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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Bono ao vivo no London Palladium: a música despida dos U2 num espetáculo intimista

Os últimos dez anos não foram simpáticos para Bono. Desde o fim da tremendamente bem sucedida 360º Tour (que pudemos ver em Coimbra), que parece que os U2 só sabem dar passos em falso. Primeiro, foi o infame lançamento de “Songs Of Innocence”, forçado a todos os utilizadores da Apple no mundo. Quando estalou a (absolutamente exagerada) polémica que, sublinhe-se, só aconteceu porque eram os U2, Bono fez pior ainda — pediu desculpa. Ora, o que podia ser visto como uma acção de promoção punk e transgressiva (que o foi), de repente esvaiu-se num pedido de desculpas envergonhado. Menos cool que isto era impossível. O disco, bem melhor do que lhe dão crédito, merecia mais. Mas como as coisas podem ficar sempre pior, depois veio o abominável “Songs Of Experience”, onde os U2 tentaram ser os Coldplay, vendendo a sua sonoridade a qualquer preço em busca do sucesso nas tabelas. Não o tiveram. Sem surpresa, SoE falhou, num tiro importante no porta-aviões dos U2, que os fez repensar a direcção que a banda tomava. Já lá vão cinco anos desde o mais recente disco dos U2. O que não quer dizer que os irlandeses estejam parados.

À semelhança do que têm feito outras estrelas Rock nos últimos anos (o isolamento na pandemia ajudou a tal), Bono escreveu uma autobiografia, a qual saiu no início deste mês. E à semelhança do que fez Bruce Springsteen quando lançou o seu livro, Bono decidiu apresentar “Surrender: 40 Songs, One Story” num espectáculo que é, efectivamente, uma peça de teatro sobre a sua vida, com a sua música, e interpretada por si. Esta receita pode soar um exercício de extrema auto-indulgência, especialmente quando falamos de Bono (o próprio admitiu-o), mas pincelada com a dose certa de ironia e humor auto-depreciativo, tornou-se na melhor coisa que o vocalista dos U2 fez desde, sei lá, o dueto com Luciano Pavarotti em 1995. Mas mais sobre isso daqui a pouco.

Serve esta longa introdução para vos dizer que, esta quarta-feira, 16 de novembro, fui ver o Bono apresentar o seu espetáculo “Stories Of Surrender” ao Palladium, no bairro de Soho, em Londres (ou como disse Bono “trocar o estádio pelo Palladium, para estar a solo em Soho”), e foi dos melhores shows que eu já vi na vida. Um Bono On Broadway, mas em West End, com um twist. Vamos por partes.

Ainda antes de começar, percebia-se que a noite ia ser especial. Três filas atrás de mim, sentou-se Noel Gallagher, que entrou na plateia para uma ovação de pé do público, que ele reagiu com um rasgado sorriso e um punho em riste (o Noel adora a atenção). Umas seis ou sete filas à minha frente, sentou-se Bob Geldof, mentor do Live Aid, que Bono saudou diretamente mais tarde no espectáculo, como o homem que lhe ensinou a “nunca aceitar um não como resposta”. Ao meu lado estava também Sadiq Khan, presidente da Câmara de Londres. E Bono ainda identificou Paul McGuinness, histórico manager dos U2.

No palco, o cenário não podia ser mais diferente do habitual banquete de adereços visuais dos U2 — apenas um violoncelo, uma harpa (!), um set de percussão e um laptop para os eventuais efeitos sonoros do espectáculo. E só. As canções foram despidas ao ponto de serem quase irreconhecíveis da sua forma original, e com isto pudemos testemunhar a humanidade, honestidade e proximidade da música dos U2, normalmente habituadas aos grandes palcos, mas tanta vezes diluída na megalomania das apresentações ao vivo. Nunca ninguém ouvira estas canções assim, por isso Bono teve que ir lá dentro, ao coração da música, buscar a alma e a razão que estiveram na sua origem, para as interpretações mais viscerais da sua música.

O cenário no palco era completado por uma mesa, quatro cadeiras (o mesmo número de elementos dos U2) e duas poltronas, onde Bono interpretou cenas chave da sua vida, fazendo o papel de si mesmo e de todos os outros intervenientes. Com direito a vozes e tudo. Ouvimos representações de Pavarotti, da Princesa Diana, dos quatro membros dos U2, e mais importantemente, da sua mulher Alison e do seu Pai Brendan Hewson.

Creio que a maioria do público se sentou no Palladium à espera de um espetáculo que mostrasse as canções dos U2 e a história da sua génese. Não foi bem isso que aconteceu. Essas estórias fizeram parte do show, com a criação de “I Will Follow” e “Sunday Bloody Sunday” à cabeça, mas estiveram longe de ser a parte mais importante da noite. Por falar em “Sunday Bloody Sunday”, quando Bono começou a cantar o refrão, praticamente a capella, o público juntou-se em uníssono. Era a força do hábito, do hábito dos estádios. Mas não era uma dessas noites. Com um gesto preciso e enfático, mostrando a sua indelével capacidade para dominar uma audiência, Bono acenou para baixo, como quem manda baixar o volume e mais ninguém cantou, mais ninguém se ouviu na sala. Pelo menos até “Pride (In The Name Of Love)”, quando Bono fez o mesmo gesto, mas desta feita para cima, como quem agora levanta o volume, e a audiência imediatamente anuiu, juntando-se-lhe a gritar “in the naaaaaaaame of loooove, one man in the name of love”. Podia ser este o nome do livro e do espectáculo. “Pride” foi a primeira vez que Bono recebeu um (tímido) elogio do seu Pai, com quem manteve até ao fim uma relação difícil e distante — ou apenas irlandesa —, e que nunca se deixou impressionar pelos milhões de fãs que o filho atraía. Bono desesperava pela aprovação do Pai e foi nessa busca incessante de atenção que conseguiu outro objectivo “menor” — a adulação de milhões de seguidores… Mas nunca do próprio Pai, quem ele mais desejava.

Bono começou por apresentar o espetáculo desta forma: “A história de como a minha mulher Alison me salvou de mim mesmo”. A música foi sempre o fio condutor e o elo de ligação entre todas as estórias, mas foi mesmo a história de como ele perseguiu a aprovação do seu Pai que roubou o coração do espetáculo. Um irlandês rijo e tradicional, Brendan Hewson não queria nem ouvir falar da família real britânica, isto até a Princesa Diana lhe aparecer à frente e em 8 segundos, séculos de dor geracional acumulada contra a realeza são dissolvidos, com apenas um sorriso da Lady Di. Relembro que Bono reproduz estas cenas com as vozes e os trejeitos de cada um dos intervenientes e é hilariante. Bono senta-se na poltrona a falar com o seu Pai em diferentes fases da sua vida, até ao momento em que Bono testemunha os últimos momentos do velho Hewson a lutar contra um cancro que o atirou para uma cama de um hospital. As penúltimas palavras do Pai de Bono foram: “Leva-me para fora daqui, quero ir para casa!”. Brendan murmurou qualquer coisa que Bono não percebeu, e quando este se aproximou para tentar ouvir, o seu Pai gritou “FUCK OFF!”. Foram as suas últimas palavras. Neste momento, eu estou no meu lugar já desfeito em lágrimas, sem conseguir controlar um choro copioso devido à inimaginável dor que deve ser ver um Pai naquele sofrimento. Bono disse que gosta de pensar que o seu Pai, nas últimas palavras, mandou foder toda a bagagem de dor que acumulou na sua vida. Eu queria ter-lhe dito que acho que ele mandou foder a morte. Que nunca se deu como rendido e mesmo quando estava prestes a ser derrotado, a última palavra que lhe ocorreu foi de resistência.

Bono terminou o espetáculo, já com o público lavado em lágrimas (bem, pelo menos eu estava), com uma interpretação emocional de “Torna A Surriento”, uma das melodias favoritas do Pai, que foi interpretado pelo cantor favorito de Bono— Luciano Pavarotti —, segundo ele, a melhor voz que alguma vez existiu no planeta Terra. A segunda vez que Bono impressionou o Pai foi quando o levou a conhecer Pavarotti — “algum cantor a sério tem que fazer companhia ao Luciano”, aludindo ao facto que ele sim, era um tenor, e Bono não. Mas quando o seu Pai morreu, diz Bono, um milagre aconteceu e ele começou a cantar como um tenor. Foi a herança que o velho Hewson lhe deixou.

Com a sua autobiografia sincera e este espetáculo intimista, Bono desceu do seu Olimpo de Rock Star e voltou a humanizar-se. No palco nu do Palladium, Bono não se podia esconder atrás de plataformas rotativas, fatos com lasers, ou limões espelhados gigantes. Para contar e cantar a sua história, teve por isso que ir buscar dentro de si o que fez dele um cantor e um comunicador de excelência. E provou que ainda mantém intactos todos os dons que o levaram até aqui. Foi maravilhoso. Fiz as pazes com o Bono e com a música dos U2 e estou já preparado para o próximo disco.

domingo, 2 de setembro de 2018

O que mais falta acontecer aos U2?

Os U2 precisam de repensar a banda. E o tempo é agora.


É difícil não sentir pena do que está a acontecer aos U2. Os últimos anos têm sido um pesadelo para a banda irlandesa, que parece ter entrado numa espiral derrotista de onde não consegue sair.

Já devem ter visto as notícias — Bono perdeu a voz ontem à noite em Berlim, naquele que foi apenas o segundo (!) concerto da digressão europeia. Se os U2 estivessem na fase final de uma longa digressão, até se podia compreender. Mas o Bono acabou de regressar das suas férias no Mónaco (onde esteve com o Noel Gallagher), por isso deveria ter a voz em boas condições. Não se entende. Tudo de mau parece acontecer aos irlandeses.

https://www.youtube.com/watch?v=A6rTFFbN7E8

É doloroso ver o Bono a sofrer ao longo da canção, a cantar como quem carrega uma cruz na sua via sacra. Para dizer a verdade, olhando para o vídeo, ninguém parece estar muito contente. O que se passa com os U2? Desde aquele infame episódio do lançamento de "Songs Of Innocence" que a banda parece andar deprimida e esquizofrénica, entre o medo de cair na irrelevância e o medo de perder os seus fãs mais conservadores, ainda ancorados à sonoridade de “The Electric Co.”.

O último álbum sofre gravemente com esta esquizofrenia. É uma lástima que não é carne, nem é peixe. Não é aquele throwback definitivo aos early days como foi "All That You Can't Leave Behind" e também não é aquele corte com o passado como foram"Achtung Baby", (o injustiçado) "Pop" e o mais recente (e também injustiçado) "No Line On The Horizon". Em vez disso, tenta agradar à franja mais nova com uma sonoridade beige que se confunde com o que passa na rádio generalista (e que não tem nada a ver com os U2), mas sem nunca sair muito da zona de conforto. A única coisa boa de "Songs Of Experience" foi fazer-me chegar à conclusão que o "Songs of Innocence" não tinha sido assim tão mau. O pior álbum da história dos U2. Está na hora de mudar esta onda. E o tempo é agora.

Já se passaram quase 10 anos de "No Line On The Horizon". É tempo de os U2 voltarem a esticar os limites da sua sonoridade, mas com algo verdadeiramente anguloso e perigoso. Algo que respeite a tradição inconformada dos U2. Está na hora de os U2 voltarem a ser felizes. Ou isso, ou de arrumarem definitivamente as botas. Esta depressão de piloto automático é que já chega. Já nem sequer tem piada bater nos U2.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A assustadora coldplayzação dos U2

A banda irlandesa entrou num processo agressivo de banalização e é cada vez mais uma força inofensiva


Já todos terão ouvido que vem aí um álbum novo dos U2. O que há uns anos era motivo de festejo e expectativa generalizada, hoje é olhado com um bocejo ou, pior ainda, com total indiferença. "Songs Of Experience" tem lançamento marcado para dia 1 de Dezembro, mas a julgar pela primeira amostra, não há muitas razões para entusiasmo.

"You’re The Best Thing About Me" tenta somar uma série de clichés dos U2 a um tema banal e desprovido de qualquer edge (pun intended), cujo único objectivo parece ser soar igual a tudo o que ouvimos nas rádios generalistas. É uma canção aguada que tenta ser uma série de coisas ao mesmo tempo e não consegue ser nenhuma; que quer encaixar perfeitamente na paisagem como um caçador furtivo e assim tentar devolver aos U2 uma relevância que lhes escapa há décadas. Este é um processo pelo qual já vimos os Coldplay passar há 10 anos (ler aqui sobre esse flagelo), mas não é assim que o quarteto irlandês lá vai.



O problema de aguagem da música dos U2 não vem de agora. Se recuarmos um pouco na História da banda, tudo terá começado com o falhanço comercial do arrojado álbum "Pop" em 1997, que à data vendeu menos que qualquer disco desde "October" em 1981 e até menos que qualquer álbum lançado depois, até "Songs Of Innocence" em 2014 (já lá vamos). Em "Pop", os U2 continuaram a fazer o caminho corajoso de experimentação que começaram em "Achtung Baby", embora com resultados bem mais decepcionantes. A banda apareceu irreconhecível em "Pop", mas se isso alienou grande parte da audiência, tal não era necessariamente negativo. Foi uma experiência menos conseguida, mas outras poderiam vir a seguir. Faltou esse discernimento à banda na altura.

Em vez disso, soaram os alarmes financeiros e a banda percebeu que para manter o nível de sucesso e de receitas, tinha que voltar a soar a algo que o público reconhecesse imediatamente na rádio – a sonoridade dos U2, cuja impressão digital remonta a "The Electric Co.". E foi aí que os U2 se tornaram numa banda de auto-revivalismo. "All That You Can't Leave Behind" seguiu-se em 2000 e restaurou aos U2 o título de "Maior banda Rock do mundo" (e mais bem sucedida financeiramente) durante mais alguns anos. Este poderia ter sido apenas um álbum de regresso às raízes, um throwback antes de voltar a olhar para o futuro. Mas não.

A banda seguiu o mesmo rasto de regresso ao passado em "How To Dismantle An Atomic Bomb" que, apesar do título bombástico, se revelou completamente inofensivo. Manteve-se o sucesso, sim, mas à custa da crescente banalização do produto da banda. Os U2 inauguraram aqui uma nova fase da banda: os U2 em auto-piloto.

U2 em auto-piloto é um conceito que tentar somar múltiplos clichés da banda à sua música (quantos mais, melhor), de forma a que ela seja sucessivamente mais reconhecível e, claro está, comercial. Note-se que este não é um conceito nefasto em si mesmo. O pior é quando ele é aplicado a temas banais e desinspirados, produzindo resultados pouco acima do medíocre.

Para o álbum seguinte, os U2 tentaram – com sucesso – inverter esta tendência. A banda voltou à experimentação em (metade de) "No Line On the Horizon" em 2009. Pela primeira vez em mais de 10 anos, os U2 voltaram a correr riscos e a esticar as fronteiras da sua sonoridade, naquele que foi o álbum mais ambicioso desde "Pop". Mesmo sem escapar a uma mediocridade latente a partir do quarto tema do álbum, o início de "No Line" bateu forte com o tema-título, o belíssimo single "Magnificent" e o épico "Moment Of Surrender" – um dos mais intensos temas dos U2 de todo o sempre. A digressão 360º (que passou em Coimbra para dois concertos superlativos e muito molhados) também foi um sucesso global e devolveu aos U2 aquele edge que lhes escapava há uma década. O pior veio depois.



Tudo correu mal com "Songs Of Innocence". Começando com o lançamento intrusivo, pago a peso de ouro pela Apple e que (talvez por isso) acabou com o álbum nas contas de todos os utilizadores do iTunes, mesmo aqueles que não podem ver os U2 à frente (que é algo que eu não compreendo, mas isso é assunto para outro tópico, já discutido aqui). Pior foi ouvir Bono a desculpar-se por esta iniciativa arriscada, naquele que terá sido o momento mais anti-punk da História de uma banda que começou com raízes punk. Uma miséria.

Pior ainda que todo o backlash gerado pela estratégia de lançamento de "Songs Of Innocence", só mesmo o conteúdo do álbum. Se pelo menos fosse alguma coisa que se aproveitasse, com certeza que as pessoas não se queixariam tanto em ter música de borla na sua conta. O álbum mandou à fava a experimentação em toda a linha (excepção talvez a "Sleep Like A Baby Tonight") e limitou-se a somar clichés, numa hipérbole de U2 em auto-piloto sem qualquer história para contar. Salvou-se o belo single "Every Breaking Wave", "California" e pouco mais. O desinteresse reflectiu-se nas vendas (abaixo ainda de "Pop") e eu pensei que, tal como na ressaca deste, os alarmes voltassem a soar no campo dos U2. Mas não.

"You’re The Best Thing About Me" chegou e volta a mostrar a mesma lástima de clichés sem conteúdo que pejaram "Songs Of Innocence". Nunca os U2 soaram tão beige. Para um fã como eu, esta banalização dos U2 começa a tornar-se exasperante. Talvez o problema seja meu e esta seja apenas uma questão de gestão de expectativas. Fui habituado a esperar grandes feitos dos U2. Fui habituado a uma banda sempre a tentar novas coisas, sempre a esticar os limites da sua sonoridade. A mesma sonoridade que rasgou fronteiras nos anos 90 e que agora parece estar confinada a um quadrado. Talvez tenha sido mal habituado e agora tenha que me convencer que a banda é uma força esgotada, beige e inofensiva.

Desejo fortemente estar enganado e que "Songs Of Experience" me surpreenda positivamente. Mas a avaliar pela primeira amostra, a coldplayzação dos U2 segue dentro de momentos.

domingo, 5 de março de 2017

Quando os U2 encontraram aquilo que procuravam — 30 anos de "The Joshua Tree"

"The Joshua Tree" faz 30 anos. Tempo de relembrar o álbum quintessencial dos U2.

Vivem-se tempos estranhos no mundo dos U2. Longe parecem ir os anos da aclamação global e das multidões a dormir ao relento numa BP para agarrar um bilhete. Da última vez que deram à costa, os U2 pareceram aquela tia que leva à festa de natal um vestido inusitadamente arrojado para a sua idade — quiseram ser punks ao colocarem o álbum "Songs Of Innocence" no iTunes de todos os utilizadores do mundo, mas acabaram queimados com a jogada. E para piorar tudo, ainda caíram no ridículo de pedir desculpa. Menos punk que isto era impossível. Mais noção precisava-se, Bono.

Talvez em resposta ao (despropositado) backlash global do caso iTunes, os U2 começaram finalmente a agir como uma banda da sua idade. Decidiram arrumar o álbum "Songs Of Experience" na gaveta (tal como tinham feito com "Songs Of Ascent", o "Zooropa" de "No Line On The Horizon") em detrimento de uma digressão nostálgica para comemorar os 30 anos de "The Joshua Tree". O aniversário do álbum é precisamente hoje, um dia em que, mais que nunca, é uncool falar nos U2. Mas como ignorar um álbum que mudou a vida de tanta gente? A minha mudou. Por isso fuck the uncool, vamos falar em "The Joshua Tree".

Há vários prismas por onde olhar para "The Joshua Tree", sendo o mais óbvio o seu sucesso: vendeu 25 milhões de cópias; é o álbum mais vendido dos U2 e um dos mais vendidos de sempre; ganhou o Grammy de Álbum do Ano e é presença habitual nas listas dos melhores álbuns para as principais publicações. Não admira por isso que este tenha sido o álbum que consagrou os U2 como 'a maior banda do planeta', um título que os próprios inventaram para si e que mantiveram durante mais alguns anos, mesmo quando (e principalmente quando) decidiram desmanchar tudo para refazer de novo (mas já estou a andar rápido de mais).

"The Joshua Tree" é o produto de maturação de uma década, foi a cristalização de um caminho que os U2 percorreram durante 10 anos e onde em breve se veriam encurralados (lá estou eu a andar depressa demais). É o quinto álbum da banda e contém todos os elementos com que foi polvilhando a sua discografia ao longo dos anos 80. Mal deixamos cair a agulha, somos submergidos pela solene introdução ambiente de "Where The Streets Have No Name", uma marca-de-água de Brian Eno, que estende a passadeira para a entrada da marca-de-água de The Edge (e dos U2) — "o riff" que ecoa ao infinito. Já tínhamos ouvido variações d'"o riff" em temas tão longínquos como "The Electric Co.", ou mais proximamente em "Pride (In The Name Of Love)"; mas é aqui que a imagem de marca da sonoridade dos U2 se cristaliza.

A introdução solene dá o mote para o traje polido e grandioso que os U2 pretendem dar ao álbum. Tudo em "The Joshua Tree" soa grande, grandioso, grandiloquente; é o gospel de "I Still Haven't Found What I'm Looking For", são os prantos de "With Or Without You", o sermão de "Mothers Of The Disappeared", a fúria de "Exit", a pregação (e a fúria) de "Bullet The Blue Sky". Aliás, os U2 construíram um séquito ao longo de toda a década de 80 (lembrem-se dos cartazes que enchiam o Wembley no Live Aid, dois anos antes) e passam "The Joshua Tree" a pregar às suas hostes. Bono aparece aqui como o pregador, completando assim a transformação do punk adolescente que apareceu em "Boy" 10 anos antes. A esponteinade de "Boy" foi aniquilada em favor de uma abordagem mais metódica e formulaica mas, e este é um grande "mas", com melhores canções. 30 anos volvidos, estas canções continuam um deleite para os ouvidos.

É a força das canções, o grande suporte de "The Joshua Tree". Elas constroem aquela que é, acima de tudo, uma carta de amor ao imaginário americano. É sobre isso que Bono prega. Note-se que tal não significa necessariamente uma carta de amor à América de então e muito menos à política de Reagan, como é bem notório em "Bullet The Blue Sky". É mais uma carta de amor aos desertos ("I'll show you a place high on a desert plain"), às cidades ("I have scaled these city walls, only to be with you") e ao sonho americano ("She is liberty and she comes to rescue me, hope, faith, her vanity"). E eis que chegámos à palavra-chave que melhor define o álbum: esperança. Esperança é o sentimento que conduz todo um álbum intenso em imagens (vide as chamas de "Bullet The Blue Sky") e intenso em sentimentos de quem vive nessas imagens. Numa altura que o mundo vive uma relação de amor-ódio com a América, o álbum ganha "The Joshua Tree" uma renovada relevância actual. 

Mas mais que a política, que pouco ou nada interessa para quem ouve música, é a forma como as canções de "The Joshua Tree" ainda ressoam no público o que mantém o álbum relevante. Não importa se Bono apoia o Pence ou critica o Trump, porque no fim do dia o que interessa é aquela noite em que dançámos agarradinhos ao som de "With Or Without You"; ou quando gritámos com um amigo a plenos pulmões, abraçados e já com os copos, que "as ruas não têm nome" enquanto fazíamos juras de amizade eterna; ou quando sozinhos ouvimos o Lado 2, de canções desconhecidas e "só nossas" e de repente deixámos de estar sozinhos. Momentos que marcam, memórias que ficam e que eternizam "The Joshua Tree".

O grande paradoxo de "The Joshua Tree" encerra no título de um dos seus três hits: "I Still Haven't Found What I'm Looking For". Porquê? Porque como diria o José Hermano Saraiva, foi aqui, foi exactamente aqui que os U2 encontraram aquilo que procuraram toda a sua carreira. E foi daqui que passaram os 10 anos seguintes a tentar fugir com "Achtung Baby", "Zooropa", "Pop" e "Passengers", depois de esgotarem a fórmula em "Rattle And Hum"; e foi aqui que tentaram desesperadamente voltar depois disso, com os mais melódicos "All That You Can't Leave Behind" e "How To Dismantle An Atomic Bomb". Por fim, este ano os U2 voltam sem medos às suas origens e voltam a levar o álbum quintessencial da sua discografia à estrada numa digressão que, para mal de nós, não passará por Portugal. Quem não tem com saudades de uma noite ao relento na BP?