a inteligência de dissolver os Wham! e continuar a solo com uma sonoridade mais adulta, os Duran Duran continuaram, sempre com sucesso muito tépido. Houve um comeback importante em 1993 com "Ordinary World" e "Come Undone" (retirados do álbum epónimo desse ano), mas os hits terminaram aí. O último álbum tenta fazer-nos lembrar dos tempos áureos dos 80s, ao mesmo tempo que tenta soar actual. Falha nos dois objectivos. Felizmente, teremos sempre o "Rio" para recordar a Pop deliciosa dos Duran Duran.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Em defesa dos Wham!, a melhor banda Pop de sempre

Uma ode à máquina de música dançável de George Michael

É um dos maiores e mais injustos preconceitos da nossa sociedade: em Portugal, gostar de Wham! ainda é tabu. Com os anos, chegámos à conclusão que era aceitável gostar de Prince, Madonna e Michael Jackson (e ainda bem), mas por alguma razão, ainda temos que murmurar que gostamos de George Michael e dos Wham!. Raramente se vê uma menção ao duo Pop britânico na imprensa portuguesa; na rádio, só passa o "Last Christmas" por altura no Natal e à noite, até o Plateau se recusa a passar outro tema que não o "Wake Me Up Before You Go-Go". Um ultraje.

Qual não é o meu espanto, pois, quando vejo esta semana duas peças diferentes sobre os Wham!, primeiro pelo Nuno Galopim (Máquina de Escrever), a propósito dos 30 anos do último concerto da banda e depois pelo Tiago Castro no"Álbum de família" da Radar, homenageando "Make It Big" de 1984. Fica aqui a minha ovação ao Nuno e ao Tiago. Já era tempo de fazer justiça aos Wham!, a melhor banda Pop de sempre.

Melhor banda Pop de sempre? "Que heresia!", já vos estou a ouvir, enquanto preparam o arremesso da esferográfica ao monitor. Calma, eu explico. Comecemos pelo princípio: os Wham! foram um duo de vida meteórica formado por George Michael e Andrew Ridgeley, que brilhou de forma incandescente na sua curta passagem pelo panorama musical. O registo da banda no Reino Unido é verdadeiramente avassalador: de 1982 a 1986, lançaram 9 singles e todos (sublinho: TODOS) entraram para o Top 10 das tabelas britânicas, sendo que 4 deles chegaram ao 1º lugar. Os álbuns "Fantastic" e "Make It Big" também foram #1. São números impressionantes que dão uma ideia ideia do impacto que os Wham! tiveram na altura.

Bem sei que toquei num assunto delicado: será que a popularidade e a qualidade da música são duas variáveis directamente relacionáveis? Não necessariamente, mas também não têm que ser inversamente proporcionais. O "Bohemian Rhapsody" foi #1 durante nove semanas e ninguém discute a valia da canção.
Os Wham! foram muito mais que apenas um fenómeno de popularidade. Se olharmos para a Pop de hoje, percebemos que há demasiados intérpretes que não escrevem as suas próprias canções, puros produtos de venda ao público que vêem as suas carreiras projectadas ao milímetro, desde a imagem, à produção da música e à respectiva promoção. É como uma linha de montagem, onde todas as decisões resultam de uma análise puramente técnica e comercial. Fecha-se o espaço à arte e ao rasgo e traçam-se fronteiras de forma e conteúdo. Tudo soa ao mesmo. No fim de contas, "arte" é coisa que ali não mora e o "artista" pouco tem a ver com o processo, a não ser dar a cara para o público.

Os Wham!, por outro lado, eram um produto saído somente da cabeça de George Michael. George era o mentor, cantor, compositor e o produtor da banda e ainda tocava múltiplos instrumentos nos discos (tudo isto quando tinha pouco mais que 20 anos).  Andrew Ridgeley, o outro membro do duo, estava lá apenas para atrair uma faixa etária mais velha e tirando o apoio moral, ainda hoje se está para saber o que fazia Andrew exactamente nos Wham! (a sua guitarra nem sequer era ligada nos concertos).

É certo que os Wham! tinham uma forte componente de imagem, mas também os Beatles a tinham no início de carreira, durante o auge da Beatlemania. E os Wham! não soavam como nada do que havia em 1983 no Reino Unido. Num panorama Pop onde despontavam os Duran Duran na New Wave e os Culture Club no Reggae, os Wham! faziam música Disco com toques de Soul; quanto muito, soavam como a Motown. Era música negra americana dos 70, para um público branco britânico dos anos 80. George Michael foi, aliás, sozinho, a Motown britânica dos anos 80; numa altura em que a própria Motown estava moribunda, sobrevivendo à tona de água apenas com artistas como Lionel Ritchie e Stevie Wonder. Mas se a nossa sociedade aceita pacificamente que Stevie Wonder é um génio (é mesmo), então por que raio tanto desdém pelos Wham!?

"Isso é música de paneleiros" é a minha justificação preferida. Então e o Freddie Mercury, não é "paneleiro" também? E não é o melhor de sempre? Então não podemos ouvir a música do senhor porque ele gosta de dormir com cavalheiros? Não me faz muito sentido.
"Isso é piroso", dizem-me. Certo. Então e alguém sairia à rua com as roupas roxas que o Prince usava? E o David Bowie? Um foleiro. Não vamos gostar de nenhum deles? Também não me parece válido.
"Eu não gosto da música, nem sou obrigado a gostar". Claro que não, mas expliquem-me, como é que podem não ficar contagiados por temas como "Club Tropicana", "I'm Your Man" ou "Freedom" e ser arrebatados com uma urgência de saltar para a pista de dança? Não? Nada? Então o melhor é verem isso com o médico, porque o sangue que vos corre nas veias está prestes a gelar.

Não tenham medo de gostar dos Wham! e muito menos tenham medo de admitir que gostam. A sério, vão ver que é "Fantastic" e não dói nada.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

O dia negro do Rock In Rio



Em 12 anos de Rock In Rio em Lisboa já tivemos cartazes para todos os gostos. Tivemos Pop com Britney, Shakira a Ivete, tivemos Heavy Metal com Metallica, Slipknot e Rammstein e às vezes até tivemos Rock. Todos os cartazes foram diferentes mas todos tiveram uma coisa em comum: eram artista de Classe A; artistas que eram à data, ou foram em tempos, no topo do mundo.

Podemos gostar ou não, mas desde os Tokio Hotel até ao Roger Waters (dando exemplos em pólos opostos), os cabeças de cartaz sempre foram de indubitável craveira.  Então expliquem-me, o que raio estão a fazer aqui os Hollywood Vampires como cabeça de cartaz? Joe Perry? Óptimo, que traga os Aerosmith. Alice Cooper? Maravilha, que traga as suas cobras. Johnny Depp? Porreiro, que venha apresentar o seu novo filme ao CCB. Os três juntos a tocar covers? Ok, se viessem abrir para Black Sabbath, Metallica ou Guns. Assim, qual é a ideia? Não faz sentido.

Já não bastava a redução de 5/6 bandas por dia para 3 (o musical não é para o Palco Mundo, lamento) e agora temos bandas de covers como cabeças de cartaz? O RiR Lisboa não merecia isto. Roberta, adoro-te por me teres trazido o Bruce Springsteen (e sei que qualquer coisa depois dele iria saber a pouco), mas o Rock In Rio que tão bem construíste não merecia isto. Nada contra os Hollywood Vampires e muito menos contra o Alice, o Joe, ou o Johnny. Mas nunca como headliners. Sem surpresa, foi ver durante a última semana o desfilar de bilhetes vendidos nas redes sociais a preços recorde. Ontem era mais caro jantar dentro do Rock In Rio, do que entrar no Rock In Rio.

Apesar das reservas, a noite até começou com uma agradável surpresa, com os Rival Sons — "We don't play Rock, we play Rock N' Roll". E deram mesmo um grande concerto de Rock N' Roll, pleno de decibéis. Bom início de noite.

Depois vinha a banda por que a maioria esperava — bastava olhar para as t-shirts espalhadas por todo o lado — os Korn. Nos idos finais dos anos 90, vivia-se no pico do Nu Metal, numa altura em que toda a gente gostava de Limp Bizkit, ouvir Korn era uma valência reservada aos puros. E só os puros que restaram vieram aqui hoje (alguns trouxeram os filhos). Tal não quer dizer que fossem poucos — mais de 50 mil segundo a organização. Mas foi aqui que vieram os problemas. Depois de duas falsas partidas devido a falhas de equipamento, os Korn começam finalmente o concerto com uma hora e dez minutos de atraso. A loucura. Copos de cerveja a voar, sofás insufláveis a voar, metaleiros a voar, metaleiros em cima de sofás insufláveis a voar. Os Korn tocam 25 minutos e quando faziam um cover de "One" dos Metallica, dá-se a terceira falha eléctrica e abandonam em definitivo o festival. Acabou por ser o momento mais Rock N' Roll do Rock In Rio, desde que o Axl fez do palco o seu próprio confessionário em 2001. Quem disse que falta Rock ao Rock In Rio?

As culpas foram imputadas ao equipamento dos Korn e eu até acredito que assim foi, mas como é que a produção pode permitir que isto aconteça, uma, duas e três vezes? Ainda mais num festival como o Rock In Rio, que sempre se pautou como um exemplo de organização com uma folha limpa neste tipo de falhas? Não quero bater mais na produção do RiR, já o fiz com a escolha pobre do cartaz deste dia, mas é preciso perceber que os metaleiros (fiéis ao RiR desde a primeira hora) foram muito mal tratados este ano. E é preciso emendar a mão de alguma forma. Dica: um dia especial lá para o fim do Verão com os Sabbath e os Guns (eu sei, isto já sou eu a ser guloso).

O fim da noite foi salvo pelos inatacáveis Alice Cooper e Joe Perry. E, por que não, pelo Matt Sorum (ex-Guns) na bateria — que bom que foi revê-lo. Ah e também lá estava o Johnny Depp, que está para os Hollywood Vampires como o Andrew Ridgeley estava para os Wham! — para acenar às meninas. O público começou desconfiado, a mostrar alguma resistência, mas quando Joe Perry fez de Pete Townshend e partiu a guitarra em "My Generation", a corrente começou a mudar. E ficou definitivamente rendido quando os Vampires arrancaram com "Whole Lotta Love" dos Led Zeppelin e depois com "Break On Through (Through The Other Side)" dos The Doors. Seguiu-se um agressivo mosh em "Rebel Rebel" (Bowie ficaria orgulhoso), para a audiência despejar aquela energia acumulada em Korn. O momento da noite chegaria quando Alice interpretou Alice, com "I'm Eighteen" (a fazer lembrar "Freaks And Geeks) e "School's Out". Os Hollywood Vampires podem ser uma mera banda de covers de bar, mas são provavelmente a melhor mera banda de covers de bar do Mundo. O único problema é que a seguir a eles não veio o headliner que se pedia.