quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A crise de meia-idade de Noel Gallagher

Respirem fundo, vem aí um longo ensaio sobre o novo álbum de Noel Gallagher

Há quem compre um Porsche e há quem comece uma banda. Noel Gallagher já não quer nada com os Oasis e por isso fez um álbum ostensivamente diferente de tudo o que tinha feito até agora. Ou pelo menos é essa a ideia que ele quer passar. Só que não é bem assim.

Um desejo antigo

Vamos ler nos próximos dias muitas reviews que apontarão "Who Built The Moon?" como "uma revolução", "um enorme desvio na sonoridade" de Noel e se perguntarem ao próprio, ele será o primeiro a confirmar tal teoria. Nada mais falso. Quem esteve com atenção ao que Noel fez nos últimos 20 anos percebe que este disco é um avanço lógico e apenas a concretização de um desejo antigo. Os sinais estavam todos lá.

Noel começou a flirtar com sonoridades psicadélicas em tempos tão idos como 1998, nas sessões do que poderia ter sido o seu primeiro álbum a solo, abortado quando o seu irmão Liam invadiu Wheeler End — o estúdio onde Noel gravava sozinho — e assim ressuscitou os Oasis, nascendo daí o álbum "Standing On The Shoulder Of Giants" (2000); mais tarde, ainda nos Oasis, em temas como "Falling Down" e "The Turning" de "Dig Out Your Soul" (2008); já a solo, com "AKA... What A Life!" do seu homónimo álbum de estreia (2011); no álbum de colaboração com os Amorphous Androgynous que ficou na gaveta, de onde ainda sobreviveram pérolas como "The Right Stuff" e "The Mexican", que acabariam no último álbum até à data "Chasing Yesterday" (2014). Este disco não nasceu do vácuo.

Uma campanha desastrosa

Para quem esteve atento, a "nova direcção" trilhada em "Who Built The Moon?" é somente um passo natural no arco discográfico de Noel Gallagher. Já a forma como Noel quis promover este disco foi tudo menos natural. O mancuniano quis deixar bem claro que este é um corte com o passado e talvez com medo que as pessoas não percebessem a ideia, decidiu proceder a uma estratégia de marketing verdadeiramente kamikaze.
Para dar início às hostilidades, começou por virar os seus próprios fãs contra si, apelidando-os de "little 15-year-old snotty cunts with polka-dot scarfs" (uma tradução livre disto poderia ser "pequenos coninhas ranhosos de 15 anos com écharpes às bolinhas"), sublinhando que a intenção neste momento é dividir a sua fanbase para deitar fora os "Parka Monkeys" (numa óbvia referência ao irmão Liam).

Alienar propositadamente os próprios fãs? Como se justifica uma coisa destas? Duas hipóteses de explicação. Primeira hipótese: Noel passa por uma crise identitária de meia-idade e já não se identifica com os seus fãs; agora é BFF de Bono Vox, frequenta as festas da alta sociedade e acha que cresceu cultural e socialmente para lá do espectro dos Oasis, da Britpop e da lad culture que os engloba. Segunda hipótese: Noel sempre tratou os seus fãs com desdém e mesmo assim, eles estiveram sempre lá durante mais de 20 anos; Noel achou por isso que eles nunca o iriam abandonar e quis ir à procura de novos targets.

O problema é que nisto Noel esqueceu-se de duas coisas muito importantes: são os seus fãs leais que compram os discos que lhe dão o dinheirinho no fim do mês; os seus fãs são leais não só a ele, mas também ao irmão mais novo e até podem admitir que Noel os insulte, mas não admitem que rebaixe o Liam que, apesar dos 45 anos, ainda é carinhosamente chamado de R Kid (o nosso miúdo). O resultado desta campanha desastrosa, ao nível de António Costa nas Legislativas de 2015, foi que Noel passou de Chief — adorado por milhões, a Beige Boy — bombo da festa nas redes sociais.

As primeiras amostras

Não foram só os insultos que espantaram os fãs de Noel. O Chief quis desde logo dar a conhecer dois temas fracturantes para mostrar ao que vinha: o inenarrável primeiro single "Holy Mountain" (já lá vamos) e a faixa de abertura "Fort Knox", tema que Noel diz ser inspirado em "Power" de Kanye West (2007) — uma referência interessante, mas (não por acaso) das menos aprazíveis para os fãs dos Oasis. Escolhida a dedo, portanto.

"Fort Knox" é um tema predominantemente instrumental, que canaliza as brilhantes sessões de "Standing On The Shoulder Of Giants", mais especificamente temas como "Fuckin' In The Bushes" e "Teotihuacan" (que acabaria na banda sonora dos X-Files), com um óbvio toque do produtor David Holmes — cuja influência se faz sentir ao longo de todo o disco. Holmes é conhecido pelo seu trabalho em bandas sonoras cinematográficas e pelos seus discos Trip Hop no final dos anos 90 (atentem em "Don't Die Just Yet", do álbum "Let's Get Killed" (1997)). Foi uma excelente aposta de Noel para a produção deste álbum (já me estou a adiantar na review) e o seu dedo sente-se logo no primeiro tema.

Antes de "Fort Knox", já tínhamos ouvido o ofensivo "Holy Mountain". Já o disse aqui — um rip-off de uma banda francesa dos anos 70 (Plastic Bertrand) com um refrão do Ricky Martin. É tão mau que parece uma piada. O melhor que posso dizer deste descarrilamento é que é, de facto, catchy. Mas catchy na mesma medida em que "She Bangs" é catchy, por isso não sei até que ponto pode ser um elogio. "Holy Mountain" assustou toda a gente, mas talvez fosse esse mesmo o propósito de Noel — gerar atenção.

O Scissorgate

Não contente com o choque gerado pelas duas primeiras amostras do álbum, Noel subiu a parada e apareceu no programa de Jools Holland para tocar o novo "She Taught Me How To Fly" com uma miúda na banda a tocar... uma tesoura. Sim, leram bem. Foi o Scissorgate. Se os fãs de Noel já estavam confusos, pior ficaram. "O que raio se está a passar com o nosso Noel?", perguntava-se nas redes sociais. Do outro lado da barricada, Liam retorquiu com a promessa de ter alguém em palco a afiar um lápis e mais uma vez ganhou o lance.

Noel estava habituado a que tudo o que fizesse fosse visto como cool e a verdade é que se o scissorgate tivesse acontecido há um ano, a reacção teria certamente sido outra. Mas meses de má publicidade fazem muita coisa e quando começaram a aparecer pessoas a descascar batatas nos concertos de Liam (numa clara alusão ao insulto clássico do mano mais novo), Noel percebeu que passara a alvo de chacota público. Para piorar, os fãs não estavam a comprar bilhetes para os seus concertos (que normalmente esgotam em minutos) e terá sido aí que se deu o clique e Noel acordou da sua crise de identidade. Seguiram-se algumas entrevistas mais sóbrias, onde defendeu que "isto é só um álbum" e que "daqui a 10 anos isto vai ser olhado como apenas uma fase", mas o mal estava feito.

Resta apenas a música para salvar Noel Gallagher. Será que o seu novo álbum o pode salvar? A review de "Who Built The Moon?" segue dentro de momentos.

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