sábado, 27 de outubro de 2018

Is this just fantasy? — "Bohemian Rhapsody" foi exactamente o desastre olímpico que eu esperava

O cronista da NiT e fanático dos Queen foi à estreia mundial em Londres e traz a review do filme que chega para a semana a Portugal

"Bohemian Rhapsody" foi exactamente o desastre olímpico que eu esperava que fosse. O filme é uma espécie de versão Disney da história dos Queen: limpinho, lavadinho, uma visão higienizada de Freddie Mercury que se pode mostrar às crianças e imprimir em livros de colorir. Em Maio escrevi aqui que com os dados que estavam lançados, só podíamos temer o pior e as expectativas confirmaram-se. O Dr. Brian May é um homem de muitos talentos — um dos mais inventivos, melódicos e singulares guitarristas da história da música; um astrofísico brilhante; um protector felino do seu legado — mas infelizmente, a produção de filmes não é um desses talentos. Foi exactamente por isso que Sacha Baron Cohen abandonou o projecto, quando percebeu que o instinto protector de Brian não iria permitir o filme ganhar as asas que merecia.

Antes de mais, deixem-me desmontar um mito que se criou quando começaram a sair as primeiras fotos e os primeiros trailers do filme: Rami Malek não é um bom Freddie Mercury. Ele imita-lhe os movimentos, sim, mas não conseguiu capturá-lo. Para se ser Freddie, não basta imitar-lhe as poses; não basta arranjar um treinador de movimentos para copiar exactamente como Freddie se movia do Ponto A para o Ponto B. Não chega. Para se ser Freddie, é preciso entender Freddie. É preciso fazer os mesmos movimentos, mas com a mesma força, a mesma confiança e a mesma autoridade. É preciso perceber que este era um homem extremamente inseguro que, quando lhe davam um microfone para a mão, era o Rei do Mundo e não tinha dúvidas disso (e não estou a ser metafórico).

Atente-se por exemplo na célebre performance do Live Aid: reparem como Freddie comanda uma audiência de 80 mil pessoas no Wembley e 2 mil milhões de pessoas em casa como se de um exército se tratasse; como ele ordena o público a segui-lo — "I like it, SING IT AGAIN!" — e todos o fazem com um sorriso nos lábios, como quem está a carpir mágoas numa experiência metasensorial. Não se sente nada deste poder em Rami Malek. Tudo é mecânico, forçado e sem vida, como se estivesse a reproduzir uma coreografia num musical. Há muito pouco de Freddie em Rami. Lamento, mas meter uma dentadura não chega.

Em defesa de Rami Malek, devo dizer que a tarefa que tinha entre mãos era extraordinariamente difícil. Mas temo que na preparação do filme, ele nunca tenha percebido isso. Eu entendo que Rami não tenha tempo para perder em tamanha dedicação. Afinal, há mais filmes e séries para gravar. E não há problema nenhum com isso, entenda-se. Rami Malek é um bom actor, mas não é o actor que Freddie precisava. É muito poucochinho. Era preciso estudar, ver horas, dias, semanas, meses de vídeos de concertos, entrevistas e filmagens do "boring Freddie" para se perceber a extrema riqueza, profundidade e complexidade deste homem tão brilhante e perturbado. Era preciso tempo e dedicação. Era o papel de uma vida. Era preciso um method actor. Como por exemplo, se bem se lembram, Sacha Baron Cohen.

Dito isto, a performance de Rami Malek está longe de ser o pior de "Bohemian Rhapsody". É apenas aquilo que salta mais à vista para um fã dos Queen mais atento. Isso e as inúmeras imprecisões históricas, que vão muito para além do moustachegate de que falei na semana passada (os Queen a  gravarem "We Will Rock You" com Freddie Mercury de bigode). A banda sonora já tinha dado a dica, com um alinhamento cronologicamente todo trocado, mas que é exactamente aquilo que vemos no verdadeiro caos factual que é "Bohemian Rhapsody".

As coisas começam logo mal quando vemos os Queen numa digressão americana em 1974-1975 ao som de "Fat Bottomed Girls", escrito em 1978 (altura em que Freddie já tinha cabelo curto e se vestia em cabedal integral). Mais à frente, vemos Freddie a explicar a Mary Austin que "Love Of My Life" foi escrito para ela, enquanto lhe mostra imagens (reais) de um concerto no Rio de Janeiro que na realidade ocorreu 10 anos mais tarde (1985), mas com Freddie a utilizar um stage costume de 1976. No filme, "We Will Rock You" (1977) é composto em 1980 e "Another One Bites The Dust" (1980) é escrito em 1982 para terminar uma discussão do grupo na gravação do álbum "Hot Space". Para quem conhece a história dos Queen, tudo isto é no mínimo bizarro.

Daqui para a frente, a História como-realmente-aconteceu é completamente deitada pela janela fora. O caos é total, com o filme a contar uma narrativa dos Queen nos anos 80 que simplesmente não aconteceu, muitas vezes através de cenas parodicamente dramatizadas, que mais parecem saídas de uma telenovela mexicana. E tudo culmina no bizarro dia do Live Aid em que, no mesmo dia, Freddie consegue encontrar o homem que tinha tomado o seu coração 5 anos antes (Jim Hutton), leva-o a tomar chá a casa dos pais, reconcilia-se com Mary Austin e ainda faz o Live Aid. Há dias que têm 5 anos, de facto.

Mas não pensem que o pior do filme é esta embrulhada temporal. O filme trata a maiorias dos episódios da História dos Queen pela rama, preocupando-se em demasia em enunciar o maior número de factos, sem lhes dar o devido contexto. Porque é que as coisas aconteceram como aconteceram? Não interessa, é preciso andar mais uns anos, que o filme não pode ser muito longo. E isto reflecte-se na profundidade das próprias personagens. Na verdade, à excepção de Freddie, Mary Austin e Paul Prenter (o grande vilão da história), nenhum dos personagens do filme têm personalidade própria. Todos se limitam a deixar-se levar mecanicamente de episódio em episódio, como se fossem props do filme, para relatar vagamente e em ordem caótica factos que se passaram na história dos Queen.

Dos personagens, sabemos que o Brian é um astrofísico, que o Roger gosta de gajas e que o John não tem interesse nenhum. E sabemos disto porque o Freddie o diz numa das muitas cenas interrompidas por "momentos informativos" em que se sente o evidente toque do Dr. Brian May, que quer deixar bem claro quem-disse-o-quê e assim esclarecer a audiência sobre quem estava do lado certo da história (entenda-se: Brian e Roger estavam certos, contra Freddie e John).

"Bohemian Rhapsody" vale por ser uma (sempre pertinente) celebração dos Queen. Nem tudo é mau. Em primeiro lugar, a música. Aqui, não havia que enganar. A utilização de gravações originais dos Queen no filme foi uma decisão acertada e se aqueles ensaios para o Live Aid são gravações genuínas do Freddie a desafinar e a perder a voz, então tiro o meu chapéu ao Dr. Brian May, porque temos ali um tesouro.

O ponto alto do filme é a composição do tema "Bohemian Rhapsody" nos Rockfield Studios (uma quinta no Sul de Gales) . Aqui sim, é deixado o espaço e o tempo suficiente para a acção respirar e o filme se desenrolar. É precioso ver o método criativo de Freddie a compor a letra da canção, numa altura que se apercebia da sua sexualidade. É maravilhoso ver o Freddie obsessivo a puxar a voz de Roger Taylor aos limites para só mais um Galileo. É magnífico ver Freddie picar Brian para melhorar o seu solo de guitarra: "Está bom, mas agora toca como se a canção fosse tua!". É uma cena que vale o preço do bilhete do filme. Essa e o impressionante CGI que recriou o (entretanto demolido) Estádio do Wembley para a cena do Live Aid. O filme utiliza o áudio original dos Queen no Live Aid e se a performance de Rami Malek é demasiado mecânica, toda a caracterização que rodeia a cena é absolutamente irrepreensível.

A escolha dos restantes actores também foi na generalidade feliz. O actor que faz de Brian May é mais parecido com o Brian May que o próprio Brian May. O actor de John Deacon também é inacreditavelmente igual. Já para Roger Taylor, não conseguiram encontrar um actor que ficasse tão bem vestido de mulher como o Roger (não era fácil). Bob Geldof também está brilhantemente representado, assim como Jim Hutton e Bono Vox, que faz uma aparição relâmpago no início do filme no backstage do Live Aid. Se a preocupação com a caracterização foi evidente, que dizer do guarda-roupa, que é simplesmente fenomenal. Todos os fatos de Freddie estão lá e toda a gente parece saída da década de 70 e 80. Quando não está tudo trocado, claro.

Tenho que vos confessar: é muito difícil para mim escrever uma review de "Bohemian Rhapsody" nestes termos. Durante toda a carreira dos Queen, eles sempre foram arrasados pela crítica, que nunca compreendeu o apelo marginal da banda. Hoje, parece que sou eu que estou a tomar esse lugar. Mas não é assim. Há poucas coisas que eu ame tanto na vida como os Queen (a minha família e pouco mais). Mas por isso mesmo tenho a certeza que os Queen mereciam mais que este filme tão pobrezinho. O último desejo de Freddie ao seu manager Jim "Miami" Beach foi "Faz o que quiseres com a minha música; só nunca me faças parecer aborrecido". "Bohemian Rhapsody" não faz propriamente Freddie parecer aborrecido, mas fá-lo parecer infinitamente menos interessante do que realmente foi. É pena.

A história dos Queen merece de facto ser contada. O problema é que é demasiado ultrajante para ser contada num filme para crianças. Que é exactamente o que "Bohemian Rhapsody" é: uma introdução aos Queen para crianças, um "Queen for dummies", visualmente acurado, mas sem nenhuma profundidade. Ou então sou eu que sou demasiado exigente com a banda que me fez apaixonar pela música.

P.S.: Se quiserem saber a verdadeira História dos Queen, como ela aconteceu, na correcta ordem cronológica e com o foco naquilo que realmente interessa — a música — então é ouvirem o especial "Queen: A Concert Through Time And Space" na NiTfm, com a primeira parte dedicada aos anos 70 e a segunda parte dedicada aos anos 80. Tudo livre de qualquer higienização e brutalmente honesto.

domingo, 7 de outubro de 2018

John Lennon — Um Herói, um Vilão, ou o que é que isso interessa?

Reflexão sobre heróis e vilões na semana da reedição do álbum "Imagine"  


"Ou morres como um herói, ou vives tempo suficiente para te veres transformado num vilão", já dizia Harvey Dent, o ficcional-mas-tão-real-personagem da série Batman, prevendo inadvertidamente a sua transformação de herói como chefe da polícia de Gotham City para o vilão Two-Face. John Lennon morreu cedo e ficou assim gravado na história como um herói. Ainda bem para a sua memória. Tivesse ele vivido até aos tempos da devassa da vida privada e julgamento público sumário pela brigada de novos puritanos dos dias hoje, e as coisas seriam bem diferentes.

Vem esta reflexão a propósito da reedição do álbum mais popular da carreira a solo de John nesta semana. "Imagine" foi lançado em 1971, sucedendo ao catártico "Plastic Ono Band" do ano anterior e congrega mais um lote de temas viscerais e confessionais. Um álbum à John, portanto.
"Imagine" contém o maior número de faixas reconhecíveis pelo grande público: "Jealous Guy", popularizado pelos Roxy Music em 1981; "Oh Yoko!", que aparece no filme "Rushmore", de Wes Anderson (1998); e obviamente, o tema-título "Imagine", que aparece em todo o santo lado desde o seu lançamento em 1971, tornando-se na canção mais conhecida (e overplayed) dos catálogos dos Beatles a solo.

Mas a beleza de "Imagine" (o álbum) vai muito para além dos três temas de maior nomeada. O tema mais bonito do álbum é o confessional "How", onde John despeja todas as suas inseguranças: "How can I have feeling when I don't know if it's a feeling?" / "How can I give love when love is something I ain't never had?". Lindo, lindo, lindo. E isto com o background da finíssima produção wall-of-sound de Phil Spector, que no ano anterior já tinha ornamentado o melhor álbum de sempre dos Beatles a solo — falo obviamente do majestoso "All Things Must Pass", de George.

https://www.youtube.com/watch?v=Li7xH_E9w58

Mas há mais.

Falta-me falar do melhor de tudo. Em 1971, John Lennon e Paul McCartney viviam em guerra, fruto da amargura post-break-up dos Beatles. Depois de ver o primeiro álbum de Paul — "McCartney", de 1970 — ser arrasado pela crítica, John aproveitou o momento menos feliz que Paul vivia para dizer que sentia pena dele e que este andava perdido sem os Beatles. A resposta de Paul veio no tema de abertura do seu álbum seguinte — "Ram", de 1971 —, "Too Many People", onde Paul refere que há demasiada gente preocupada com o que os outros andam a fazer e a dizer-nos o que temos que fazer das nossas vidas, numa referência quase óbvia ao activismo agressivo de John e Yoko. Foi um ataque da parte de Paul, é certo, mas também foi um ataque "à Paul", uma palmada quase inofensiva. Mas John não estava para palmadinhas. 

Como seria de esperar, John subiria de tom e logo a seguir gravaria "How Do You Sleep?", provavelmente o maior "vai-te foder" jamais gravado em fita. "How do You Sleep?" apareceria no álbum "Imagine", onde na contracapa John imita a capa de "Ram", com a diferença de que, em vez de agarrar nos cornos de uma ovelha como Paul (numa referência à vida bucólica e familiar que vivia na altura), John agarra nas orelhas de um porco.

"How do You Sleep?" é de uma selvajaria sem paralelo. John descarrega toda a sua ira em cima de Paul e cada linha é uma entrada a pés juntos, com referências específicas a assuntos mal resolvidos e ataques pessoais do mais alto nível de ressabiamento: "Those freaks was right when they said you was dead" (referência à teoria da conspiração que Paul tinha morrido em 1966) / "The only thing you done was Yesterday" (referência ao single dos Beatles) / "And since you've gone you're just Another Day" (referência ao single mais recente de Paul à data). Quem toca guitarra no tema é George, esse mesmo, que na altura também em conflito com o Paul. Ringo também estava no estúdio, mas não quis gravar "How Do You Sleep?", tendo até gritado "That's enough, John", antes de se ir embora frustrado com o ponto a que as relações entre os velhos amigos tinham chegado.


Adoro o Paul e a verdade é que a História provaria que era ele quem estava certo na maioria dos diferendos com John (caso do manager Alan Klein, que também contribuiu para a letra deste tema), mas a verdade é que "How do You Sleep?" confirma a teoria que John estava no seu melhor quando estava no seu pior. John podia não estar certo, mas as emoções que ele deixa gravadas em fita são verdadeiras. São puras, cruas, sem filtro. São a verdade para ele, naquele momento. E é precisamente isso que faz dele um dos maiores artistas da música popular da História. Não importa se ele está correcto. Não importa se ele é um herói, ou um vilão, ou ambos. Importa apenas que ele foi verdadeiro consigo e com a sua arte e por isso o que ele deixou gravado foi a (sua) verdade.

Anos mais tarde, John confessou que se arrependera da canção, não pela canção em si, mas porque era tão directamente sobre o Paul, o que acabou por desviar a atenção do tema em si, que é um excelente tema. Para mim,  é "só" o melhor da discografia a solo de John.

Os discos a solo de John são como que actas de sessões de terapia psicanalítica. Talvez por isso sejam tão inconsistentes e talvez por isso a sua carreira a solo seja tão ignorada. Ninguém quer olhar para John como ele é, preferimos manter a imagem estereotipada de um puto rebelde, de um excêntrico a lutar pela paz numa cama com uma chinesa, ou de um mártir que caiu aos pés de um louco. Mas John é muitíssimo mais complexo que isso. John está longe de ser perfeito, mas não é por isso que não o devemos amar por aquilo que ele é. Quem de nós é perfeito, anyway? Que direito temos de julgar quem se deu todo à sua arte e fez tudo o que podia para mudar o mundo que odiava onde vivia? É na complexidade de John que reside a sua beleza. E é por ela e pela sua honestidade que não consigo parar de amar John.