Fui ver a estreia do novo filme sobre David Bowie ao IMAX do BFI, e saí ainda mais fã do que entrei.
A vida em Londres é sempre a voar. Com a estreia do novo filme sobre David Bowie, "Moonage Daydream", a calhar numa quinta-feira no IMAX do BFI em Waterloo, e sem tempo para comer entre o trabalho e o início da sessão, o meu jantar foram três pints no pub por baixo da estação (há sempre tempo para uma pint. Ou três). Não admira, pois, que, quando me sentei na sala, já levasse a cabeça a andar à roda. Nada que interfira com o visionamento de um mero documentário sobre a vida e carreira de um músico. Achava eu.
Só que "Moonage Daydream" não é um documentário qualquer. Pode-se até conjecturar que é a antítese de tudo aquilo a que nos habituámos a ver num documentário Rock — um narrador a apresentar uma história temporalmente linear e uma selecção de comentadores que privaram com o sujeito, ou o estudaram, a explicar os quês e os porquês dos factos e acontecimentos ocorridos na sua vida. Não há nada disso aqui. O realizador, Brett Morgen, não está interessado em apresentar uma biografia factual de David Bowie; prefere antes dar a conhecer o artista através de frases-fortes proferidas na primeira pessoa, e imagens de momentos-chave da sua carreira. “Sound And Vision”, já dizia o próprio. É com este binómio tão familiar, que Morgen pretende atingir o espectador no cinema, com as mesmas sensações que Bowie intimava nos seus espectáculos.
Em vez do clássico "Rockumentário", somos então sugados por um drug-movie que quebra todas as regras do formato — um cruzamento entre Gaspar Noé e David Lynch, que devia vir com um pré-aviso de luz estroboscópica e banda sonora taquicárdica, não recomendável aos mais susceptíveis de epilepsia e hipertensão. Ao ponto de o próprio realizador sugerir o consumo de psicotrópicos antes do visionamento do seu filme* Foi sem dúvida uma das experiências sensoriais mais potentes a que alguma vez fui submetido. Tendo em conta que Bowie trabalhou com Lynch em Twin Peaks e era fã do excêntrico realizador americano (não sei o que achava de Noé), estou convicto que ele iria gostar de "Moonage Daydream".
Desde logo porque neste filme, David é o narrador da sua própria história. Uma história de um alien, dizem os líricos, mas que na verdade era apenas um homem, inexoravelmente humano, à procura de si mesmo e, como todos nós, a desejar amar, e ser amado. O amor que, diz Bowie na primeira parte do filme, "não se pode intrometer no meu caminho". "Eu escondo-me muito do amor", confessa. "Sei que o amor é poderosíssimo, mas não tenho tempo para uma relação e não posso deixar que uma coisa dessas afecte a minha carreira". Nos minutos finais, um Bowie mais velho e experiente emenda a mão: "eu sei que no passado disse que estar apaixonado era como estar doente, mas hoje já não me revejo nessa frase”. O mais importante vem sempre acima.
A alegoria da viagem está bem presente em "Moonage Daydream". “Não desperdicem um único minuto da vossa vida”, diz um Bowie já ancião. Uma viagemde auto-descoberta relatada na primeira pessoa: "Passei muita da minha energia, toda a minha vida, a tentar fugir de onde vim e a tentar encontrar quem sou". Bowie acrescenta: "O que o público vê, não é real. Eu não sou real. O Mick Jagger não é real. O John Lennon não é real. Somos todos projecções do artista que queremos ser." O que não significa que saibam quem realmente são.
"Moonage Daydream" lembra-nos repetidamente que Bowie era um poliglota artístico, sempre em busca de novas linguagens para se exprimir. A música era apenas um destes idiomas - Bowie foi actor, pintor, escultor, e sempre que sentia que dominava um dialecto, saltava para o seguinte. "Vão sempre para fora da vossa zona de conforto", aconselha Bowie, enquanto o vemos a subir mais umas escadas rolantes."Sempre que sentirem que estão a perder o pé, é aí que estão perto de fazer uma nova descoberta". A sua curiosidade, criatividade e entusiasmo são contagiantes. Foi à procura de novas linguagens musicais que Bowie matou Ziggy, acabou com o Thin White Duke, ou fugiu de L.A., para se refugiar em Berlim. "Queria fugir de Los Angeles e pensei qual seria o lugar mais oposto no planeta para recomeçar — Berlim!". Ali, Bowie fez equipa com Brian Eno e Tony Visconti, em busca da reinvenção da sua carreira.
Visconti assina a banda sonora frenética de "Moonage Daydream", uma colagem de sons e excertos de toda a discografia de Bowie, desconstruindo para fazer de novo, por vezes a lembrar o mashup dos Beatles ,"Love", para o espectáculo do Cirque de Soleil. A mistura de Visconti é imersiva, de volume no máximo, certamente o melhor que Bowie já soou numa sala de cinema e o mais próximo de um concerto do saudoso cantor.
As filmagens de D. A. Pennebaker do lendário concerto no Hammersmith Odeon em 73, onde Bowie mata Ziggy Stardust, são a peça fulcral do filme. Desde logo, porque vemos a faixa que dá nome ao filme, "Moonage Daydream", interpretada por um Bowie, Mick Ronson e restantes Spiders From Mars, todos em absoluto pico de forma. Depois, porque podemos pela primeira vez ver, e ouvir, o delicioso medley “The Jean Genie / Love Me Do”, com participação especial de Jeff Beck na guitarra, que no passado vetou sempre o seu lançamento. Esta é a primeira vez que podemos ver este momento histórico. E claro, ver Bowie na pele de Ziggy é o tónico perfeito para um filme onde é pintado um artista que tem muito pouco de terreno.
Quando Bowie desce eventualmente à Terra, vemo-lo a dar um linguado a uma caveira na Soul Tour de 1974, parte do filme “Cracked Actor” que nunca viu a luz do dia oficialmente em home video. Outras imagens que nunca viram a luz do dia e estas vemos mesmo pela primeira vez, são as de Earl’s Court em 1978, tourné Isolar II, de promoção a ““Heroes”” (notem as duplas aspas) que aparecem aqui com uma qualidade insana. Criminoso, como ainda não temos o filme desse concerto nas nossas prateleiras, a fazer companhia ao disco ao vivo "Welcome to The Blackout".
"Moonage Daydream” é um ataque aos sentidos, uma experiência sensorial intensa, até por vezes desconfortável, que nos vira do avesso, dilata as pupilas (pensem "naquela" cena do "Laranja Mecânica"), e nos deixa a cabeça a andar à roda. Algumas filmagens artísticas mais recentes, que nada têm a ver com Bowie, eram desnecessárias, mas o saldo é francamente positivo. Confesso que não estava à espera que fosse tão bom. Quando a arte nos abana desta forma, é aí que sabemos que é boa. Se Bowie não disse algo parecido, poderia ter dito.
* Não foram consumidos psicotrópicos no visionamento deste filme. A sério.
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