terça-feira, 8 de novembro de 2022

“Only The Strong Survive”: o projecto de vaidade que fecha o ano horrível de Bruce Springsteen


Sou fã do Bruce Springsteen desde que o meu Pai trouxe para casa um CD de capa branca, com um homem de guitarra às costas, tinha eu 9 anos. Desde que fui introduzido com o “Greatest Hits”, que tive a minha vida preenchida e aumentada pela música do Bruce. Entre o meu velhinho blogue e as publicações da NiT, já escrevi mais de 30 textos sobre o Boss, todos elogiosos para com a sua música. Num artigo escrito há 3 anos, conto o episódio de quando o conheci pessoalmente e pude atestar que ele era tão cool como eu imaginava. Acrescentei na altura que Bruce “é muito mais do que um mero herói. Os heróis têm uma vida finita e perfeita. Vivem durante um filme, um livro, uma música. Bruce é real, com todas as imperfeições que tal encerra e que constroem um personagem muito mais complexo”. Eu gosto de ver os meus heróis sob a lupa dos seus defeitos (não há nenhum que não os tenha), de modo a humanizá-los. Porque todos os heróis cometem erros e Bruce acumulou muitos no último ano. E o pior de tudo, é que eu acho que ele nem sequer sabe que errou.

As coisas até começaram a prometer com o anúncio da digressão europeia da E Street Band, a primeira desde 2017; e possivelmente a última, tendo em conta que Bruce já leva 73 anos e os shows da banda são célebres pela energia eletrizante e pela duração acima das 3 horas. A bolha de entusiasmo rebentou rapidamente com o escândalo da venda de bilhetes para a digressão americana (que eu vou explicar com mais detalhe em baixo) e, como as coisas podem ficar sempre piores, agora chega-nos um álbum de covers Soul absolutamente insípido, que na melhor das hipóteses nos diz que Bruce entrou na sua fase Rod Stewart — artisticamente vazio e remetido a uma carreira de cantor de karaoke — e na pior, nos sugere que Bruce está na sua fase Madonna — completamente alienado do mundo real.

Vamos por partes. Antes de nos focarmos no novo disco, puxemos um meses para trás, até ao escândalo do “preço dinâmico” dos bilhetes na digressão americana. Para quem não sabe, o esquema de preço dinâmico segue a mesma lógica que se usa nos hotéis e nas viagens de avião, isto é, uma procura elevada no sistema dispara o preço dos bilhetes. Apesar do esquema ter sido anunciado, os fãs, fiéis e alheios a esta nova forma de extorsão, mobilizaram-se de cartão de crédito em punho à hora do início da venda de bilhetes, como sempre o fizeram no passado. O resultado foi catastrófico. Com o sistema entupido em poucos minutos, os preços das entradas para a plateia dispararam para a ordem dos 5 mil dólares. Até os lugares longe do palco não se conseguiam comprar por menos de 500 dólares.

É verdade que este sistema não é original, os Rolling Stones já faziam isto, mas os Stones nunca chamaram a si um pedestal moral, do qual Bruce sempre se valeu, por exemplo, nas suas posições políticas. Os bilhetes venderam-se, como sempre, mas não todos. Pela primeira vez, Springsteen vai entrar numa digressão que à partida não está esgotada. Além desta efeméride, o resultado prático da manobra foi que milhares de fãs do Bruce, que o seguem há décadas, ficaram de fora dos concertos. Os shows passaram a ser, efetivamente, um exclusivo para os super ricos, e um luxo proibitivo para a classe média. Ele afastou conscientemente os fãs que passam dificuldades, os mesmos sobre quem ele vai cantar.

Supostamente, este esquema vem auto-regular o mercado, ainda que de uma forma selvaticamente liberal e claro, ultra lucrativa para o Bruce. Ora, Bruce Springsteen é reconhecidamente um artista com uma posição política forte e fortemente à esquerda. Como se explica, então, tal ganância a quem toda a vida cantou sobre as provações da classe trabalhadora? Ficou uma nódoa que vai ser difícil, se não impossível, de tirar.

Compreender-se-ia esta manobra num quadro de dificuldades financeiras, ou de angariação de fundos para uma causa. Mas não. Bruce acabou de receber um cheque recorde de 500 milhões de euros (!) da editora pela venda dos direitos do seu catálogo, a maior quantia um artista já recebeu, e um valor que nem sequer é comensurável para a tal classe média que ele representa. Nada contra ver o Bruce receber tal quantia, pelo contrário, eu próprio já lhe deu muito do meu bolso (comprei bilhetes para quatro datas desta digressão e, acreditem, não foram baratos); mas para quem é tão obscenamente (e meritoriamente) rico, reitera-se a questão: como se justifica esta exploração predadora aos bolsos dos seus tão fiéis fãs?

A única explicação que encontro é esta: Bruce Springsteen está completamente desconectado com a realidade. Talvez da idade, talvez do (muito) dinheiro, talvez da muita bajulação (da qual eu também sou culpado), alguma coisa parece ter mudado em Bruce desde a pandemia. Depois de uma vida sempre com os pés no chão, Bruce parece finalmente ter-se deslumbrado. O novo álbum, “Only The Strong Survive”, um disco de covers Soul a ser lançado na próxima semana, parece vir a confirmar isto. E se eu utilizei o verbo “parecer” três vezes neste parágrafo, é porque ainda estou em negação.

Não há nada de particularmente obsceno sobre este disco. A premissa é inofensiva: Bruce Springsteen quis fazer um álbum de homenagem aos seus heróis do Soul, com uma coletânea de covers. Não são temas muito populares (como fora a seleção de Phil Collins, no seu disco “Going Back”, de premissa semelhante), nem tão-pouco completamente desconhecidos. As canções trazem a tarimba de qualidade da Motown, da performance nas tabelas, e do teste do tempo.

Mas também não há nada de particularmente, ou sequer remotamente interessante neste disco. Sem música assinada por ele, Bruce tinha aqui a oportunidade de pôr a sua impressão digital nas suas canções favoritas, mas os temas são largamente uma cópia tirada a papel químico dos originais. Quem conhece as versões originais, não vai encontrar nada de novo aqui, a não ser a voz de Bruce. E convenhamos, com um Bruce septuagenário a cantar, não há nenhuma razão para se ouvir estas versões em detrimento dos originais da Motown. A escolha do nome do disco, diga-se, também não foi a mais feliz. Para quem acabou de lançar um álbum sobre a morte dos seus amigos (“A Letter To You”), segui-lo com “Only The Strong Survive” não foi propriamente a melhor ideia.

Nem tudo é mau. Quando a música começa a tocar, está tudo no sítio, com a produção de Ron Aniello a fazer a colagem primorosa às gravações antigas. Ouvimos Bruce a canalizar o seu melhor sotaque de Filadélfia e Nova Orleães, a interpretar temas que claramente lhe dizem muito. A performance em “The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore” é o meu ponto alto do disco, talvez porque seja o tema mais próximo do que Bruce escrevia nos anos 70, ou talvez porque tenha mais do seu cunho pessoal. É preciso procurar o dedo de Bruce no detalhe e nas entoações, como em “Someday We’ll Be Together”, uma interpretação potente que fecha o disco e que supera o original de Diana Ross, mais nuanceada, mas menos emocional que Bruce. É a excepção que confirma a regra de “Only The Strong Survive”.

Se a ideia era fazer um disco Soul, seria muito melhor Bruce recorrer às suas próprias composições. Atentem, por exemplo, no disco “The Promise”, com canções escritas na época de “Darkness” (1976-1977), mas só lançadas em 2010. Uma seleção desse repertório permite-nos ouvir como seria um verdadeiro álbum Soul de Bruce Springsteen: “The Brokenhearted”, “Someday (We’ll Be Together)” — não confundir com o tema das Supremes, “One Way Street”, “Breakaway”, e só aqui já temos pelo menos meio disco maravilhoso.

Em última análise, “Only The Strong Survive” é um projecto de vaidade que vai chegar no dia 11 de novembro e vai desaparecer tão depressa como chegou, sem deixar marca. Os fãs vão comprar, ouvir uma vez e guardar para nunca mais. Não haverá uma única pessoa, dos milhões que compraram bilhetes para a tour do próximo ano, a pedir um destes temas para o set de Bruce. Com tanta música nova para ouvir, é difícil encontrar um motivo para escutar este disco mais que uma vez. E isto vem de quem ainda hoje ouve em repeat faixas dos últimos discos “Western Stars” e “A Letter To You”. Infelizmente, “Only The Strong Survive” parece vir de alguém que já não tem nada a dizer, e tendo em conta os últimos discos de Bruce, eu nem acho que isso seja verdade. Mas é certamente, e de longe, o projecto mais descartável da carreira de Bruce Springsteen.

No fundo, é um disco novo de Bruce Springsteen que não tem música de Bruce Springsteen, e esse é o grande problema de “Only The Strong Survive”. É bege, insosso, sem a chama da E Street Band e sem a sinceridade dos seus discos a solo. E pior, é apenas o primeiro volume, com um segundo previsto para Março. Os fãs, ávidos por música nova do Bruce, vão ter que continuar à espera.

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