quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O casal de imbecis que quer impedir "Last Christmas" de ajudar os outros

A propósito do casal que angariou dinheiro para tirar do ar uma das canções mais amadas e mais generosas da quadra natalícia.



Se têm acompanhado as notícias desta silly season natalícia, já devem ter lido sobre aquele casal de imbecis que convenceu centenas de outros imbecis a doarem dinheiro para a causa mais estúpida do ano — comprar os direitos de "Last Christmas" dos Wham!, destruir as masters e tirar a música do ar. Não que eu queira dar muita publicidade a este grupo de idiotas, mas a NiT escreveu sobre isso, e podem ler tudo aqui.

Como piada, a ideia pode funcionar para os tristes. Mais que isso, não passa de uma manobra para ganhar publicidade (como eu lhes estou aqui a dar), ou, na pior das hipóteses, uma grande burla. Na prática, a ideia é obviamente inexequível. "Last Christmas" é uma das mais populares, mais perenes e mais amadas canções de Natal da História da música popular. Foi originalmente lançada em 1984, há quase 40 anos, mas a sua popularidade não pára de aumentar. Originalmente impedida de chegar ao lugar cimeiro das tabelas por outro grande hit natalício onde George Michael também canta — "Do They Know It's Christmas", da Band Aid —, "Last Christmas" foi até há 2 anos o single mais vendido nas tabelas britânicas que nunca chegara a número 1. Foi apenas na última semana de 2020 (tecnicamente no dia 1 Janeiro de 2021), que o tema finalmente alcançou o primeiro lugar. A canção não vai desaparecer tão cedo e não é um grupo de idiotas que pode mudar isso.

O que este casal fez, ao convencer centenas de tontos a darem o seu dinheiro, angariando uma soma a norte de 62 mil dólares, foi basicamente burlar esta gente de gosto discutível e capacidade cognitiva indiscutivelmente fraca. Com esta soma, muito abaixo dos 20 milhões necessários para começar a conversa com a editora, nem sequer vão conseguir retirar os "oooh ooaah" do George no início da música, antes da lírica começar. E no entanto, amealharam dinheiro suficiente para não trabalhar um ano, à custa de alguns idiotas. Bem feito para eles. Tentar acenar dinheiro mal intencionado para acabar com o que milhões de outras pessoas gostam é a antítese do que é o Natal. A propósito desta idiotice, a vocalista dos Skunk Anansie, Skin, comentou: "aposto que eles mudariam de ideias quando o dinheiro das royalties começasse a entrar!"

Mas pior que a maldade de tentar impedir os outros de ouvir música que gostam é impedir que os mais necessitados beneficiem do dinheiro que é todos os anos angariado por "Last Christmas". Bem sei que não é um facto muito conhecido, até porque o George Michael ajudava os outros desinteressadamente, sempre com a condição de não ser conhecido como o benfeitor — a maior parte destes casos só foram conhecidos após a sua morte em 2016. Mas a verdade é que o dinheiro das royalties de "Last Christmas" ganho por George Michael é doado a causas humanitárias desde 1984... até aos dias de hoje. Foi a própria família que confirmou esse era o desejo de George, em mais um acto de bondade de um homem que era demasiado boa gente para um mundo tantas vezes cruel para com ele.

George disse em 1985 à revista Smash Hits (as minhas fontes sobre o George Michael são seguras): "Todos os meus lucros de "Last Christmas" vão também para a Etiópia. O Band Aid foi óptimo, mas foi só um dia na vida de toda a gente. Acho que não é suficiente. É impossível não ter uma consciência social sobre estas coisas quando estás a fazer rios de dinheiro. Por isso tentei convencer a editora, CBS, para doar a parte deles dos lucros também, mas eles não quiseram "abrir um precedente". Mas espero que outros artistas no Top 10 de Natal também doem os seus lucros". Que eu saiba, foi só mesmo George Michael a fazê-lo. Saudades do George.

Por isso já sabem, sempre que ouvirem "Last Christmas", para além de ouvirem uma grande música, também estão a ajudar. Não é isso que é o Natal?


sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Quero tudo e quero tudo agora: os Queen lançam caixa de luxo de “The Miracle”


Quando soube que os Queen iam lançar uma box de luxo do álbum "The Miracle", a minha reação foi de estupefação — “A sério, o "The Miracle"? Qual é que vão fazer a seguir, o "Flash Gordon"?”. Não é segredo que não morro de amores pelo antepenúltimo disco dos Queen, mas como fã incurável que sou, já tinha a box nas mãos no primeiro dia. O meu veredicto final não podia estar mais longe da impressão inicial. Este é o melhor lançamento de arquivo dos Queen desde, pelo menos, 2014, quando saiu “Live At The Rainbow”.

Independentemente da (falta de) inspiração do álbum, “The Miracle” é um disco importante na história dos Queen. Ao mesmo tempo que a banda tentava fazer um comeback portentoso — não foi por acaso que o single de avanço foi o roqueiro “I Want It All” —, por esta altura, circa 1987, os Queen já sabiam da condição de Freddie, por isso o disco começa a ter um feeling de despedida. A colocação de “Was It All Worth It?” no fim do disco também não é inocente. Este feeling seria muito mais acentuado nas sessões subsequentes, que deram origem a “Innuendo” e “Made In Heaven”. O estado de espírito de “The Miracle” é ainda muito mais optimista, desde a abertura com "Party", até ao tema-título "The Miracle".

A escolha deste disco para uma edição de luxo é enigmática, por não ser (de todo) um dos melhores discos dos Queen, mas por outro lado essa é precisamente a razão que torna a reavaliação de “The Miracle” mais premente. Será assim tão mau como a fama que carrega? Esta caixa confirma que não.

Para esta edição de luxo, os Queen foram à master digital restaurar a versão original de "The Miracle", que tinha “Too Much Love Will Kill You” no Lado A, entre "I Want It All" e "The Invisible Man". O tema ficou envolto em disputas de royalties que não foram resolvidas antes do lançamento do disco, e como tal, só veria a luz do dia no álbum a solo de Brian May, “Back To The Light”, em 1992. A versão das sessões de “The Miracle” só apareceria mais tarde, no disco póstumo dos Queen, “Made In Heaven”, em 1995. Devido ao facto de ser uma master digital, não podemos esperar grandes melhorias nesta nova tiragem em vinil, mas fica restituída a verdade do álbum.

A origem digital do álbum, que foi gravado praticamente por inteiro numa consola digital, e com uso excessivo de instrumentação electrónica, é um dos sintomas que explicam a tepidez e a falta de alma em "The Miracle". Como se explica o abuso da electrónica, especialmente quando se tem executantes tão virtuosos numa banda como os Queen? O factor humano é providencial na sonoridade dos Queen e isso fica provado no segundo disco da caixa, "The Miracle Sessions" — a jóia da coroa desta edição —, que mostra Freddie, Brian, Roger e John em estúdio, livres e soltos, a tocarem as suas partes nos respectivos instrumentos. Estes foram, em muitos casos, substituídos mais tarde por sintetizadores. À falta de versões ao vivo destas canções (não houve digressão devido à condição de Freddie), "The Miracle Sessions" mostra-nos como soariam estes temas caso os Queen tivessem levado o álbum para a estrada.

"The Miracle Sessions" é então dividido em duas partes, começando com uma versão alternativa do álbum, constituída por uma amálgama de demos, takes alternativos e ensaios de estúdio, colados com diálogo para dar uma sensação de continuidade. É uma experiência alternativa ao álbum original que, como referi em cima, é o mais próximo que alguma vez estaremos de ouvir as canções de "The Miracle" ao vivo. E é uma maravilha. Mesmo faixas absolutamente amorfas como "Party" e "Rain Must Fall" ganham nova vida nestas versões com instrumentação humana. É a primeira vez que ouvimos "Breakthru", de longe o melhor tema de The Miracle, com bateria e baixo verdadeiros. Este disco confirma também que "Breakthru" é na verdade uma colagem com outro tema, "When Love Breaks Up", que ouvimos aqui pela primeira vez.

Como seria de esperar, as melhores músicas da iteração final do álbum são as melhores músicas dos ensaios. "Scandal" soa por isso gloriosamente na sua versão despida em estúdio. O ensaio de "I Want It All" bate ainda mais forte que a versão final e é delicioso ouvir Freddie a deixar escapar um “shit!” quando entra cedo demais em "I Want It All". Freddie volta a antecipar-se em "Rain Must Fall", mas desta vez consegue segurar o vernáculo. "The Invisible Man" é aqui a demo original de Roger, que já conhecíamos da edição deluxe de 2011, mas agora com um take alternativo e estendido do solo de guitarra de Brian May no fim.

A segunda parte de "The Miracle Sessions" desvenda uma antologia de canções, (supostamente) completamente novas, gravadas nas sessões de "The Miracle". Supostamente porque temas como "Dog With A Bone", "I Guess We’re Falling Out", e o mais recente single "Face it Alone" já eram conhecidos dos fãs que frequentavam as convenções dos Queen desde há décadas. Confesso que esperava que a escolha para o tema de promoção a esta box recaísse sobre "I Guess We’re Falling Out", uma música muito mais radiofónica e representativa do material mais upbeat das sessões de "The Miracle" — em oposição a "Face It Alone", que captura melhor o mood mais sombrio de "Innuendo". O facto é que "Falling Out" requeria gravações adicionais devido aos nananas de Freddie, que revelam que a lírica não estava terminada (e que explica por que não foi utilizado em "Made In Heaven").

Não é certa a extensão da recauchutagem em estúdio de "Face It Alone" (há ali pelo menos uma correção de tom na faixa vocal de Freddie) a quanto foi tratado, mas tendo em conta o resultado minimalista, não me parece que Brian e Roger tenham mexido muito com as gravações originais. E este até é um exemplo em que um solo a rasgar de Brian May poderia elevar a canção para outro nível. "Face It Alone" nao é o melhor tema "perdido" interpretado por Freddie Mercury (esse continua a ser "It's In Everyone Of Us" de David Pomeranz, a última performance ao vivo na vida de Freddie), mas em todo o caso, é sempre bom ouvir música "nova" de Freddie Mercury. Nem que fosse a cantar o "Malhão".

"Dog With A Bone" é mais uma sessão de improviso do que uma canção, mas serve para nos relembrar da versatilidade e poder absurdos da voz de Roger Taylor. Só mesmo nos Queen é que alguém com este talento pode ser "só" o baterista. "Water" e "You Know You Belong To Me" são, estas sim, composições completamente novas e desconhecidas de Brian May, e eu só me pergunto se ele se esqueceu da existência destes temas. Nunca mais apareceram em discos dos Queen, ou sequer a solo.

O terceiro disco da caixa, "Miracumentals" (a sério, Brian? Não era melhor, sei lá, Instrumiracles? Ok, é igualmente mau), é outra revelação — um disco de versões instrumentais que revela pequenos detalhes, como por exemplo as harmonias na introdução de "Breakthru", as quais parecem retiradas de um tema do álbum “Barcelona”, que Freddie produziu na mesma altura que “The Miracle”. É um disco óptimo para fazer karaoke.

O set inclui ainda material vídeo em BluRay e DVD, que reúne os clipes de "The Miracle" e os respectivos making-ofs. Mais importante ainda, é possível escolher as misturas surround dos singles, que foram criadas há 20 anos para o DVD "Greatest Video Hits 2", bem como os respectivos comentários de Brian e Roger, também gravados para esse DVD. É pena que o resto do álbum não tenha sido misturado em surround.

A box de “The Miracle” é, de longe, o melhor produto a sair da esfera dos Queen nos últimos anos. Tem que ser o novo barómetro para os próximos lançamentos. E se a nova regra do Dr Brian May for lançar versões expandidas dos álbuns menos bem conotados dos Queen, que venha daí uma caixa de luxo do "Hot Space". Nenhum outro disco dos Queen precisa tanto de uma reavaliação como esta corajosa e transgressiva incursão pela Gay Disco no início dos anos 80.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Bono ao vivo no London Palladium: a música despida dos U2 num espetáculo intimista

Os últimos dez anos não foram simpáticos para Bono. Desde o fim da tremendamente bem sucedida 360º Tour (que pudemos ver em Coimbra), que parece que os U2 só sabem dar passos em falso. Primeiro, foi o infame lançamento de “Songs Of Innocence”, forçado a todos os utilizadores da Apple no mundo. Quando estalou a (absolutamente exagerada) polémica que, sublinhe-se, só aconteceu porque eram os U2, Bono fez pior ainda — pediu desculpa. Ora, o que podia ser visto como uma acção de promoção punk e transgressiva (que o foi), de repente esvaiu-se num pedido de desculpas envergonhado. Menos cool que isto era impossível. O disco, bem melhor do que lhe dão crédito, merecia mais. Mas como as coisas podem ficar sempre pior, depois veio o abominável “Songs Of Experience”, onde os U2 tentaram ser os Coldplay, vendendo a sua sonoridade a qualquer preço em busca do sucesso nas tabelas. Não o tiveram. Sem surpresa, SoE falhou, num tiro importante no porta-aviões dos U2, que os fez repensar a direcção que a banda tomava. Já lá vão cinco anos desde o mais recente disco dos U2. O que não quer dizer que os irlandeses estejam parados.

À semelhança do que têm feito outras estrelas Rock nos últimos anos (o isolamento na pandemia ajudou a tal), Bono escreveu uma autobiografia, a qual saiu no início deste mês. E à semelhança do que fez Bruce Springsteen quando lançou o seu livro, Bono decidiu apresentar “Surrender: 40 Songs, One Story” num espectáculo que é, efectivamente, uma peça de teatro sobre a sua vida, com a sua música, e interpretada por si. Esta receita pode soar um exercício de extrema auto-indulgência, especialmente quando falamos de Bono (o próprio admitiu-o), mas pincelada com a dose certa de ironia e humor auto-depreciativo, tornou-se na melhor coisa que o vocalista dos U2 fez desde, sei lá, o dueto com Luciano Pavarotti em 1995. Mas mais sobre isso daqui a pouco.

Serve esta longa introdução para vos dizer que, esta quarta-feira, 16 de novembro, fui ver o Bono apresentar o seu espetáculo “Stories Of Surrender” ao Palladium, no bairro de Soho, em Londres (ou como disse Bono “trocar o estádio pelo Palladium, para estar a solo em Soho”), e foi dos melhores shows que eu já vi na vida. Um Bono On Broadway, mas em West End, com um twist. Vamos por partes.

Ainda antes de começar, percebia-se que a noite ia ser especial. Três filas atrás de mim, sentou-se Noel Gallagher, que entrou na plateia para uma ovação de pé do público, que ele reagiu com um rasgado sorriso e um punho em riste (o Noel adora a atenção). Umas seis ou sete filas à minha frente, sentou-se Bob Geldof, mentor do Live Aid, que Bono saudou diretamente mais tarde no espectáculo, como o homem que lhe ensinou a “nunca aceitar um não como resposta”. Ao meu lado estava também Sadiq Khan, presidente da Câmara de Londres. E Bono ainda identificou Paul McGuinness, histórico manager dos U2.

No palco, o cenário não podia ser mais diferente do habitual banquete de adereços visuais dos U2 — apenas um violoncelo, uma harpa (!), um set de percussão e um laptop para os eventuais efeitos sonoros do espectáculo. E só. As canções foram despidas ao ponto de serem quase irreconhecíveis da sua forma original, e com isto pudemos testemunhar a humanidade, honestidade e proximidade da música dos U2, normalmente habituadas aos grandes palcos, mas tanta vezes diluída na megalomania das apresentações ao vivo. Nunca ninguém ouvira estas canções assim, por isso Bono teve que ir lá dentro, ao coração da música, buscar a alma e a razão que estiveram na sua origem, para as interpretações mais viscerais da sua música.

O cenário no palco era completado por uma mesa, quatro cadeiras (o mesmo número de elementos dos U2) e duas poltronas, onde Bono interpretou cenas chave da sua vida, fazendo o papel de si mesmo e de todos os outros intervenientes. Com direito a vozes e tudo. Ouvimos representações de Pavarotti, da Princesa Diana, dos quatro membros dos U2, e mais importantemente, da sua mulher Alison e do seu Pai Brendan Hewson.

Creio que a maioria do público se sentou no Palladium à espera de um espetáculo que mostrasse as canções dos U2 e a história da sua génese. Não foi bem isso que aconteceu. Essas estórias fizeram parte do show, com a criação de “I Will Follow” e “Sunday Bloody Sunday” à cabeça, mas estiveram longe de ser a parte mais importante da noite. Por falar em “Sunday Bloody Sunday”, quando Bono começou a cantar o refrão, praticamente a capella, o público juntou-se em uníssono. Era a força do hábito, do hábito dos estádios. Mas não era uma dessas noites. Com um gesto preciso e enfático, mostrando a sua indelével capacidade para dominar uma audiência, Bono acenou para baixo, como quem manda baixar o volume e mais ninguém cantou, mais ninguém se ouviu na sala. Pelo menos até “Pride (In The Name Of Love)”, quando Bono fez o mesmo gesto, mas desta feita para cima, como quem agora levanta o volume, e a audiência imediatamente anuiu, juntando-se-lhe a gritar “in the naaaaaaaame of loooove, one man in the name of love”. Podia ser este o nome do livro e do espectáculo. “Pride” foi a primeira vez que Bono recebeu um (tímido) elogio do seu Pai, com quem manteve até ao fim uma relação difícil e distante — ou apenas irlandesa —, e que nunca se deixou impressionar pelos milhões de fãs que o filho atraía. Bono desesperava pela aprovação do Pai e foi nessa busca incessante de atenção que conseguiu outro objectivo “menor” — a adulação de milhões de seguidores… Mas nunca do próprio Pai, quem ele mais desejava.

Bono começou por apresentar o espetáculo desta forma: “A história de como a minha mulher Alison me salvou de mim mesmo”. A música foi sempre o fio condutor e o elo de ligação entre todas as estórias, mas foi mesmo a história de como ele perseguiu a aprovação do seu Pai que roubou o coração do espetáculo. Um irlandês rijo e tradicional, Brendan Hewson não queria nem ouvir falar da família real britânica, isto até a Princesa Diana lhe aparecer à frente e em 8 segundos, séculos de dor geracional acumulada contra a realeza são dissolvidos, com apenas um sorriso da Lady Di. Relembro que Bono reproduz estas cenas com as vozes e os trejeitos de cada um dos intervenientes e é hilariante. Bono senta-se na poltrona a falar com o seu Pai em diferentes fases da sua vida, até ao momento em que Bono testemunha os últimos momentos do velho Hewson a lutar contra um cancro que o atirou para uma cama de um hospital. As penúltimas palavras do Pai de Bono foram: “Leva-me para fora daqui, quero ir para casa!”. Brendan murmurou qualquer coisa que Bono não percebeu, e quando este se aproximou para tentar ouvir, o seu Pai gritou “FUCK OFF!”. Foram as suas últimas palavras. Neste momento, eu estou no meu lugar já desfeito em lágrimas, sem conseguir controlar um choro copioso devido à inimaginável dor que deve ser ver um Pai naquele sofrimento. Bono disse que gosta de pensar que o seu Pai, nas últimas palavras, mandou foder toda a bagagem de dor que acumulou na sua vida. Eu queria ter-lhe dito que acho que ele mandou foder a morte. Que nunca se deu como rendido e mesmo quando estava prestes a ser derrotado, a última palavra que lhe ocorreu foi de resistência.

Bono terminou o espetáculo, já com o público lavado em lágrimas (bem, pelo menos eu estava), com uma interpretação emocional de “Torna A Surriento”, uma das melodias favoritas do Pai, que foi interpretado pelo cantor favorito de Bono— Luciano Pavarotti —, segundo ele, a melhor voz que alguma vez existiu no planeta Terra. A segunda vez que Bono impressionou o Pai foi quando o levou a conhecer Pavarotti — “algum cantor a sério tem que fazer companhia ao Luciano”, aludindo ao facto que ele sim, era um tenor, e Bono não. Mas quando o seu Pai morreu, diz Bono, um milagre aconteceu e ele começou a cantar como um tenor. Foi a herança que o velho Hewson lhe deixou.

Com a sua autobiografia sincera e este espetáculo intimista, Bono desceu do seu Olimpo de Rock Star e voltou a humanizar-se. No palco nu do Palladium, Bono não se podia esconder atrás de plataformas rotativas, fatos com lasers, ou limões espelhados gigantes. Para contar e cantar a sua história, teve por isso que ir buscar dentro de si o que fez dele um cantor e um comunicador de excelência. E provou que ainda mantém intactos todos os dons que o levaram até aqui. Foi maravilhoso. Fiz as pazes com o Bono e com a música dos U2 e estou já preparado para o próximo disco.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

“Only The Strong Survive”: o projecto de vaidade que fecha o ano horrível de Bruce Springsteen


Sou fã do Bruce Springsteen desde que o meu Pai trouxe para casa um CD de capa branca, com um homem de guitarra às costas, tinha eu 9 anos. Desde que fui introduzido com o “Greatest Hits”, que tive a minha vida preenchida e aumentada pela música do Bruce. Entre o meu velhinho blogue e as publicações da NiT, já escrevi mais de 30 textos sobre o Boss, todos elogiosos para com a sua música. Num artigo escrito há 3 anos, conto o episódio de quando o conheci pessoalmente e pude atestar que ele era tão cool como eu imaginava. Acrescentei na altura que Bruce “é muito mais do que um mero herói. Os heróis têm uma vida finita e perfeita. Vivem durante um filme, um livro, uma música. Bruce é real, com todas as imperfeições que tal encerra e que constroem um personagem muito mais complexo”. Eu gosto de ver os meus heróis sob a lupa dos seus defeitos (não há nenhum que não os tenha), de modo a humanizá-los. Porque todos os heróis cometem erros e Bruce acumulou muitos no último ano. E o pior de tudo, é que eu acho que ele nem sequer sabe que errou.

As coisas até começaram a prometer com o anúncio da digressão europeia da E Street Band, a primeira desde 2017; e possivelmente a última, tendo em conta que Bruce já leva 73 anos e os shows da banda são célebres pela energia eletrizante e pela duração acima das 3 horas. A bolha de entusiasmo rebentou rapidamente com o escândalo da venda de bilhetes para a digressão americana (que eu vou explicar com mais detalhe em baixo) e, como as coisas podem ficar sempre piores, agora chega-nos um álbum de covers Soul absolutamente insípido, que na melhor das hipóteses nos diz que Bruce entrou na sua fase Rod Stewart — artisticamente vazio e remetido a uma carreira de cantor de karaoke — e na pior, nos sugere que Bruce está na sua fase Madonna — completamente alienado do mundo real.

Vamos por partes. Antes de nos focarmos no novo disco, puxemos um meses para trás, até ao escândalo do “preço dinâmico” dos bilhetes na digressão americana. Para quem não sabe, o esquema de preço dinâmico segue a mesma lógica que se usa nos hotéis e nas viagens de avião, isto é, uma procura elevada no sistema dispara o preço dos bilhetes. Apesar do esquema ter sido anunciado, os fãs, fiéis e alheios a esta nova forma de extorsão, mobilizaram-se de cartão de crédito em punho à hora do início da venda de bilhetes, como sempre o fizeram no passado. O resultado foi catastrófico. Com o sistema entupido em poucos minutos, os preços das entradas para a plateia dispararam para a ordem dos 5 mil dólares. Até os lugares longe do palco não se conseguiam comprar por menos de 500 dólares.

É verdade que este sistema não é original, os Rolling Stones já faziam isto, mas os Stones nunca chamaram a si um pedestal moral, do qual Bruce sempre se valeu, por exemplo, nas suas posições políticas. Os bilhetes venderam-se, como sempre, mas não todos. Pela primeira vez, Springsteen vai entrar numa digressão que à partida não está esgotada. Além desta efeméride, o resultado prático da manobra foi que milhares de fãs do Bruce, que o seguem há décadas, ficaram de fora dos concertos. Os shows passaram a ser, efetivamente, um exclusivo para os super ricos, e um luxo proibitivo para a classe média. Ele afastou conscientemente os fãs que passam dificuldades, os mesmos sobre quem ele vai cantar.

Supostamente, este esquema vem auto-regular o mercado, ainda que de uma forma selvaticamente liberal e claro, ultra lucrativa para o Bruce. Ora, Bruce Springsteen é reconhecidamente um artista com uma posição política forte e fortemente à esquerda. Como se explica, então, tal ganância a quem toda a vida cantou sobre as provações da classe trabalhadora? Ficou uma nódoa que vai ser difícil, se não impossível, de tirar.

Compreender-se-ia esta manobra num quadro de dificuldades financeiras, ou de angariação de fundos para uma causa. Mas não. Bruce acabou de receber um cheque recorde de 500 milhões de euros (!) da editora pela venda dos direitos do seu catálogo, a maior quantia um artista já recebeu, e um valor que nem sequer é comensurável para a tal classe média que ele representa. Nada contra ver o Bruce receber tal quantia, pelo contrário, eu próprio já lhe deu muito do meu bolso (comprei bilhetes para quatro datas desta digressão e, acreditem, não foram baratos); mas para quem é tão obscenamente (e meritoriamente) rico, reitera-se a questão: como se justifica esta exploração predadora aos bolsos dos seus tão fiéis fãs?

A única explicação que encontro é esta: Bruce Springsteen está completamente desconectado com a realidade. Talvez da idade, talvez do (muito) dinheiro, talvez da muita bajulação (da qual eu também sou culpado), alguma coisa parece ter mudado em Bruce desde a pandemia. Depois de uma vida sempre com os pés no chão, Bruce parece finalmente ter-se deslumbrado. O novo álbum, “Only The Strong Survive”, um disco de covers Soul a ser lançado na próxima semana, parece vir a confirmar isto. E se eu utilizei o verbo “parecer” três vezes neste parágrafo, é porque ainda estou em negação.

Não há nada de particularmente obsceno sobre este disco. A premissa é inofensiva: Bruce Springsteen quis fazer um álbum de homenagem aos seus heróis do Soul, com uma coletânea de covers. Não são temas muito populares (como fora a seleção de Phil Collins, no seu disco “Going Back”, de premissa semelhante), nem tão-pouco completamente desconhecidos. As canções trazem a tarimba de qualidade da Motown, da performance nas tabelas, e do teste do tempo.

Mas também não há nada de particularmente, ou sequer remotamente interessante neste disco. Sem música assinada por ele, Bruce tinha aqui a oportunidade de pôr a sua impressão digital nas suas canções favoritas, mas os temas são largamente uma cópia tirada a papel químico dos originais. Quem conhece as versões originais, não vai encontrar nada de novo aqui, a não ser a voz de Bruce. E convenhamos, com um Bruce septuagenário a cantar, não há nenhuma razão para se ouvir estas versões em detrimento dos originais da Motown. A escolha do nome do disco, diga-se, também não foi a mais feliz. Para quem acabou de lançar um álbum sobre a morte dos seus amigos (“A Letter To You”), segui-lo com “Only The Strong Survive” não foi propriamente a melhor ideia.

Nem tudo é mau. Quando a música começa a tocar, está tudo no sítio, com a produção de Ron Aniello a fazer a colagem primorosa às gravações antigas. Ouvimos Bruce a canalizar o seu melhor sotaque de Filadélfia e Nova Orleães, a interpretar temas que claramente lhe dizem muito. A performance em “The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore” é o meu ponto alto do disco, talvez porque seja o tema mais próximo do que Bruce escrevia nos anos 70, ou talvez porque tenha mais do seu cunho pessoal. É preciso procurar o dedo de Bruce no detalhe e nas entoações, como em “Someday We’ll Be Together”, uma interpretação potente que fecha o disco e que supera o original de Diana Ross, mais nuanceada, mas menos emocional que Bruce. É a excepção que confirma a regra de “Only The Strong Survive”.

Se a ideia era fazer um disco Soul, seria muito melhor Bruce recorrer às suas próprias composições. Atentem, por exemplo, no disco “The Promise”, com canções escritas na época de “Darkness” (1976-1977), mas só lançadas em 2010. Uma seleção desse repertório permite-nos ouvir como seria um verdadeiro álbum Soul de Bruce Springsteen: “The Brokenhearted”, “Someday (We’ll Be Together)” — não confundir com o tema das Supremes, “One Way Street”, “Breakaway”, e só aqui já temos pelo menos meio disco maravilhoso.

Em última análise, “Only The Strong Survive” é um projecto de vaidade que vai chegar no dia 11 de novembro e vai desaparecer tão depressa como chegou, sem deixar marca. Os fãs vão comprar, ouvir uma vez e guardar para nunca mais. Não haverá uma única pessoa, dos milhões que compraram bilhetes para a tour do próximo ano, a pedir um destes temas para o set de Bruce. Com tanta música nova para ouvir, é difícil encontrar um motivo para escutar este disco mais que uma vez. E isto vem de quem ainda hoje ouve em repeat faixas dos últimos discos “Western Stars” e “A Letter To You”. Infelizmente, “Only The Strong Survive” parece vir de alguém que já não tem nada a dizer, e tendo em conta os últimos discos de Bruce, eu nem acho que isso seja verdade. Mas é certamente, e de longe, o projecto mais descartável da carreira de Bruce Springsteen.

No fundo, é um disco novo de Bruce Springsteen que não tem música de Bruce Springsteen, e esse é o grande problema de “Only The Strong Survive”. É bege, insosso, sem a chama da E Street Band e sem a sinceridade dos seus discos a solo. E pior, é apenas o primeiro volume, com um segundo previsto para Março. Os fãs, ávidos por música nova do Bruce, vão ter que continuar à espera.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O poder terapêutico da música

Esta segunda-feira, 10 de outubro, é o Dia Mundial da Saúde Mental e eu venho falar-vos da importância de dar atenção a este tópico fundamental, tanto pelos que vivem à vossa volta, mas fundamentalmente por vocês. Eu sempre fui um privilegiado no campo da saúde mental. Em primeiro lugar, porque cresci e sempre vivi rodeado de uma estrutura familiar forte (ainda que eles vivam longe de mim há mais tempo do que viveram comigo); depois, porque quando as coisas ficam mais pesadas, consigo ultrapassar a tormenta com maior ou menor dificuldade, quase sempre através da alavanca da música.

A minha relação com a música sempre foi muito maior do que a de um mero passatempo. Desde que me lembro de existir que levo a música muito a sério, como uma paixão exacerbada. Mas esta paixão e dedicação que eu tenho pelo música, que me leva a escrever estas crónicas semanais, a colecionar discos, ir a concertos e, mais do que quero admitir, a organizar a minha vida à volta da música, não é mais que apenas uma retribuição de tudo o que ela me dá. De tudo o que ela me deu ao longo da minha vida.

Por exemplo, durante o período particularmente difícil da minha adolescência, não me identificava com nada à minha volta. Hoje sei que não fui o único, mas naquela altura olhava em volta e via toda a gente a divertir-se mais que eu. Todos pareciam viver viver confortáveis com eles mesmos, menos eu. E isto desaguava num sentimento de solidão, mesmo estando rodeado de pessoas. Hoje penso que a única razão por que sobrevivi àqueles anos foi a música. Fechava-me no quarto, mas ali viajava a descobrir música na (velha) Rádio Comercial, na MTV, no VH1, e no Kazaa. O meu pai chamava-lhe o bunker, mas viajei mais ali que no Lancia Dedra dele (ok também viajei muito naquele carro).

A crescer, para mim era tão óbvia a relação entre música e terapia, que quando o meu tio morreu — tinha eu 12 anos e sem experiência de lidar com a morte e sem saber o que dizer à minha prima —, o meu primeiro instinto foi gravar uma cassete com o “The Division Bell”, dos Pink Floyd (estávamos nos anos 90), e enviar-lha pelo correio. Juntei uma nota que dizia “Não faço ideia do que é perder um pai, mas eu quando estou triste ouço este álbum. Espero que te ajude”. Não sei se o “The Division Bell” ajudou alguma coisa, mas acho que isso não é importante. O importante, neste caso e em todos os casos de pessoas que estão a passar por dificuldades na sua saúde mental, é estarmos lá. Levantarmos o braço e dizermos, “eu estou aqui para o que for preciso”.

Soluções diferentes resultam para pessoas diferentes. O Liam Gallagher diz que, para ele, é o John Lennon. Sempre que ele sente as nuvens negras a passar, basta ouvir o John e elas dissipam logo. Para mim, é o Freddie Mercury. Ouvir a voz dele acalma-me imediatamente. Ou a guitarra do David Gilmour. Quando passava por um tempo difícil há uns anos, fui vê-lo a Londres por impulso (na altura vivia em Lisboa) e chorei durante as duas horas de concerto (com vários temas do “The Division Bell”, claro). Ouvi o que a sua guitarra tinha para me dizer (qualquer coisa do género “levanta-te, que isto ainda não acabou”), sacudi o pó e voltei para Lisboa renovado.

Para outros, a solução não é a música. É o ioga, o parkour, o Pilates, a natação, o badminton ou o triplo salto à vara. Não interessa. Whatever works. O que interessa é encontrar o que resulta e para isso precisamos de procurar. Ou seja, só posso vos encorajar a tentarem encontrar o vosso “The Division Bell”. É preciso dar esse passo. Ele está aí, algures, e nada vos dará mais poder sobre o vosso destino do que a procura de encontrarem o que resulta para vocês. Como o meu pai me disse um dia “toma conta de quem está à tua volta, mas ninguém é mais importante que tu”. Tomem conta de vocês.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Do luto, à catarse: a viagem de George Michael até "Older"

"Obrigado pela paciência", escreveu George Michael no fim do livrete do CD original de “Older”, em 1996. Haviam passado 6 anos desde o lançamento do (maravilhoso) “Listen Without Prejudice Vol. 1”, uma eternidade para uma das maiores super-estrelas Pop do planeta. Em reclusão da vida pública, George viveu nesses anos uma montanha-russa entre o êxtase de encontrar o amor e a tragédia de o perder; entre o luto que queria privado e uma batalha legal pública com a Sony, pela sua liberdade artística. George perdeu a batalha nos tribunais, mas ganhou a liberdade que queria e um novo fôlego na sua carreira. Com uma nova editora, George teve o tempo necessário para juntar um leque de canções que podiam ombrear com a elevada bitola dos seus trabalhos anteriores.

Da dor, do luto e da catarse, nasceu "Older" —  uma obra-prima de Pop adulta em fusão com Jazz e Bossa Nova, que viu esta semana a sua primeira reedição em 26 anos, desde o lançamento original em 1996. É a primeira vez que são reunidos os Lados B e as remixes desta era, outrora apenas em singles obscuros e difíceis de encontrar. Já não era sem tempo. É preciso mesmo muita paciência para ser fã de George Michael.

Nunca o artista mais proficiente, George Michael era absolutamente intocável até 1998. Qual Midas, tudo em que tocou até à colectânea “Ladies & Gentlemen”, George transformou em ouro. “Older” não foi excepção. Com um título a reflectir o seu amadurecimento como homem e como artista, “Older” pegou no ponto onde havia deixado o seu arco discográfico em 1990. É evidente a curva evolutiva da sua carreira, desde os calções curtos e as canções mais leves dos Wham!, inspiradas na Pop Motown, passando pela fase Elvis em "Faith", as estruturas mais complexas de “Listen Without Prejudice”, numa transição gradual até à Pop adulta da era "Older", fundada em Jazz, House, Bossa Nova e sobretudos Versace. George foi Rei em todas as eras, dominou todas as categorias. Isto sim, é ser o Rei da Pop.

Em “Older”, tudo começa com Anselmo Feleppa — o homem que George conheceu no Rio de Janeiro, em Janeiro de 1991, quando encabeçou o cartaz do Rock In Rio 2 no Maracanã. O álbum é dedicado ao brasileiro e as canções são escritas directamente para ele. Anselmo estava na primeira fila no estádio, e foi como nos filmes — um bingo de olhares, e uma conexão instantânea que não seria mais quebrada em vida. Literalmente. Depois de um ano de paixão, Anselmo foi diagnosticado com o vírus da SIDA no fim de 1991. Em Agosto seguinte, apenas um ano e meio depois de conhecer George, Anselmo morreu. A tragédia varreu a vida de George como um furacão, e esteve 2 anos sem escrever uma nota de música. O poço secou. Até que chegou “Jesus To A Child”.

Quando a música finalmente veio a George Michael, era Anselmo que dominava a escrita. O clique foi dado em 1994, quando George pôs em palavras aquele momento que mudou a sua vida no Maracanã: “you smiled at me like Jesus to a child”. "É isto! Sou eu e o Anselmo!", exclamou num momento de epifania. George juntou-lhe um ritmo de Bossa Nova, apropriado ao sujeito da canção, e em pouco tempo, tinha uma música nova. A primeira em muitos anos.

Animado com a viragem no seu bloqueio criativo, George atreveu-se a ir aos MTV Europe Music Awards em Berlim, cantar este tema que nunca ninguém tinha ouvido. Para quem estava fora do mundo da música há tanto tempo, era um risco trazer "Jesus To A Child", uma balada dilacerante sobre a perda de um amado, para um espectáculo que estava a ser transmitido em directo, sem rede, para todo o mundo. George arrasou. A performance foi tão unanimemente recebida, que George voltou ao estúdio de moral renovada para trabalhar, agora sim, no que seria o seu próximo álbum.

"Older" teve uma gestação difícil. George dizia que via as canções como puzzles à espera de serem resolvidos. Laborava arduamente em cada canção, peça a peça, até chegar à sua forma final. Mas quem diz qual é a forma final de uma canção? No caso de "Fastlove", a versão que ouvimos no álbum, que foi lançada em single e foi hit em todo o mundo, é (pelo menos) a segunda forma final do tema. A primeira versão, mais tarde rebaptizada como "Summer Mix", é um midtempo Jazz de fim de tarde de Verão. Já estava terminada e pronta para sair, quando George conheceu o produtor Jon Douglas, que trabalhava nos estúdios SARM em Notting Hill. A entrada em cena de Jon foi um game-changer na criação de "Older", de tal forma que ganhou crédito de produtor no álbum. Foi Jon que convenceu George a regravar "I’m Your Man" com um perfume House, o que serviu como ponto de partida para a versão uptempo de "Fastlove", que conhecemos e amamos. Uma ode aos one-night-stands, “Fastlove” levantava um pouco do véu sobre a vida privada de George (que mais tarde foi posto literalmente a nu em "Outside"). Foi George a sair, muito literalmente, do armário.

George completou o disco numa última sessão de estúdio a 5 de Janeiro de 1996 e 3 dias depois, "Jesus To A Child" era lançado como single de avanço de "Older", o primeiro na Virgin — a sua nova editora. O single entrou directamente para o nº 1 da tabela no Reino Unido, destronando “Earth Song”, de Michael Jackson, um single da… Sony. O álbum chegou em Maio, acompanhado do super-single "Fastlove", que também entrou directamente para o número 1 das tabelas (o single tinha a referida "Summer Mix" como Lado B exclusivo aos Estados Unidos. Pude ouvir esta versão pela primeira vez, agora, na box Super Deluxe de "Older" — é uma revelação). Com dois números 1 seguidos, estavam alinhadas as estrelas para um regresso ao estrelato de George Michael. Assim foi.

“Older” foi unanimemente recebido como um regresso portentoso de George Michael. Mas foi muito mais que apenas um regresso; foi também uma completa reinvenção do sex symbol de calções curtos que assaltara as tabelas 10 anos antes; ou do Elvis louro, com um crucifixo na orelha esquerda, que fizera o mesmo nos tempos de "Faith". George provava assim que era um artista Pop completo, triunfando nos mercados adolescente, coming of age, e adulto. Durante um ano, George não saiu da MTV, das rádios, das tabelas, de todo o lado. "Older" foi visto como um caso de estudo sobre como um artista Pop engendrar um comeback. Por coincidência (ou não), Madonna seguir-lhe-ia os passos em 1998, com um comeback semelhante, numa imagem muito mais discreta. O que não entrou no case study é que com George, fez parte de um processo natural. Como sempre foi. Tudo era sincero em George.

“Older” saltou para o número 1 dos álbuns no Reino Unido, destronando os reis das tabelas daquele ano — os Oasis. Funny story: George e Liam Gallagher tornar-se-iam vizinhos em Highgate, e convidados habituais de festas rijas nas casas de um e do outro. Consta que a última vez que Liam e Noel estiveram juntos, em termos amigáveis, foi precisamente numa festa na casa de George em 2012. E claro, antes disso, houve a famosa história em que George foi ver os Oasis a Bournemouth e levou a afterparty tão longe que… acordou em Coventry. Mas divago.

A viagem de "Older" culminou em mais uma tragédia pessoal para George. Em Fevereiro de 1997, a sua mãe Leslie morreu de um cancro, com o qual vinha a lutar há um ano. George não pôde sequer receber o prémio de Artista do Ano nos Brit Awards, uma vez que estava no hospital com ela. O lendário concerto Unplugged na MTV (cujo vídeo, lamentável e inexplicavelmente, não está incluído nesta caixa) foi a última vez que a mãe de George o viu a cantar ao vivo.

O single "You Have Been Loved", o sexto (!), e último, extraído do álbum, ganhou então um novo sentido para George. O tema foi um dos primeiros "puzzles" das sessões de "Older" e começou como uma peça acústica de David Austin, na altura com o nome "The Price Of Property" (mau, eu sei). Quando pegou nele, George deu-lhe uma volta completa e transformou-o num lamento sobre a morte de Anselmo, "God Is Dead", a questionar a sua própria espiritualidade. O tema levou nova volta e passou a responder à questão que colocava inicialmente — "Don't think that God is dead. You have been loved". Era agora a canção sobre uma mãe que perdera o filho. Quando saiu, em Setembro de 1997, "You Have Been Been Loved" voltou a virar — para George, era sobre um filho que perdeu a mãe; para o resto do Reino Unido, era sobre um país que perdeu a sua princesa. Diana morrera dias antes e a música de George ecoava o sentimento nacional (só foi impedido de chegar ao número 1 por "Candle in the Wind" '97", o multi-platinado single de Elton John, que regravou o tema de Marilyn Monroe para homenagear a princesa). No fim de contas, foram extraídos 6 singles de "Older", e todos chegaram ao top 3 das tabelas britânicas. Um recorde que se mantém até hoje.

George já não está connosco, mas a falta de proficiência da sua equipa mantém-se. Desde que George morreu, tivemos apenas uma reedição de "Listen Without Prejudice Vol. 1" (que já estava pronta para sair quando era vivo), um documentário (que também já estava terminado) e agora a reedição de "Older". Esta reissue foi apenas razoável, tendo em conta que houve zero material novo, zero material em vídeo (e George estava na MTV a toda a hora naquela altura) e zero material de alta resolução e surround. E tudo isto existe — as misturas Atmos foram preparadas e estão disponíveis apenas em streaming, o que não faz qualquer sentido. No mínimo, falta a esta reedição um BluRay com o vídeo do MTV Unplugged, e o álbum "Older" em alta resolução Stereo e Surround. Isto seria o mínimo dos mínimos. Melhor ainda seria a inclusão de demos e do disco de duetos abortado — "The Trojan Souls". Mas já nem peço tanto. Segundo David Austin, a próxima reissue será de "Songs From the Last Century" — o álbum de covers Jazz de 1999. Esperemos que desta vez ele leve em conta as sugestões dos fãs. É de facto preciso muita paciência quando se é fã de George Michael.

P.S.: Tomei a iniciativa de compilar o melhor do material bónus da caixa Super Deluxe de “Older” no programa desta semana do London Calling na NiTfm. Entre outras malhas, podem ouvir a “Summer Mix” de “Fastlove”, bem como os Lados B “You Know That I Want To”, “I Can’t Make You Love Me”, ou “Safe”. Está tudo aqui, ou aqui.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

"Moonage Daydream" é uma das experiências sensoriais mais potentes que vão ter no cinema

Fui ver a estreia do novo filme sobre David Bowie ao IMAX do BFI, e saí ainda mais fã do que entrei.


A vida em Londres é sempre a voar. Com a estreia do novo filme sobre David Bowie, "Moonage Daydream", a calhar numa quinta-feira no IMAX do BFI em Waterloo, e sem tempo para comer entre o trabalho e o início da sessão, o meu jantar foram três pints no pub por baixo da estação (há sempre tempo para uma pint. Ou três). Não admira, pois, que, quando me sentei na sala, já levasse a cabeça a andar à roda. Nada que interfira com o visionamento de um mero documentário sobre a vida e carreira de um músico. Achava eu.

Só que "Moonage Daydream" não é um documentário qualquer. Pode-se até conjecturar que é a antítese de tudo aquilo a que nos habituámos a ver num documentário Rock — um narrador a apresentar uma história temporalmente linear e uma selecção de comentadores que privaram com o sujeito, ou o estudaram, a explicar os quês e os porquês dos factos e acontecimentos ocorridos na sua vida. Não há nada disso aqui. O realizador, Brett Morgen, não está interessado em apresentar uma biografia factual de David Bowie; prefere antes dar a conhecer o artista através de frases-fortes proferidas na primeira pessoa, e imagens de momentos-chave da sua carreira. “Sound And Vision”, já dizia o próprio. É com este binómio tão familiar, que Morgen pretende atingir o espectador no cinema, com as mesmas sensações que Bowie intimava nos seus espectáculos.

Em vez do clássico "Rockumentário", somos então sugados por um drug-movie que quebra todas as regras do formato — um cruzamento entre Gaspar Noé e David Lynch, que devia vir com um pré-aviso de luz estroboscópica e banda sonora taquicárdica, não recomendável aos mais susceptíveis de epilepsia e hipertensão. Ao ponto de o próprio realizador sugerir o consumo de psicotrópicos antes do visionamento do seu filme*  Foi sem dúvida uma das experiências sensoriais mais potentes a que alguma vez fui submetido. Tendo em conta que Bowie trabalhou com Lynch em Twin Peaks e era fã do excêntrico realizador americano (não sei o que achava de Noé), estou convicto que ele iria gostar de "Moonage Daydream".

Desde logo porque neste filme, David é o narrador da sua própria história. Uma história de um alien, dizem os líricos, mas que na verdade era apenas um homem, inexoravelmente humano, à procura de si mesmo e, como todos nós, a desejar amar, e ser amado. O amor que, diz Bowie na primeira parte do filme, "não se pode intrometer no meu caminho". "Eu escondo-me muito do amor", confessa. "Sei que o amor é poderosíssimo, mas não tenho tempo para uma relação e não posso deixar que uma coisa dessas afecte a minha carreira". Nos minutos finais, um Bowie mais velho e experiente emenda a mão: "eu sei que no passado disse que estar apaixonado era como estar doente, mas hoje já não me revejo nessa frase”. O mais importante vem sempre acima.

A alegoria da viagem está bem presente em "Moonage Daydream". “Não desperdicem um único minuto da vossa vida”, diz um Bowie já ancião. Uma viagemde auto-descoberta relatada na primeira pessoa: "Passei muita da minha energia, toda a minha vida, a tentar fugir de onde vim e a tentar encontrar quem sou". Bowie acrescenta: "O que o público vê, não é real. Eu não sou real. O Mick Jagger não é real. O John Lennon não é real. Somos todos projecções do artista que queremos ser." O que não significa que saibam quem realmente são.

"Moonage Daydream" lembra-nos repetidamente que Bowie era um poliglota artístico, sempre em busca de novas linguagens para se exprimir. A música era apenas um destes idiomas - Bowie foi actor, pintor, escultor, e sempre que sentia que dominava um dialecto, saltava para o seguinte. "Vão sempre para fora da vossa zona de conforto", aconselha Bowie, enquanto o vemos a subir mais umas escadas rolantes."Sempre que sentirem que estão a perder o pé, é aí que estão perto de fazer uma nova descoberta". A sua curiosidade, criatividade e entusiasmo são contagiantes. Foi à procura de novas linguagens musicais que Bowie matou Ziggy, acabou com o Thin White Duke, ou fugiu de L.A., para se refugiar em Berlim. "Queria fugir de Los Angeles e pensei qual seria o lugar mais oposto no planeta para recomeçar — Berlim!". Ali, Bowie fez equipa com Brian Eno e Tony Visconti, em busca da reinvenção da sua carreira.

Visconti assina a banda sonora frenética de "Moonage Daydream", uma colagem de sons e excertos de toda a discografia de Bowie, desconstruindo para fazer de novo, por vezes a lembrar o mashup dos Beatles ,"Love", para o espectáculo do Cirque de Soleil. A mistura de Visconti é imersiva, de volume no máximo, certamente o melhor que Bowie já soou numa sala de cinema e o mais próximo de um concerto do saudoso cantor.

As filmagens de D. A. Pennebaker do lendário concerto no Hammersmith Odeon em 73, onde Bowie mata Ziggy Stardust, são a peça fulcral do filme. Desde logo, porque vemos a faixa que dá nome ao filme, "Moonage Daydream", interpretada por um Bowie, Mick Ronson e restantes Spiders From Mars, todos em absoluto pico de forma. Depois, porque podemos pela primeira vez ver, e ouvir, o delicioso medley “The Jean Genie / Love Me Do”, com participação especial de Jeff Beck na guitarra, que no passado vetou sempre o seu lançamento. Esta é a primeira vez que podemos ver este momento histórico. E claro, ver Bowie na pele de Ziggy é o tónico perfeito para um filme onde é pintado um artista que tem muito pouco de terreno.

Quando Bowie desce eventualmente à Terra, vemo-lo a dar um linguado a uma caveira na Soul Tour de 1974, parte do filme “Cracked Actor” que nunca viu a luz do dia oficialmente em home video. Outras imagens que nunca viram a luz do dia e estas vemos mesmo pela primeira vez, são as de Earl’s Court em 1978, tourné Isolar II, de promoção a ““Heroes”” (notem as duplas aspas) que aparecem aqui com uma qualidade insana. Criminoso, como ainda não temos o filme desse concerto nas nossas prateleiras, a fazer companhia ao disco ao vivo "Welcome to The Blackout".

"Moonage Daydream” é um ataque aos sentidos, uma experiência sensorial intensa, até por vezes desconfortável, que nos vira do avesso, dilata as pupilas (pensem "naquela" cena do "Laranja Mecânica"), e nos deixa a cabeça a andar à roda. Algumas filmagens artísticas mais recentes, que nada têm a ver com Bowie, eram desnecessárias, mas o saldo é francamente positivo. Confesso que não estava à espera que fosse tão bom. Quando a arte nos abana desta forma, é aí que sabemos que é boa. Se Bowie não disse algo parecido, poderia ter dito.

* Não foram consumidos psicotrópicos no visionamento deste filme. A sério.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Animals and me

A história de como o "Animals" se cruzou com a minha vida e a análise da nova reedição, que traz o álbum pela primeira vez em Surround.


Deixem-me, antes de mais nada, apresentar-me. Sou engenheiro civil e mudei-me para Londres no início de 2018, há quase cinco anos. No primeiro dia de trabalho, segunda-feira, 8 da manhã, tive o meu primeiro "monday meeting" — uma hora onde eram atribuídos os projetos e as horas de trabalho para a semana de cada um dos engenheiros. Todos se reuniam no centro do escritório a olhar para um ecrã gigante que mostrava uma folha de Excel com a lista dos projetos que a empresa tinha em carteira. Apaixonado por Londres e pela música britânica, alguns nomes sobressaíam ali imediatamente, ruas e lugares que conhecia de discos e concertos históricos das minhas bandas favoritas. Wembley, Earl’s Court ou… Battersea Power Station.

Vou agora puxar um pouco mais para trás. Os Pink Floyd são, a par dos Queen, a minha banda preferida desde que me lembro de existir. A coleção do meu Pai tinha todos os discos dos Floyd e aquelas capas ficaram desde cedo cravadas na suscetível mente de um miúdo que, já na altura, era absolutamente obcecado por música e preferia “brincar” com a aparelhagem do pai do que com os seus próprios bonecos. Uma capa, em especial, sempre me deixou particularmente impressionado — a enigmática capa de "Animals", disco dos Pink Floyd originalmente lançado em 1977. Uma imponente mega fábrica em tijolo, com quatro chaminés gigantes e um porco a voar sob um céu apocalíptico. Essa fábrica, soube mais tarde, era a Battersea Power Station. Lembro-me de estar na faculdade e de ler uma notícia sobre o projeto de reabilitação da Power Station e de pensar que seria um sonho um dia trabalhar naquele projeto. Ri-me. Era um sonho longínquo, quase impossível, para um jovem a marrar nas catacumbas do Técnico.

Saltamos 10 anos para a frente e lá estou eu, sentado no centro do escritório, à espera de ser colocado no meu primeiro projeto em Londres. O diretor ia passando pelos nomes da lista e atribuindo trabalho a todos, mas nada para mim. Até que chegou à linha que dizia Battersea Power Station. O meu coração saltou umas batidas. "Nuno, vais liderar este projeto.", disse o diretor. Palavras que pararam o tempo, qual Matrix. Nem queria acreditar.

Instintivamente, talvez fruto de anos de catequese e educação católica, olhei para cima. Vi uma luz. Era a lâmpada no teto falso. Mas também a realização de que a sorte me tinha sorrido. Se alguma vez na vida senti que tinha chegado ao sítio certo, à hora certa, foi neste momento. Os astros alinharam-se.

Agarrei a oportunidade com unhas e dentes e nos dois anos que se seguiram, período em que a minha barba se pintou de branco, liderei e entreguei o meu projeto de sonho — a Fase 3 da reconstrução da Battersea Power Station que, nem de propósito, está prestes a abrir ao público, já no dia 14 de Outubro (também dava um bom artigo para a NiT). Foi um projeto duríssimo, mas sempre que as forças me faltavam, olhava para a majestosa Power Station, e saía rejuvenescido. Estava a viver um sonho. Mas a história não terminou aqui.

Quando juntei poupanças suficientes para comprar uma casa em Londres, a minha intenção era clara — um apartamento com vista para a Power Station, uma espécie de capa do "Animals" viva, que eu pudesse ver todas as manhãs quando acordasse, todas as noites antes de me deitar, ou sempre que me apetecesse olhar pela janela. É precisamente a olhar para ela, a Battersea Power Station, que vos escrevo, aqui sentado no meu sofá. E nem sequer falta a Algie a voar na minha sala.

Serve esta longa introdução para vos contextualizar sobre a importância do álbum “Animals” dos Pink Floyd na minha vida, e sobre o meu comprometimento com a banda britânica em geral; a propósito da novíssima edição de "Animals", que foi lançada na semana passada em CD, LP e Blu-Ray. Apresentando o sufixo "2018 Remix", esta reedição oferece novas misturas em Stereo (em todos os formatos) e em Surround no Blu-Ray, o qual também apresenta uma versão de Alta Resolução da mistura original de 1977. Dito assim, parece um lançamento prosaico. De todo. A história da mistura em Surround de "Animals" remonta a 2004, quando foi primeiramente ventilado que o Engenheiro de Som da banda, James Guthrie, estava a trabalhar no projeto com o objetivo de uma edição no ano seguinte, ou seja, em 2005. Ainda andava eu na faculdade.

Guthrie terminou primeiro a mistura em Surround de "Wish You Were Here", alegadamente por volta de 2007, mas esta ficou na gaveta até 2011, quando os Pink Floyd fizeram a última campanha massiva de reedições do seu catálogo. De "Animals", nada se ouviu. Não é preciso grande imaginação para adivinhar que a missão de Guthrie, de agradar a gregos e a troianos (leia-se, Roger Waters e David Gilmour), terá sido hercúlea. Mas conseguiu.

Algures em 2018, há 4 anos portanto, James Guthrie terminou finalmente as remixes Stereo e Surround de "Animals". Aubrey Powell tirou mais uma série de fotografias majestosas da Battersea Power Station, agora em obras (possivelmente comigo lá no meio), e tudo estava pronto para o lançamento da versão 5.1 do disco sonicamente mais problemático dos Floyd. Só que não.

https://www.youtube.com/watch?v=jX5x9wzMN4s

Roger e David entraram então num conflito (que é como quem diz, continuaram o seu eterno conflito) devido a um texto adjudicado a Mark Blake, sobre as sessões de gravação de "Animals". Blake tem vários livros editados sobre a banda e está dentro dos factos, mas este texto em particular é largamente elogioso para Waters e praticamente negligencia a contribuição dos outros membros da banda. Nomeadamente David Gilmour que, naturalmente, vetou a sua inclusão nesta reedição. Entretanto, os fãs dos Pink Floyd, que nada sabiam, viviam no escuro relativamente ao tão propalado Animals em Surround.

Em Maio de 2021, Roger lançou uma notícia no seu website, acompanhado de um vídeo jocoso, revelando que a razão do atraso era um braço de ferro entre ele e David sobre o tal texto, mas que ele, numa atitude salomónica, ia aceitar a exclusão do texto no livrete da reedição, para finalmente libertar as remixes de "Animals". Estava fechado este capítulo do conflito entre Waters e Gilmour, a novela que nunca acaba.

E eis que chegamos aqui, Setembro de 2022, e depois de mais de 18 anos de espera, podemos finalmente ouvir as remisturas de "Animals" em Stereo e Surround. A espera foi recompensada. As novas versões de “Animals” (ou vá, de 2018) põem o álbum no mesmo panteão audiófilo habitado pelos outros discos de nomeada dos Floyd (“The Dark Side Of The Moon”, “Wish You Were Here”, ou “The Wall”), todos eles gravados em estúdios profissionais, como Abbey Road. “Animals” foi gravado em Britannia Row, num estúdio que eles próprios construíram (literalmente — Nick Mason conta na sua biografia que a banda acompanhou e dirigiu a obra e montou todo o equipamento). As instalações não correspondiam à mesma bitola a que os Pink Floyd estavam habituados e a sónica do disco sofreu com isso. Esta nova mistura, mais limpa, fina e delicada, levanta um véu que cobria as gravações nas fitas originais e revela pormenores que não ouvíamos antes.

Foram tomadas algumas liberdades com as faixas vocais de Roger Waters, outrora afogadas em reverb e agora secas, frontais e definidas. Podemos OUVIR o Roger, atentar na sua dicção e locução das palavras, como se ele estivesse sentado ao nosso lado. A dinâmica do espectro sonoro ficou intacta, com a guitarra de David Gilmour a explodir nas colunas, sempre que este arranca um solo. Podemos agora ouvir todas as notas de David em alta-definição, como quem tira um VHS e põe um Blu-Ray. Também em Full HD aparecem as teclas hipnóticas de Richard Wright, finalmente com espaço para respirar com toda a claridade. Mas o maior beneficiado desta remix terá sido Nick Mason, que viu sua a bateria saltar para a frente da paisagem sonora.

Tudo isto pode ser testemunhado ao ouvir a nova mistura em Stereo, mas a verdadeira jóia da coroa desta reedição é a remistura em Surround. Ouvir mesmo atrás de nós os porcos a grunhir, os cães a ladrar, e as ovelhas a balir põe-nos dentro da quinta do universo de George Orwell, tal como imaginada por Roger Waters e David Gilmour. A introdução de Rick nas teclas em “Pigs (Three Different Ones)” já era nauseante em stereo; em Surround, deixa-nos a cabeça a andar à roda.

Contudo, este levantamento do véu das limitações técnicas de Britannia Row chega com um preço. A sónica monolítica da mistura original assentava que nem uma luva no conteúdo abrasivo do álbum. Esta rugosidade e sujidade da mistura original perdeu-se. Este deixa de ser o álbum Punk dos Pink Floyd, onde a banda desceu aos infernos e voltou para nos trazer a visão distópica da sociedade. Também é de lamentar que não tenha sido incluído qualquer material extra: nem a versão completa de “Pigs On The Wing” (exclusiva ao formato de cartucho 8-track), nem as versões iniciais de estúdio que circulam entre os fãs (e que tinham Roger na voz em “Dogs” e diferentes takes de guitarra), nem qualquer material ao vivo da lendária In The Flesh Tour — uma digressão tao intensa e atribulada, que terminou em Montreal com Roger Waters a chamar um fã ao palco para lhe cuspir na cara (“who was trained not to speak in the fan”, não é?).

Portanto, se quiserem ouvir “Animals” MELHOR, mais claro e limpinho, ouçam a 2018 Remix. Se quiserem ouvir “Animals” PIOR, mais sujo e monolítico, ouçam o original. São duas experiências diferentes, e por isso não vos poderei dizer qual é a melhor. A minha preferida continua a ser a original, uma vez que é suposto que "Animals" seja um álbum sujo. Não podemos ouvir os porcos sem descermos à pocilga.

A Surround Mix não tem nada a apontar. Arrisco dizer que esta mistura imersiva é a melhor de todas as experiências Surround dos Pink Floyd. Antes já tivemos “Meddle” (um bónus da colecção “The Early Years”), “The Dark Side Of The Moon” (SACD, Blu-Ray), “Wish You Were Here” (SACD, Blu-Ray), “A Momentary Lapse Of Reason” (Blu-Ray), “The Division Bell” (Blu-Ray), e (se quiserem contar com este) “The Endless River” (Blu-Ray). Se considerarem as misturas quadrifónicas, ainda houve “Atom Heart Mother”. “Animals” é o melhor deles todos, o que nos deixa com grandes expectativas para o trabalho de James Guthrie no outro gigante que falta — “The Wall”, alegadamente já terminado em 2021 e agora à espera de luz verde para o seu lançamento.

Se pensarmos que “Animals” demorou 4 anos só em discussões de packaging, o futuro não parece animador. Se adicionarmos o facto que, no divórcio entre Roger Waters e restantes Floyd, Roger ficou com o controlo de tudo o que fosse relacionado com “The Wall” e “The Final Cut”, as perspectivas não são as melhores para ouvirmos estes em Surround. E não esquecer o filme "The Wall Live In Earl’s Court", o santo graal dos Pink Floyd, que está refém na cave de Roger. Se o génio criativo dos Pink Floyd (como ele se autodenomina) desse mais atenção a estes projectos e menos a amizades com líderes bafientos de leste, mais lhe valia.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

O futuro do Rock 'n' Roll está aqui e chama-se Sam Fender

A crónica do concerto esgotado no Finsbury Park, que culminou o ano em que Sam Fender conquistou o Reino Unido.

Sexta-feira passada fui ao Finsbury Park, no norte de Londres, para ver o futuro do Rock ‘n’ Roll. Ele chama-se Sam Fender e aos 28 anos esgotou, em nome próprio, um dos maiores recintos londrinos. Normalmente reservado a artistas consagrados, com carreiras recheadas de êxitos e um público maturado, o Finsbury Park encheu-se desta feita de adolescentes para ver o fenómeno que conquistou o Reino Unido no último ano, desde o lançamento do álbum “Seventeen Going Under” (que eu laureei na NiT como o melhor álbum de 2021).

Parece um feito inimaginável para um jovem tão novo na indústria musical. Mais ainda quando o público é composto por miúdos, miúdas e uns às cavalitas dos outros. E tochas. E bandeiras. Muitas, qual mini Glastonbury. A loucura no Reino Unido pelo Springsteen de Shields é qualquer coisa de indescritível. Como explicar este fenómeno? Podemos apontar a voz de Sam, a sua honestidade, ou a energia da banda em palco, mas acima de tudo, a resposta está nas canções.

Já o escrevi na NiT, a grande arma de Sam Fender são as suas composições. Antes de Finsbury Park, Sam passou por Glastonbury para fazer um set triunfal (por favor googlem o vídeo completo do set), e se excluirmos os clássicos dos Beatles e do Paul, cujo espólio não me atrevo a comparar, canções como "Seventeen Going Under", "Getting Started", "The Borders", "Spit Of You", "Get You Down", ou "Angel In Lothian", não ficam a dever nada que passou pelos palcos do maior festival do Reino Unido. Pelo contrário. Ninguém nos últimos anos escreveu tantas e tão superlativas canções como Sam Fender.

Se a sua escrita brilha no contexto polido do disco, é ao vivo que as canções florescem. Num Finsbury Park esgotado desde o início do ano, sentia-se a electricidade no prelúdio da entrada em palco de Fender. Para isso também contribuíram os Fontaines D.C., que partiram tudo e deram um dos melhores concertos que vi este ano. Foram o preliminar perfeito para o clímax que viria a seguir. Olhando à minha volta, tentei perceber se era o mais velho da audiência no parque. Não era; ao pé de mim estavam duas mães que serviam de damas de companhia das suas filhas, ainda com a cara pintada de acne. Os gritos do público quando Sam Fender entra em palco com “Will We Talk?” — um tema sobre sexo à primeira vista, do disco de estreia “Hypersonic Missiles” — fazem desta a experiência mais próxima da Beatlemania que eu certamente vou alguma vez testemunhar.

Seguiu-se o retumbante “Getting Started”, um dos temas-chave do novo álbum, que pôs o público a saltar e as cervejas a voar. É impossível não ficar contagiado com a energia da banda de Fender, especialmente do seu teclista Joe Atkinson, uma espécie de hype-man que parece estar a divertir-se tanto como o público à sua frente. Pelo menos salta e grita as letras tanto como eles.

Joe é um dos homens fortes de uma banda de amigos que toca de olhos fechados. Não admira, ou não estivessem juntos desde os tempos em que andavam na escola em North Shields, nos arredores de Newcastle. Sam Fender introduz Dean Thompson, na guitarra, como o seu melhor amigo desde os 10 anos de idade. Destacam-se também o saxofonista Johnny “Blue Hat” Davies, que usa sempre uma camisola do clube da terra (o Newcastle FC) e, tal como o nome indica, um chapéu azul; e não esquecer o baterista Drew Michael, que parece o líder dos War On Drugs, mas bate com a mesma força de John Bonham.

O set de Sam Fender em Finsbury Park teve de tudo um pouco e até deu para estrear em palco o radio-friendly "Alright", tema novo que fora lançado no próprio dia no Spotify. Mais conhecido por estas canções singalong, Sam provou que também sabe carregar no acelerador, com "Spice” (Up Your Life) (nada a ver com as Spice Girls) e "Howdon Aldi Death Queue", um rasganço punk interventivo sobre filas de trânsito num Aldi nos subúrbios de Newcastle, que figurou no Lado B do single "Seventeen Going Under".

Esta sequência espoletou o caos na plateia, com vários focos de incêndio (literal) com tochas e mosh pits impróprios para sandálias e outros tipos de calçado veraneante. Eu próprio atrevi-me a entrar no primeiro mosh pit desde que parti quatro dedos do pé direito, num concerto dos The Prodigy no Alive de 2015. Não correu bem. Não só já cruzei os trintas, como os miúdos de hoje acumulam muito mais horas de ginásio que as minhas zero. Depois de bater com os costados no chão, voltei para a minha posição de ancião nas bordas do mosh pit. Sam tenta o comentário social nos temas mais pesados, mas é quando escava fundo em si mesmo, que ele é extra-extraordinário.

Recomposta a plateia depois da sequência incendiária, Sam entrou na fase imperial da setlist. Começou com o tema que me fez fã, precisamente por me tocar num ponto emocional mais sensível. "Get You Down", tal como todo o disco mais recente, fala de dores de crescimento. "I look myself in the mirror, see a pathetic little boy, who’s come to get you down". Sam consegue condensar a minha adolescência numa frase. Uma viagem no escuro, sem guia, que é a entrada na vida adulta.

Segue-se mais um murro lírico no estômago. A introduzir "Spit Of You", Sam Fender pergunta: "You know when you love someone so much, SO MUCH, that you just want to punch them in the face? …this song is about me dad". Mais uma história com que milhões se podem identificar, da difícil relação com o próprio Pai — o maior amigo e o maior inimigo, tudo ao mesmo tempo, na cabeça confusa de um adolescente à procura de afirmação e do seu lugar no mundo. "I can talk to anyone, I can talk to anyone, I can’t talk to you" ilustra a relação Pai-filho, mas serve igualmente para relações românticas, em que se ama tanto que se perde a razão. Não consegui conter uma lágrima aqui. O génio de Sam Fender é este, fazer canções tão consanguíneas com as nossas experiências.

E por falar em experiências semelhantes, Sam sentou-se ao piano e dedicou "The Dying Light" a todos aqueles que cresceram numa cidade pequena, e toda a infância sonharam fugir dali. "Whoever comes from a small town knows what I mean. This is for you.", disse, entre dois goles numa Newcastle Brown Ale (histórico patrocinador do clube da cidade). Quando Sam cantou os versos "I’m alone here, even though I’m physically not", caiu a segunda lágrima no espectador que veio de Castelo Branco.

O clímax da noite viria pouco depois com "Seventeen Going Under", o tema que lavrou o Reino Unido no último ano. "Esta canção voou mais alto do que qualquer um de nós poderia imaginar", confessou Sam Fender na introdução. O tema-título do disco mais recente de Fender é um hino capaz de desencadear um coro de 50 mil adolescentes, a cantar em uníssono sobre traumas reprimidos de infância e a libertação dos seus demónios — “I was far too scared to hit him, but I would hit him in a heartbeat now”. No rei de todos os temas singalong, o público cantou não só a letra, mas também os instrumentais, e claro, o inevitável oh-oh-oh, marca de água de Sam. "You hurt the ones who love you, you hurt them like they’re nothing" — gritei também eu a plenos pulmões. Terceira lágrima da noite.

Já tinha visto Sam Fender em 2019, no Hyde Park, a abrir para Neil Young e Bob Dylan. Mais tímido e ainda em início do processo que o levou até aqui, Sam não conseguiu conectar com uma audiência mais velha que, sabemos hoje, claramente não era a sua. Os fãs experientes existem, mas Sam toca Rock para a geração mais nova. Poucos, muito poucos artistas apareceram nas últimas décadas, capazes de fazer rock para adolescentes. Esse é o grande triunfo de Sam. Mesmo para alguém como eu, que sempre se sentiu bem à parte, a ouvir a música transgressiva que mais ninguém no meu círculo ouvia (e tenho a certeza que muitos que lêem isto sentem o mesmo), é um bálsamo olhar para o palco e ver alguém que canaliza tão bem as minhas emoções e frustrações, e depois olhar à minha volta e ver milhares a viver a mesma experiência, independentemente da idade. Esperei muito tempo por alguém assim.

As comparações com Bruce Springsteen serão sempre inevitáveis, mas Sam não parece querer evitá-las. No momento alto dessa tarde em 2019, Sam introduziu "The Borders" como “just another Springsteen ripoff”; que o é (e não é o único). E tal como “Dancing In The Dark”, também “The Borders” acompanha uma lírica sombria (“No wonder you can't stand me, I can't stand me too”), com uma melodia alegre (uma técnica cristalizada pelos The Smiths nos anos 80). É um dos melhores temas que ouvi nos últimos anos. Eu sou mega fã do Boss, mas quem dera a Bruce estar a escrever canções como Sam neste momento.

O fenómeno Sam Fender prossegue e a história continuará a ser escrita com um novo disco, que espero que não demore muito para manter o momentum. Depois de dois álbuns no número 1 das tabelas britânicas, de arrasar Glastonbury, abrir para os Stones, esgotar duas noites no Wembley Arena e agora uma no Finsbury Park, o que resta a Sam Fender? O Reino Unido já está a seus pés, só lhe resta agora o mundo. Estamos à tua espera, Sam.

P.S.: A época dos festivais em Portugal ainda vai a meio e eu já posso apontar qual será o grande pecado dos cartazes deste ano. Uma imperdoável falta de Sam Fender.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Está na hora de coroar o rei Axl Rose e enterrar a mentira de Alvalade

Os Guns N’ Roses regressaram ao Passeio Marítimo de Algés no último fim‑de‑semana, casa talismã para Axl Rose, depois de dois concertos triunfais naquele palco, primeiro com os AC/DC em 2016 e depois com os Guns em 2017. Não vos posso trazer uma review do concerto porque, enfim, era um concerto dos Guns N' Roses e eu fiz a festa como se fosse 1992. Se quiserem saber o que aconteceu ao pormenor, podem Googlar as reviews de quem lá esteve e se lembra ao pormenor do que aconteceu. 

Do que vi, Slash confirmou mais uma vez que é Deus e os pontos altos foram os mesmos de 2017 — os épicos "Estranged" e "Coma". Axl viu-se à rasquinha nos agudos de "Coma", mas logo a seguir apareceu rejuvenescido a rasgar um impossível "Reckless Life", dos gloriosos tempos dos Hollywood Rose, Troubador e Whiskey A Go-Go. O homem é uma força da natureza e vai adiando todas as previsões de que já está acabado. Não tem a mesma força de 1992, quando corria pelo palco enquanto cantava "You Could Be Mine"? Claro que não. Mas ninguém pede isso ao Mick Jagger, sempre que os Stones dobram mais uma década (e já vão em 60 anos disto).  Porque é que o tio Axl tem que ser diferente? Já nem falo de outros vocalistas com a mesma idade de Axl, como o caso de Jon Bon Jovi, que se apresenta em palco com a voz num estado absolutamente lastimável. O tio Axl cumpriu muito mais que os mínimos olímpicos em Algés. E acreditem, é muito mais difícil agarrar um “Sweet Child O Mine” do que um “Jumpin' Jack Flash”.

Está por isso mais do que na hora de abraçar Axl Rose como a lenda do Rock ‘n’ Roll que ele é. E para isso, temos que desmontar um dos mais infames mitos que tem afundado a sua reputação em Portugal — a suposta "birra" de Alvalade, o propalado “grande falhanço” dos Guns N' Roses em Portugal em 1992. Com certeza já ouviram falar. 

Fora a desmesurada reacção na comunicação social, do qual se destaca uma inexplicável capa do Blitz que chamava Axl Rose de “MARICAS!”, quem lá esteve viu um concerto de Guns N’ Roses típico de 1992. A banda mais perigosa do mundo. Nunca se sabia o que podia acontecer. Uma hora atrasados? Duas, três? Era o prato do dia (em Lisboa foi uma hora de atraso, para que conste). O grande incidente da noite é conhecido e pode ser visto no vídeo de “Dead Horse”, lançado um ano mais tarde. Depois de Mike Patton dos Faith No More instigar o público a mandar garrafas para o palco, e do piso ser limpo no intervalo, houve quem continuasse a mandar líquidos para o centro da ação. E àquela hora, duvido que fosse água limpa, se é que me entendem. Quando os Guns entram com “It’s So Easy” e Axl Rose corre pelo palco adentro, como era seu hábito, ele escorrega e mergulha de boca no palco. Em vez de parar o concerto, que era o que faria mais sentido, pelo menos até perceber se estava bem, o comboio continuou a rolar e Axl cantou mais dois temas no chão (“Mr Brownstone” e “Live And Let Die”), até finalmente sair para o set habitual de Duff, que acontecia todas as noites, e que em Alvalade contou com "Attitude" e "So Fine". Os ataques a Axl reportam que ele “fugiu” ou “desapareceu do palco”, mas se virem o DVD oficial da tour, gravado em Tóquio, ambos os temas são tocados. Também nesse DVD, que mostra uns Guns inusitadamente lavadinhos e bem comportados para 1992, podemos ouvir longos solos de Slash e Matt Sorum — outro argumento bastante popular para criticar Axl, que supostamente obrigou a banda a fazer solos estendidos para ficar fora do palco. Mais um mito desmanchado. 

O outro incidente da noite aconteceu quando Axl parou "Civil War", ao ver alguns very lights voar no público. Tendo em conta o que se passou no Estádio do Jamor uns anos mais tarde, a preocupação do tio Axl era mais do que justificada. Toda a gente quer uma banda perigosa, mas ninguém quer este perigo, certo? Note-se que "Civil War" foi tocado na íntegra mais tarde no concerto. 

Com todas estas incidências, o próprio Axl já se referiu ao concerto de Alvalade como um dos mais difíceis da sua carreira. Mas mesmo contra todos os obstáculos, os Guns tocaram duas horas e meia e chegaram ao fim do espectáculo. O resultado foi um ódio sem igual em Portugal, ou no mundo, aos Guns N' Roses, com a tal capa do Blitz a insultar o tio Axl. Justificado? Temo que não. A razão para uma reacção tão desmesurada na imprensa? Não sei, mas posso adivinhar. Talvez a paixão pelas bandas grunge daquela época terá atirado os Guns para a prateleira dos uncool. Os Nirvana e os Guns estavam de costas voltadas em 1992 e num país cronicamente deprimido como o nosso, a redação do Blitz foi lesta a tomar partido neste conflito (felizmente a Britpop chegou pouco depois para contrabalançar esta depressão). Se fosse um Eddie Vedder a cantar dois temas no chão depois de uma queda aparatosa, tinha sido apelidado de statement. Com Axl Rose, foi uma birra.

Está por isso na hora de queimar este mito e abrir os braços a Axl Rose como o tesouro e o senador do Rock 'n' Roll que ele é. Mick Jagger, Robert Plant, Freddie Mercury, Axl Rose. Axl é um dos herdeiros naturais da dinastia do Rock, que parece estar cada vez mais em extinção. Apreciemo-lo enquanto o cá temos.

sábado, 21 de maio de 2022

Adeus, Vangelis — morreu o último deus grego

Zeus, Poseidon, Apolo, Vangelis. Deixou-nos aos 79 anos o último dos deuses gregos, Evángelos Odysséas Papathanassíou, deus da música electrónica, génio da pintura de paisagens sónicas, pioneiro do uso de sintetizadores na música popular. Palavras grandes, bem sei, mas o legado do grego é largo, maior do que eu conseguirei pregar nesta eulogia. Vangelis deixou-nos com uma obra tão vasta e variada, que serão necessárias décadas para digerir o verdadeiro espectro da sua herança.

Para o público menos atento, Vangelis é conhecido pela banda sonora de "Chariots Of Fire", que lhe valeu um Oscar de Melhor Banda Sonora em 1982. Se esta referência não vos diz nada, pensem na "música dos Jogos Olímpicos", utilizada por todas as cadeias de televisão desde as Olimpíadas de 1984. Em Portugal, a sua música teve pelo menos dois usos proeminentes: a banda sonora de "Antarctica" serviu de acompanhamento para o boletim meteorológico da RTP, na primeira metade dos anos 90; e claro, a banda sonora de "1492: Conquest of Paradise" serviu de hino para as campanhas políticas de António Guterres e é instantaneamente reconhecível para qualquer português com mais de 30 anos.

Nos círculos de culto, Vangelis é também o autor da revolucionária banda sonora de "Blade Runner". Na opinião deste que vos escreve, esta é "só" a banda sonora mais soberba da história do cinema. Mais palavras grandes, eu sei, mas nunca em vão. A forma como Vangelis projectou na perfeição o futuro Dickiano das megalópoles, distópico, escuro e solitário, "apenas" munido com a palete sónica dos seus sintetizadores, foi nada menos que brilhante. É o equivalente em engenharia a construir uma ponte só com a mão-de-obra de um homem. "Blade Runner" é o meu filme preferido de sempre e a banda sonora faz o filme.

Todos os trabalhos mencionados em cima são superlativos, sim, mas são referências a meros quatro álbuns. Vangelis lançou mais de cinquenta ao longo da sua extensa carreira, que começou nos Forminx em 1962, ainda os Beatles estavam a começar. Para além dos discos editados, trabalhou em muitas mais bandas sonoras que nunca viram a luz do dia, para além da eventual aparição numa colectânea. Alguns destes registos são essenciais. Dizem que a altura para se conhecer um artista é quando ele morre, pois bem, aproveitem para conhecer o génio de Vangelis. Permitam-me dar-vos a conhecer alguns dos seus melhores trabalhos. Dez, para começar. 


L'Apocalypse Des Animaux (1970) (lançado oficialmente em 1973)

"L'Apocalypse Des Animaux" é uma das primeiras gravações a solo de Vangelis, ainda com o seu nome completo Vangelis Papathanassíou escrito na capa — que só recentemente consegui pronunciar depois de treino intensivo com um amigo grego. Foi também a primeira vez que Vangelis colaborou com o realizador Frédéric Rossif, autor de programas de vida selvagem para a televisáo francesa, com quem iria trabalhar muitas vezes no anos 70 (e sempre com resultados excepcionais, como veremos em baixo). E foi curiosamente também a minha entrada no mundo de Vangelis, por meio de um disco enigmático que fazia parte da coleccao do meu Pai. O álbum reúne várias peças dedicadas a diferentes animais, cada um no seu ecossistema. É brilhante. Sem nunca ter visto o documentário de Rossif, consigo mergulhar no escuro aquático do oceano profundo, ao ouvir "La Petite Fille De La Mer". Consigo visualizar o macaco, na vida solitária da selva, a saltar de ramo em ramo, com "Le Singe Bleu". Metáfora perfeita para as nossas vidas na selva das grandes cidades.


666 [Aphrodite's Child] (1971)  (lançado oficialmente em 1972)

Apocalipse, orgasmos e sintetizadores. A loucura grega dos anos 60 foi cristalizada nesta obra-prima Avant Garde que não é para todos, mas deve ser ouvida por todos. Salvador Dalí, amigo do grupo, planeou um evento inesquecível em Barcelona para promover o disco — centenas de cisnes (vivos) seriam despejados junto à Sagrada Familia com dinamite amarrada, para serem detonados remotamente numa versão explosiva de dança sincronizada; aviões de guerra sobrevoariam a catedral e despejariam elefantes, hipopótamos, baleias e arcebispos com guarda-chuvas na mão. Obviamente que nada disto aconteceu fora da cabeça de Dalí, mas podem retirar daqui uma ideia do que é este disco. Vangelis podia ter começado aqui uma carreira como teclista de um grupo de Rock Progressivo de nomeada, mas a sua vida estava destinada a voos mais altos do que apenas um Rick Wakeman grego, escondido num palco atrás das teclas. Curiosamente, Vangelis recusaria mais tarde a oportunidade de o substituir nos Yes, tendo trabalhado com Jon Anderson a solo, em várias colaborações mais ou menos bem sucedidas nos anos 70 e 80. Mais sobre isto em baixo.


Heaven And Hell (1975)

Originalmente lançado em LP como uma longa composição em duas partes (Lado 1 e Lado 2 do LP), "Heaven And Hell" foi subsequentemente dissecado nos seus vários movimentos, tendo alguns deles tomado vida própria. "So Long Ago, So Clear", que fecha a primeira parte, contou com a voz de Jon Anderson e foi lançado em single em 1975. Lançado no auge do Rock Progressivo, onde os Yes eram figuras de proa, esta colaboração atirou Vangelis para a esfera dos círculos prog e deu-lhe o primeiro êxito da sua carreira. Anos mais tarde, em 1980, o "3rd Movement" foi utilizado por Carl Sagan como tema de abertura da série "Cosmos", que ganhou enorme popularidade com as transmissões na PBS nos EUA e na BBC no UK. Esta visibilidade voltou a chamar a atenção para "Heaven And Hell" e para Vangelis como compositor. Não faltariam convites para trabalhar em bandas sonoras de tudo o que mexesse na década de 80.


China (1979)

Vangelis partilhava da filosofia chinesa relativamente à música, na qual esta tem um efeito preponderante em todo o corpo e intelecto, em vez de ser apenas um meio de entretenimento. Fascinado pelo imaginário chinês, estudioso da sua cultura e dos seus ensinamentos, Vangelis esculpiu em "China" uma imagem colorida e detalhada do gigante do Oriente, sem nunca ter lá estado. "China" quebra a regra dos melhores discos de Vangelis serem bandas sonoras, mas nem por isso. É que o disco não é mais do que a banda sonora do imaginário chinês que passa na cabeça do grego. "China" captura os diversos elementos singulares do país — a sua tradição ("The Tao Of Love"), a sua filosofia ("Yin & Yang"), a tranquilidade das suas paisagens ("The Little Fête"), e a sua vastidão ("Himalaya"). "The Little Fête", em particular, é um dos momentos mais brilhantes de toda a discografia de Vangelis e foi utilizado por Ridley Scott no seu anúncio para o Channel No.5 em 1979. Scott falou com Vangelis sobre uma adaptação ao cinema de um certo livro de Philip K Dick, e o resto é história.


Opera Sauvage (1979)

"Opera Sauvage" foi a terceira, de quatro, bandas sonoras de Vangelis para documentários sobre a vida animal de Frédéric Rossif. Num registo radicalmente diferente dos ecossistemas orgânicos de "L'Apocalypse Des Animaux" (1970) e da percussão tribal de "La Fête Sauvage" (1976), "Opera Sauvage" aproxima-se da sonoridade mais urbana que Vangelis iria adoptar na década seguinte. "Hymne" e "L'Enfant" ganharam notoriedade como singles, mas é em "Rêve" que Vangelis volta a tocar no céu, num longo tema reflectivo que iria servir de maquete para "Blade Runner", anos mais tarde. Vangelis voltaria a trabalhar em mais projectos com Rossif, nenhum deles lançado até hoje. Só "Savage Et Beau" (1984), teve o tema principal incluído na colectânea "Portraits" de 1996. Fica a ideia para uma fundamental caixa Rossif/Vangelis a juntar todos estes trabalhos em áudio e vídeo.


Chariots Of Fire (1981)

Não são precisas grandes apresentações para este. A banda sonora de "Chariots Of Fire" captura na perfeição o imaginário das olimpíadas, ou simplesmente da luta humana pela superação; seja de um atleta do salto à vara, de um cientista no laboratório, ou de um estudante nos exames. Não é um dos meus discos favoritos de Vangelis, talvez por ser demasiado leve e unidimensional, mas essa era a função da música no filme e o objectivo de Vangelis foi cumprido. Em última análise, deve-se a "Chariots Of Fire" o reconhecimento internacional de Vangelis, que se mantém até hoje. Enquanto houver Jogos Olímpicos, vamos ter a música de Vangelis a tocar.


Blade Runner (1982) (lançado oficialmente em 1995)

Todos os caminhos da carreira de Vangelis desaguam aqui. Quando Ridley Scott o desafiou para compor para a sua adaptação de "Do Androids Dream Of Electric Sheep?", Vangelis ficou com a tarefa impossível de fazer música de 2019 em 1982. Kubrick recorrera a Ligeti em "2001", Scott chamou Vangelis. O grego convenceu Scott a usar música atmosférica como parte proeminente do seu filme, para colocar o espectador no futuro. Sempre que Ridley completava uma cena na sala de edição, Vangelis sentava-se em frente às teclas e pintava a paisagem no sintetizador. O resultado foi uma obra assombrosa de cinema onde som e imagem vivem inseparáveis. Se há um filme que atesta o poder da música, é este. Devido a complicações contratuais, a banda sonora original de "Blade Runner" só foi lançada, parcialmente, em 1995. Foi expandida em 2007 em "Blade Runner Trilogy", mas inexplicavelmente, a banda sonora completa continua por lançar — procurem nos locais certos na internet pela "Esper Edition".


Antarctica (1983)

Vangelis seguia a todo o vapor na sua fase imperial na primeira metade dos anos 80. As bandas sonoras para filmes de Hollywood sucediam-se, e pelo meio havia espaço para filmes japoneses obscuros como "Antarctica" — a história verídica de um grupo de pastores alemães que foi abandonado no (longo) Inverno da Antártida e que eu recomendo vivamente. O tema principal é imediatamente reconhecível, pelo menos para quem viu a meteorologia na RTP nos anos 90, mas é em "Antarctica Echoes" que Vangelis tem mais um momento de génio, retratando o frio e a solidão dos caninos no gelo infinito do fim do mundo. Que pode ser uma metáfora para o gelo emocional de que tantas vezes somos rodeados.


The Bounty (1984) (nunca lançado oficialmente)

Vangelis regressa a Hollywood para o remake do clássico "Mutiny In The Bounty", desta feita com um jovem Mel Gibson e um Anthony Hopkins no seu auge. O filme é bom, mas a banda sonora é absolutamente excepcional. Também de forma inexplicável, nunca foi lançada até hoje. Mais uma vez, se pesquisarem nos sítios certos, a internet é vossa amiga. "The Bounty" é mais um ensaio de Vangelis sobre aventura, solidão e ecossistemas aquáticos. O tema dos créditos finais, em particular, coloca-nos setentrionalmente no barquinho do Lieutenant William Bligh, que navegou sozinho em alto mar durante mês e meio, até encontrar costa em Timor. E por falar em navegadores...


1492: Conquest Of Paradise (1992)

A última obra-prima de Vangelis. Os 90s foram muito bons para o grego (ouvir também "Oceanic) e isso deve-se muito à banda sonora do filme de Ridley Scott. Depois de uma segunda metade da década de 80 em crepúsculo, Scott voltou a chamar Vangelis para pintar paisagens sónicas épicas, no seu filme sobre as viagens de Cristóvão Colombo. Numa dimensão diferente da colaboração em "Blade Runner", dez anos antes, Vangelis capturou em "1492" o mistério do desconhecido, que os navegadores viviam nos Descobrimentos, como ninguém fez antes, ou depois. 


Vangelis foi o melhor pintor de paisagens sónicas do último século e há muito mais para conhecer, para além do espectro mais óbvio. Podem começar também com esta playlist: