A crónica do concerto esgotado no Finsbury Park, que culminou o ano em que Sam Fender conquistou o Reino Unido.
Sexta-feira passada fui ao Finsbury Park, no norte de Londres, para ver o futuro do Rock ‘n’ Roll. Ele chama-se Sam Fender e aos 28 anos esgotou, em nome próprio, um dos maiores recintos londrinos. Normalmente reservado a artistas consagrados, com carreiras recheadas de êxitos e um público maturado, o Finsbury Park encheu-se desta feita de adolescentes para ver o fenómeno que conquistou o Reino Unido no último ano, desde o lançamento do álbum “Seventeen Going Under” (que eu laureei na NiT como o melhor álbum de 2021).
Parece um feito inimaginável para um jovem tão novo na indústria musical. Mais ainda quando o público é composto por miúdos, miúdas e uns às cavalitas dos outros. E tochas. E bandeiras. Muitas, qual mini Glastonbury. A loucura no Reino Unido pelo Springsteen de Shields é qualquer coisa de indescritível. Como explicar este fenómeno? Podemos apontar a voz de Sam, a sua honestidade, ou a energia da banda em palco, mas acima de tudo, a resposta está nas canções.
Já o escrevi na NiT, a grande arma de Sam Fender são as suas composições. Antes de Finsbury Park, Sam passou por Glastonbury para fazer um set triunfal (por favor googlem o vídeo completo do set), e se excluirmos os clássicos dos Beatles e do Paul, cujo espólio não me atrevo a comparar, canções como "Seventeen Going Under", "Getting Started", "The Borders", "Spit Of You", "Get You Down", ou "Angel In Lothian", não ficam a dever nada que passou pelos palcos do maior festival do Reino Unido. Pelo contrário. Ninguém nos últimos anos escreveu tantas e tão superlativas canções como Sam Fender.
Se a sua escrita brilha no contexto polido do disco, é ao vivo que as canções florescem. Num Finsbury Park esgotado desde o início do ano, sentia-se a electricidade no prelúdio da entrada em palco de Fender. Para isso também contribuíram os Fontaines D.C., que partiram tudo e deram um dos melhores concertos que vi este ano. Foram o preliminar perfeito para o clímax que viria a seguir. Olhando à minha volta, tentei perceber se era o mais velho da audiência no parque. Não era; ao pé de mim estavam duas mães que serviam de damas de companhia das suas filhas, ainda com a cara pintada de acne. Os gritos do público quando Sam Fender entra em palco com “Will We Talk?” — um tema sobre sexo à primeira vista, do disco de estreia “Hypersonic Missiles” — fazem desta a experiência mais próxima da Beatlemania que eu certamente vou alguma vez testemunhar.
Seguiu-se o retumbante “Getting Started”, um dos temas-chave do novo álbum, que pôs o público a saltar e as cervejas a voar. É impossível não ficar contagiado com a energia da banda de Fender, especialmente do seu teclista Joe Atkinson, uma espécie de hype-man que parece estar a divertir-se tanto como o público à sua frente. Pelo menos salta e grita as letras tanto como eles.
Joe é um dos homens fortes de uma banda de amigos que toca de olhos fechados. Não admira, ou não estivessem juntos desde os tempos em que andavam na escola em North Shields, nos arredores de Newcastle. Sam Fender introduz Dean Thompson, na guitarra, como o seu melhor amigo desde os 10 anos de idade. Destacam-se também o saxofonista Johnny “Blue Hat” Davies, que usa sempre uma camisola do clube da terra (o Newcastle FC) e, tal como o nome indica, um chapéu azul; e não esquecer o baterista Drew Michael, que parece o líder dos War On Drugs, mas bate com a mesma força de John Bonham.
O set de Sam Fender em Finsbury Park teve de tudo um pouco e até deu para estrear em palco o radio-friendly "Alright", tema novo que fora lançado no próprio dia no Spotify. Mais conhecido por estas canções singalong, Sam provou que também sabe carregar no acelerador, com "Spice” (Up Your Life) (nada a ver com as Spice Girls) e "Howdon Aldi Death Queue", um rasganço punk interventivo sobre filas de trânsito num Aldi nos subúrbios de Newcastle, que figurou no Lado B do single "Seventeen Going Under".
Esta sequência espoletou o caos na plateia, com vários focos de incêndio (literal) com tochas e mosh pits impróprios para sandálias e outros tipos de calçado veraneante. Eu próprio atrevi-me a entrar no primeiro mosh pit desde que parti quatro dedos do pé direito, num concerto dos The Prodigy no Alive de 2015. Não correu bem. Não só já cruzei os trintas, como os miúdos de hoje acumulam muito mais horas de ginásio que as minhas zero. Depois de bater com os costados no chão, voltei para a minha posição de ancião nas bordas do mosh pit. Sam tenta o comentário social nos temas mais pesados, mas é quando escava fundo em si mesmo, que ele é extra-extraordinário.
Recomposta a plateia depois da sequência incendiária, Sam entrou na fase imperial da setlist. Começou com o tema que me fez fã, precisamente por me tocar num ponto emocional mais sensível. "Get You Down", tal como todo o disco mais recente, fala de dores de crescimento. "I look myself in the mirror, see a pathetic little boy, who’s come to get you down". Sam consegue condensar a minha adolescência numa frase. Uma viagem no escuro, sem guia, que é a entrada na vida adulta.
Segue-se mais um murro lírico no estômago. A introduzir "Spit Of You", Sam Fender pergunta: "You know when you love someone so much, SO MUCH, that you just want to punch them in the face? …this song is about me dad". Mais uma história com que milhões se podem identificar, da difícil relação com o próprio Pai — o maior amigo e o maior inimigo, tudo ao mesmo tempo, na cabeça confusa de um adolescente à procura de afirmação e do seu lugar no mundo. "I can talk to anyone, I can talk to anyone, I can’t talk to you" ilustra a relação Pai-filho, mas serve igualmente para relações românticas, em que se ama tanto que se perde a razão. Não consegui conter uma lágrima aqui. O génio de Sam Fender é este, fazer canções tão consanguíneas com as nossas experiências.
E por falar em experiências semelhantes, Sam sentou-se ao piano e dedicou "The Dying Light" a todos aqueles que cresceram numa cidade pequena, e toda a infância sonharam fugir dali. "Whoever comes from a small town knows what I mean. This is for you.", disse, entre dois goles numa Newcastle Brown Ale (histórico patrocinador do clube da cidade). Quando Sam cantou os versos "I’m alone here, even though I’m physically not", caiu a segunda lágrima no espectador que veio de Castelo Branco.
O clímax da noite viria pouco depois com "Seventeen Going Under", o tema que lavrou o Reino Unido no último ano. "Esta canção voou mais alto do que qualquer um de nós poderia imaginar", confessou Sam Fender na introdução. O tema-título do disco mais recente de Fender é um hino capaz de desencadear um coro de 50 mil adolescentes, a cantar em uníssono sobre traumas reprimidos de infância e a libertação dos seus demónios — “I was far too scared to hit him, but I would hit him in a heartbeat now”. No rei de todos os temas singalong, o público cantou não só a letra, mas também os instrumentais, e claro, o inevitável oh-oh-oh, marca de água de Sam. "You hurt the ones who love you, you hurt them like they’re nothing" — gritei também eu a plenos pulmões. Terceira lágrima da noite.
Já tinha visto Sam Fender em 2019, no Hyde Park, a abrir para Neil Young e Bob Dylan. Mais tímido e ainda em início do processo que o levou até aqui, Sam não conseguiu conectar com uma audiência mais velha que, sabemos hoje, claramente não era a sua. Os fãs experientes existem, mas Sam toca Rock para a geração mais nova. Poucos, muito poucos artistas apareceram nas últimas décadas, capazes de fazer rock para adolescentes. Esse é o grande triunfo de Sam. Mesmo para alguém como eu, que sempre se sentiu bem à parte, a ouvir a música transgressiva que mais ninguém no meu círculo ouvia (e tenho a certeza que muitos que lêem isto sentem o mesmo), é um bálsamo olhar para o palco e ver alguém que canaliza tão bem as minhas emoções e frustrações, e depois olhar à minha volta e ver milhares a viver a mesma experiência, independentemente da idade. Esperei muito tempo por alguém assim.
As comparações com Bruce Springsteen serão sempre inevitáveis, mas Sam não parece querer evitá-las. No momento alto dessa tarde em 2019, Sam introduziu "The Borders" como “just another Springsteen ripoff”; que o é (e não é o único). E tal como “Dancing In The Dark”, também “The Borders” acompanha uma lírica sombria (“No wonder you can't stand me, I can't stand me too”), com uma melodia alegre (uma técnica cristalizada pelos The Smiths nos anos 80). É um dos melhores temas que ouvi nos últimos anos. Eu sou mega fã do Boss, mas quem dera a Bruce estar a escrever canções como Sam neste momento.
O fenómeno Sam Fender prossegue e a história continuará a ser escrita com um novo disco, que espero que não demore muito para manter o momentum. Depois de dois álbuns no número 1 das tabelas britânicas, de arrasar Glastonbury, abrir para os Stones, esgotar duas noites no Wembley Arena e agora uma no Finsbury Park, o que resta a Sam Fender? O Reino Unido já está a seus pés, só lhe resta agora o mundo. Estamos à tua espera, Sam.
P.S.: A época dos festivais em Portugal ainda vai a meio e eu já posso apontar qual será o grande pecado dos cartazes deste ano. Uma imperdoável falta de Sam Fender.
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