A banda sonora que engrandece as nossas vidas
A pergunta é feita por John Cusack no filme "High Fidelity" e tem muito que se lhe diga. Dono de uma loja de discos e de uma vasta colecção de vinil organizada autobiograficamente, John Cusack representa uma visão acabada do melómano-coleccionador, romântico-obsessivo, apaixonado pelo sexo oposto e pela música em partes iguais e complementares. Tão bem que o compreendo.
É pertinente, a sua reflexão melómano-existencialista. Será que ouvimos música porque nos sentimos miseráveis, ou sentimo-nos miseráveis porque ouvimos música? Preocupamo-nos tanto com a exposição das crianças ao sexo e à violência (pelo menos teoricamente; na prática, basta ligar a televisão para perceber que é uma treta, não é CMTV?), mas ninguém reflecte sobre a permanente exposição a música sobre rejeição, dor e miséria. Quando usamos a música para lidar com o que nos atormenta, será que nos cura da dor, ou prolonga o nosso sofrimento? Parece uma charada reminiscente do ovo e da galinha, mas — se quisermos aplicar a sabedoria popular — eu diria que é mais um caso de pescadinha de rabo na boca.
Se não fosse a música, os psicólogos e os psiquiatras teriam muito mais trabalho
Não há paciência para ouvir o "Happy" do Pharrel, depois de uma segunda-feira de trânsito caótico e chefe insuportável, à espera de uma mensagem dela que nunca chega. À saída do trabalho, toca o telemóvel — uma mensagem! "Hoje não dá", diz. "Happy"? Tenho lá paciência para alegrias. "It's laughter I disdain", dizia muito bem o Paul Simon. O que apetece mesmo é chegar a casa, chutar os sapatos à porta e pôr The Smiths, preferencialmente um tema ermo do "Hatful Of Hollow", só para calcar mais o estado de espírito e curtir a depressão. É um ciclo vicioso: quanto mais em baixo estou, mais down é a música que quero ouvir.
E se estiver mesmo na merda, então só lá vou com algo violentamente niilista dos Godspeed You! Black Emperor, a pintar um cenário apocalíptico onde as bandeiras estão todas mortas no cimo das hastes. Não me tira do buraco, mas é a terapia que tenho à mão. Se não fosse a música, os psicólogos e os psiquiatras teriam muito mais trabalho.
Então e se o dia correr bem? Sexta-feira soalheira, almoço com ela na praia e o trabalho todo feito. Nesse caso, sim, já apetece pôr uns Duran Duran e abrir a janela do carro para curtir um ventinho na cara. Ou puxar de uns Deep Purple e carregar no acelerador na auto-estrada. Ou o melhor talvez seja ir buscar aquela mixtape dos Radiohead e recordar como eram bons os tempos gloriosos da depressão.
Moral da história? Não interessa quem veio primeiro, se a música, se a miséria. A música, como a vida, é o que quisermos dela. Mas a soma de ambas resulta numa vivência intensa e cinemática que nos esconde e protege do marasmo da realidade. E é sempre melhor ter música, que não ter. Porque todos os filmes ficam engrandecidos com uma banda sonora, mesmo se esse filme for a nossa vida mundana.
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