terça-feira, 8 de março de 2016

A morte da minha noite

O fecho anunciado do Jamaica, do Tokyo e do Europa marca o fim de uma era. Mas não tem que ser assim.

O fecho anunciado do Jamaica, do Tokyo e do Europa marca o fim de uma era na noite lisboeta. Mais do que isso, para mim, esta notícia significa a morte de parte da minha noite. Consta que ali nascerá um hotel. Mais um. É a política da terra queimada, da cegueira do lucro imediato. Acentua-se a gentrificação, a Lisboa para os lisboetas desaparece, nasce a Lisboa para os turistas, sem que ninguém se aperceba do paradoxo criado com o desaparecimento dos motivos que trazem os turistas à nossa cidade. Mas não tem que ser assim.

É óbvio que o edifício, como está, não pode continuar. O prédio está devoluto e os próprios bares já tiveram que financiar inúmeras obras de recuperação para continuarem a funcionar. A este cenário corresponde a aplicação de rendas ridículas, desadequadas ao valor actual da propriedade, que os bares facturam em poucas horas numa qualquer sexta-feira à noite. Mas é preciso lembrar que no espaço onde hoje jaz ouro, há não muitos anos morava um buraco infestado de ratos, baratas e prostituição barata. Se o espaço valorizou para o que hoje conhecemos, muito se deve ao funcionamento destes bares que atraíram multidões, tornaram-se ícones da noite de Lisboa e agora, em pleno auge, são obrigados a fechar. Não faz sentido.

Não se trata de advogar pela nacionalização o prédio. A conjuntura cultural de Lisboa ofereceu aos donos do edifício uma pedra preciosa e não há mal nenhum em aproveitar isso. Mas não a qualquer preço. O Planeamento Urbano existe e por alguma razão não se pode comprar os Jerónimos e fazer daquilo um hotel. Os bares do Cais do Sodré são (hoje, mais do que nunca) um ícone da cidade de Lisboa e devem ser protegidos como tal. Porra, o Jamaica está aberto há 45 anos! Os meus pais frequentaram o espaço e eu já sou cliente há mais de dez, muito antes do rosa cosmopolita. E acreditem, se há quem tem razões de queixa, esse sou eu, que sempre tive uma relação particularmente complicada com os porteiros do Jamaica. Fun story: sabem por que a retrete da casa de banho dos homens do Jamaica já não tem porta há 2 ou 3 anos? Porque um dos seguranças (o "Vin Diesel") a arrombou enquanto eu estava lá dentro. Nunca mais foi posta no sítio.

As obras são inevitáveis. Devem recolocar a porta e reconstruir o restante edifício, sim, mas englobando os estabelecimentos que ali funcionam há mais de 40 anos. Sem eles, o Cais do Sodré perde a sua identidade. Por falar em identidade, estou também curioso para ver o Projecto do novo hotel que vai nascer. Estou para ver se vão recuperar a fachada característica lisboeta ou se vai brotar dali um monstro de 20 andares espelhado e ultra-moderno a la Sana Evolution do Saldanha, que é tudo o que aquele espaço não precisa (dou de barato a questão de se permitir construir hotéis furiosamente e em tudo o que é esquina, expulsando as pessoas para fora da cidade; isso é outra discussão). Querem saber como se agrada a todos? Recuperem o edifício, deixem os bares onde estão, façam o lobby do hotel na Rua do Alecrim e o espaço funciona daí para cima. Deixam toda a gente satisfeita e respeita-se a cultura da cidade. Não têm de quê.

A Câmara pode (e deve) intervir para a manutenção dos bares, sem prejuízo para nenhuma das partes. Se matam a cidade, no fim vão-se embora os turistas, fecham os hotéis e os prédios voltam a ser vetados ao abandono. O que virá a seguir? O Roterdão? O Liverpool? O Incógnito? Ou, medo, o Plateau?! Não me matem a noite, por favor.