sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Eu vi o futuro do Rock 'n' Roll e ele chama-se Sam Fender (e a lista dos 10 melhores álbuns de 2021)

E eis que chegámos àquela altura do ano. 2022 está aí e é tempo de fazer a retrospectiva dos melhores discos do último ano. Sem mais demoras, vamos à lista.

10. Alister Fawnwoda / Suzanne Ciani / Greg Leisz — "Milan"

Um dos segredos mais bem guardados de 2021, "Milan" é o bebé electrónico da colaboração entre o rookie Alister Fawnwoda, da veterana e rainha dos sintetizadores Suzanne Ciani (uma das minhas artistas favoritas) e do guitarrista Greg Leisz. Na boa tradição cianista, "Milan" traz-nos os sons dos oceanos, com um disco de Ambient Music melódico, sombrio e expansivo. A banda sonora perfeita para um Domingo à noite, para lutar contra o Sunday Blues.

Faixa-chave: "Night Bunny"

9. Sault — "Nine"

Esta mensagem vai autodestruir-se em 99 dias. Qual Inspector Gadget, o novo disco dos Sault chegou com uma mensagem de autodestruição, avisando a sua disponibilidade limitada nos serviços de streaming. Uma cozinha de fusão de Soul, R&B, Downtempo e um cheirinho a hip hop de Little Simz. Naturalmente, no número 9 desta contagem.

Faixa-chave: "Bitter Streets"

8. The War On Drugs — "I Don't Live Here Anymore"

A banda de Adam Granduciel é o Mercedes da música Rock actual. Sólido, robusto e fiável, nunca faz um mau álbum. "I Don't Live Here Anymore" chegou com a pompa e a circunstância de cartazes gigantes no metro de Londres, normalmente reservados às Adeles e Ed Sheerans, sinalizando que já é uma aposta segura da editora. É um passou abaixo de "A Deeper Understanding" (2017) e "Lost In The Dream" (2014), mas nada temam — The War On Drugs nunca nos deixam mal.

Faixa-chave: "Living Proof"

7. Low — "HEY WHAT"

Quem disse que o número 13 dá azar? Os Low lançaram em 2021 o seu 13º álbum e o mais ambicioso da sua discografia. Pioneiros desde os anos 90, em "HEY WHAT", os Low trilham um novo caminho para o que pode ser um álbum Rock no futuro. Arrojado, parte electrónica, parte estática, parte Noise, não há caixa que sirva a este disco. Não é um disco para ouvir em qualquer dia, mas premeia repetidas e mais atentas audições.

Faixa-chave: "White Horses"


6. Neil Young & Crazy Horse — "Barn"

Na última década, Neil Young parece ter trocado a qualidade que o caracterizou nos anos 70, pela quantidade. Na miríade de discos que vai lançando todos os anos, era difícil singularizar um deles para provar que Neil ainda é uma força criativa. Até chegar "Barn". O melhor álbum de Neil Young da última década abre com a sua inconfundível harmónica e volta a mostrar os Crazy Horse a rasgarem nas guitarras, como nos bons velhos tempos. Infelizmente, a voz de Neil já foi e já não volta. Mas se fecharem os olhos, podem sentir o mesmo perfume de discos de 1991 ("Ragged Glory"), 1975 ("Zuma") e 1970 ("Everybody Knows This Is Nowhere").

Faixa-chave: "Welcome Back"


5. The Anchoress — "The Art Of Losing"

Depois de várias experiências nem sempre bem conseguidas com Paul Draper (ex Mansun), Catherine Anne Davies (aka The Anchoress) finalmente cumpre o seu potencial com o vibrante "The Art Of Losing". É a entrada mais mexida desta lista, um disco de pérolas Pop, pleno de hooks, do qual sobressai o viciante tema-título, que é na minha opinião tão somente a canção do ano. Tu-tu-ru-ru.

Faixa-chave: "The Art Of Losing"


4. Floating Points, Pharoah Sanders & The London Symphony Orchestra - Promises

O disco que resultou da colaboração entre o músico electrónico Sam Shepherd (aka Floating Points), o saxofonista Pharoah Sanders e a orquestra sinfónica de Londres é um outlier do output discográfico de 2021. Normalmente, estes discos saem numa editora audiófila, em prensagens curtas, e para públicos niche. Este disco de Ambient maravilhoso, filho de obras de Brian Eno e Harold Budd, conquistou a crítica e invadiu as listas de todas as publicações musicais. Também está na minha, embora aqui os discos de Ambient Music sejam bastante mais frequentes (é a segunda entrada nesta lista).

Faixa-chave: "Movement 3"


3. Dry Cleaning —"New Long Leg"

O "Lulu" que deu certo. Os Dry Cleaning apareceram em 2021 com a mesma fórmula que os Metallica e o Lou Reed apresentaram há 10 anos. Só que em vez dos Metallica, temos uma derivação londrina dos Joy Division e em vez do Lou Reed, temos uma operadora de uma linha erótica — a excelente Florence Shaw. "New Long Leg" é o disco de estreia dos Dry Cleaning e deixa-nos com água na boca para o que há de vir. 

Faixa-chave: "Leafy"


2. Actors — "Acts Of Worship"

Por falar em derivações de Post-Punk, os Actors chegam-nos do fim do mundo, Vancouver, com um disco de sintetizadores apocalípticos para nos falar de morte e do fim do mundo. É uma absoluta revelação que ainda está por descobrir pela maioria das publicações musicais em todo o mundo. O segredo musical mais bem guardado de 2021. Vão à confiança.

Faixa-chave: "Once More With Feeling"


1. Sam Fender — "Seventeen Going Under"

Numa época em que não há um estilo mainstream dominante e somos bombardeados por uma miríade de discos que tentam sair fora da caixa em todas as direcções (esta lista tem alguns exemplos disso mesmo), por vezes é fácil esquecermo-nos do mais importante — a canção. A arte do ofício. E na arte de escrever uma canção (ou dezasseis), ninguém tocou em Sam Fender em 2021.  Fender vem sem medo e arrisca pôr um solo de guitarra numa música em 2021. Melhor: faz o impensável e pinta o seu disco com solos de saxofone! Em 2021! "Seventeen Going Under" é uma revelação e uma esperança. Esperança no que pode vir a seguir. Revelação nas canções maduras, de inspiração inocente e realização dos desafios da idade adulta — é o "Born To Run" de Sam Fender. A influência de Bruce Springsteen é óbvia e se me lembra do Boss, isso só pode ser bom. E tal como o seu manager Jon Landau escreveu quando viu Bruce pela primeira vez em 1974, eu também reitero — eu vi o futuro do Rock 'n' Roll e ele chama-se Sam Fender.

Faixa-chave: "Get You Down"


Menções honrosas

20. The Coral — "Coral Island"

19. Godspeed You! Black Emperor — "G_d's Pee at State's End!"

18. IDLES — "CRAWLER"

17. black midi — "Cavalcade"  

16. Squid — "Bright Green Field"

15. Black Country, New Road — "For the first time"

14. Mogwai — "As The Love Continues"

13. Amorphous Androgynous — "We Persuade Ourselves We Are Immortal"

12. Wolf Alice — "Blue Weekend" 

11. Sharon Van Etten — "epic Ten"

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

"The Beatles: Get Back" é o documentário musical mais épico de sempre



Desde quinta-feira passada, data do lançamento do primeiro episódio do documentário Get Back no Disney+, que tenho vivido imerso no mês de Janeiro de 1969 da vida dos Beatles, absolutamente obcecado pela banda de Liverpool. Outra vez. Sim, porque a minha relação com os Beatles é antiga, tão antiga como o meu sentido auditivo, ou pelo menos tão longa quanto a minha memória consegue alcançar. E eis que aos 36 anos, o mais recente épico de Peter Jackson conseguiu a proeza de injectar ainda mais combustível nesta minha paixão perpétua pelos reis do ié-ié-ié. Se há um mérito irrevogável de Get Back, é precisamente este — rejuvenesce o interesse pelos Beatles a um mundo que por vezes parece que os esqueceu. Renova os votos de paixão dos fãs antigos, e dá-os a conhecer à geração mais nova. Na era do binge e dos serviços de streaming, Get Back vem formatado para consumo num fim-de-semana debaixo do cobertor no sofá.

Get Back é uma série de 3 episódios, 8 horas no total, que documenta as sessões de gravação dos Beatles para o álbum abortado "Get Back", e de todo o projecto que a jusante culminou no póstumo “Let It Be”, lançado após a separação dos Beatles. A restauração das fitas das filmagens foi de tal forma meticulosa, que parecem ter sido gravadas no mês passado. Este documentário coloca-nos em Janeiro de 1969, como uma mosca na companhia dos Beatles e, qual Big Brother, novela da vida real, acompanha de perto os dramas e as tensões que a banda vivia naquela altura. E tal como em qualquer novela, põe-nos a torcer por um final feliz para os nossos heróis, apesar de já sabermos o desfecho trágico da história.

Agora que estou em processo de reavaliação da minha opinião acerca deste período dos fab four, permitam-me fazer uma pequena analepse da minha própria história com os Beatles, desde o momento em que entraram na minha vida, e de como a impactaram em vários estádios da minha evolução. Como sempre, tudo começou com o meu Pai e uma cassete (lembram-se?) com a compilação "Rock 'n' Roll Music", não tinha eu mais do que 3 anos. As minhas primeiras memórias dos Beatles são o riff de "Dizzy Miss Lizzy" e a batida de Ringo na introdução de "Any Time At All". Mais tarde, na escola primária, a turma ouvia obsessivamente o Red Album e o Blue Album nos intervalos. Inspirados pelos Beatles, eu e mais dois amigos tivemos a ideia de formar uma banda, baptizando-a com a primeira sílaba das bandas favoritas de cada um — Queen (a minha), Beatles e Nirvana. Os Quibini nasceram envoltos em polémica na sala de aula, devido às nossas músicas de intervenção anti-sistema (ou vá, anti-escola) e conheceram o seu fim inevitável poucos meses mais tarde. Mas durante esse período (o segundo), não se falava de outra coisa na escola. Ainda gravámos uma cassete. Durante a adolescência, descobri os álbuns e já adulto redescobri tudo de novo com as misturas em Mono — a maneira como é suposto ouvir os Beatles. E assim os Beatles foram aparecendo, sempre presentes de alguma forma, a coser o tecido da minha vida.

Neste tempo todo, sempre considerei "Let It Be" o nadir da discografia dos Beatles. Até agora. Depois de submetido a 8 horas de visionamento das sessões de gravação, ganhei um novo respeito pelo álbum e cheguei à conclusão que o seu grande problema (para além do nome) é que os Beatles perderam o interesse e o não levaram o conceito até ao fim. E a culpa é só deles, que se auto infligiram com um projecto megalómano e irrealista. Recuemos ao fim de 1968 para contextualizar.

Depois de abandonarem os palcos em 1966, os Beatles têm a oportunidade de fazer uma série de álbuns mais laboriosos em estúdio. Desde "Rubber Soul", até ao White Album, os fab four rasgam as convenções das técnicas de gravação e desbravam um sem número de territórios sónicos que iriam ser trilhados nas décadas seguintes. A filmagem do clipe de "Hey Jude" em Setembro de 1968, é a primeira vez em 2 anos que a banda toca para uma audiência e a experiência é tão bem sucedida, que é decidido expandir o conceito e gravar o novo disco inteiramente ao vivo, num especial para a televisão. Mas o tempo é curto e as agendas preenchidas dos rapazes ditam que os Beatles têm menos de 3 semanas para preparar esse especial. 

O que foi então proposto aos Beatles foi uma tarefa de todo hercúlea — entrar em estúdio no dia 2 de Janeiro para compor e ensaiar 14 (!) temas completamente novos, com um ensaio geral marcado para o dia 18 e a gravação do especial e correspondente álbum ao vivo para os dias 19 e 20, num local a determinar. Todo este processo de composição e ensaios aconteceria num ambiente inóspito de um estúdio de televisão, sem qualquer privacidade (e não estou a falar na Yoko) e em frente a um exército de câmaras e microfones que acompanhavam os Beatles para todo o lado. O projecto era um desastre à espera de acontecer.

E acham que os Beatles vacilaram perante este cenário dantesco? Não senhor. Entre composições novas e ideias em gestação, os Beatles tocam neste documentário 123 músicas diferentes. Cento e vinte e três! A proactividade dos rapazes de Liverpool nesta altura era absolutamente insana. Pensem no que é que a vossa banda favorita lançou nos últimos 7 anos. E agora pensem que entre 1962 e 1969, os Beatles compuseram e gravaram TODO o seu reportório de 213 músicas, mais todas aquelas que ficaram a meio, e que mais tarde popularam discos a solo como “McCartney”, “Ram”, “Plastic Ono Band”, “Imagine” e, claro, o triplo tour de force “All Things Must Pass”. Chegados a Twickenham de mãos a abanar e com as câmaras em cima, os músicos viram-se pressionados a sacar coelhos da cartola num prazo desumano. Alguns temas escritos nos primórdios da banda foram reciclados, incluindo "One After 909", que chegou à versão final do álbum. Outros nasceram ali, mesmo em frente às câmaras. Foi o caso de "Get Back", que nós vemos a surgir do nada, num momento bíblico de Paul McCartney, que Ringo Starr e George Harrison testemunham tão boquiabertos como nós em casa; isto enquanto esperavam que John Lennon chegasse do pequeno-almoço. Quando John se junta à banda, minutos depois, já Ringo está na bateria a marcar o tempo e George a tentar apanhar os acordes na guitarra. E assim nasceu "Get Back", o tema que condensava o propósito e o conceito back-to-basics do projecto e que, como tal, daria nome ao álbum que nunca saiu e em última instância ao documentário de Peter Jackson. Magia em frente aos nossos olhos.

A edição de Peter Jackson é simplesmente brilhante. Para contar a história, o realizador mostra-nos um calendário com as datas relevantes e somos levados a cada dia como um acto diferente, o qual tem a sua própria resolução. A genialidade da montagem é bem ilustrada na cena em que o George chega a Twickenham pela manhã muito entusiasmado com um filme que vira na BBC na noite anterior. Enquanto está a descrever aos outros Beatles o que viu na televisão, são-nos mostrados recortes do jornal da altura com a programação da BBC e as cenas do próprio filme que o George está a descrever. É este o nível obsessivo de detalhe a que "Get Back" chega". Só nos falta ver os Beatles a ir à casa de banho.

As duas horas e meia do primeiro episódio fazem-nos sentir o purgatório que os rapazes passaram em Twickenham. O ambiente é pesado, forçado e cortante. Apesar de ser apenas um terço do documentário, Twickenham parece uma eternidade. Sentimos que estamos a ver o breakup dos Beatles e naquela altura estamos mesmo. Se há uma coisa que o primeiro episódio deixa evidente, é que nesta altura a maior (ou única) força de locomoção dos Beatles é Paul McCartney. Não raras vezes, vemos o Paul a remar sozinho contra a letargia geral e isso resulta em inevitáveis choques. A famosa discussão entre George e Paul, que já tinha sido mostrada no filme original de Michael Lindsay-Hogg, é aqui apresentada com o devido contexto (ficamos a saber qual a noite em que George foi para casa escrever "Wah Wah"). Percebe-se que o George já não queria estar ali. Foi de longe o mais afectado pela visita à Índia, experiência que cavou uma trincheira entre ele e os outros. Quando vemos o Paul e o Ringo a desdenhar a sua estadia no Oriente, o George mostra-se visivelmente incomodado. Farto de obedecer a ordens e trabalhar nas músicas dos outros e com uma pilha de grandes temas da sua autoria, sucessivamente rejeitados (como é que os Beatles não usam o "All Things Must Pass"?!), George cansa-se e acaba por sair da banda.

Como seria de esperar, a saída de Harrison abanou as fundações dos Beatles. Mas não imediatamente. John Lennon, que se andava a arrastar desde o início das sessões, continuamente pedrado e inusitadamente fora das discussões, descarta a importância do George quando recebe a notícia, e atira: "se ele não voltar, vamos buscar o Clapton". Felizmente tal não aconteceu. O primeiro episódio termina com os Beatles reduzidos a dois — Paul e Ringo — a comentar a surrealidade da reunião da banda no dia anterior, onde John permaneceu em silêncio e a Yoko falou por ele. Paul confessa que vai ter muita piada quando daí a 50 anos se comentar que os Beatles se separaram por causa da Yoko. E não é que acertou?

Falemos então do elefante na sala, perdão, da Yoko na sala. Houve uma preocupação óbvia de Peter Jackson em não mostrar a Yoko como a vilã da história. Embora saibamos que era uma figura forte e opinativa, ela raramente aparece a falar. Sempre colada ao John, está invariavelmente a ocupar o ecrã, mas a boa notícia é que ao fim de algum tempo acabamos por ignorá-la, como se fosse o papel de parede. Só notamos verdadeiramente a sua presença quando lhe dão o microfone e somos submetidos aos seus grunhidos (até a filha da Linda se assusta) durante alguns segundos, altura em que normalmente Ringo abandona a sala e podemos ver o Paul saltar para a bateria. Valha-nos isso.

Alguns dias depois da fatídica reunião que quase terminou com os Beatles, o John finalmente acorda, e é aqui que somos brindados com mais um momento mágico. Paul e John isolam-se na cantina para uma conversa privada sobre o que fazer com a banda, sem saberem que estava um microfone escondido num vaso, a gravar a conversa toda. E aí já temos "o" John Lennon a puxar dos galões. Paul admite que foi um pouco mandão (eu até acho que ele tinha razão — alguém tinha que puxar a carroça) e promete que vai rever a sua conduta para ter George de volta. Os Beatles voltam a reunir-se e o encontro desta vez é frutífero: a ideia do especial televisivo em directo é abandonada e substituída por um filme, produzido a posteriori; o prazo das sessões é estendido uma semana; e os Beatles vão sair de Twickenham e mudar-se para um estúdio ad-hoc no edifício da Apple em Savile Row, no centro de Londres. Esse mesmo edifício que estão a pensar.

O segundo episódio traz-nos uns Beatles renascidos. Lennon chega visivelmente mais fresco ao estúdio montado em Savile Row e rapidamente começa a brilhar. Uma presença fantasma até aqui, sombra de si mesmo, vemos agora o John a desabrochar nos ensaios. Mas é a chegada de Billy Preston a Saville Row que muda a maré. Billy conhecera os Beatles durante a sua estadia em Hamburgo, quando tocava na banda Little Richard e calhou estar em Londres naquela altura. Qual enviado do destino, aparece no estúdio numa altura em que os Beatles discutiam a necessidade de arranjar um teclista para cumprir o conceito de gravar os temas novos ao vivo. Fã dos Beatles (quem não?), Billy junta-se aos nossos heróis e injecta uma dose de energia fundamental no grupo. Também George parece ter recuperado a fé nos Beatles em Savile Row. Um dos momentos mais adoráveis do documentário acontece quando Ringo lhe mostra a sua ideia para a "Octopus's Song" (retrabalhada para "Abbey Road" como "Octopus's Garden") e George se levanta e vai ajudá-lo a elaborar a sua música. A magia acontece nos Beatles e não é só com John e Paul.

O terceiro episódio relata os ensaios finais e a preparação para o famoso concerto no terraço do edifício da Apple. A filmagem do rooftop é intercalada com imagens da rua (Londres nos 60s, que maravilha) e entrevistas aos transeuntes. As imagens são nada menos que deliciosas, um clímax perfeito para as 8 horas de documentário. Muitas ideias foram atiradas durante aquele mês para o local do concerto (o realizador Lindsay-Hogg estava obcecado em levar os Beatles para o deserto do norte de África), mas Paul percebeu que a resposta era o terraço. As câmaras capturam o momento exacto em que lhe transmitem a ideia e os seus olhos brilham num instante eureka. O concerto é-nos mostrado na íntegra e é impossível não passar o tempo todo a sorrir. Depois do purgatório de Twickenham e de uma semana de ensaios intensos, os nossos heróis conseguiram completar a missão impossível a que se propuseram. Foi o (possível) final feliz.

Dividindo o ecrã entre as imagens lá em cima e cá em baixo, Peter Jackson mostra os avanços da polícia londrina, britanicamente pacientes, apesar das dezenas de chamadas para a esquadra a reclamar do barulho. Enquanto o staff da Apple vai empatando os oficiais, os Beatles vão rasgando os temas novos lá em cima e a multidão cresce na rua. Os agentes acabam por perder a paciência e exigem ser levados ao último piso. Estava completo o cenário. Paul nota a sua chegada e não esconde o seu entusiasmo, gritando um WHOO! ao microfone. Os Beatles arrancam para "Don't Let Me Down" e Ringo sorri, enquanto toca a sua bateria a olhar para trás. A situação torna-se mais séria quando chega o Sargento David Kendrick com cara de poucos amigos e obriga o roadie Mal Evans a desligar os amplificadores. Alheio às autoridades, George, conhecido como o quiet Beatle (e o maior oposicionista a ir para o rooftop), não está pelos ajustes e volta a ligar o seu amp. Temos homem! Mais delicioso ainda é ver o nosso copito de leite preferido, Paul McCartney, indefectível no seu baixo, mesmo depois do John lhe fazer sinal para parar de tocar com a chegada do Sargento, como quem diz “a Bófia chegou!” e o nosso Paul segue como se nada fosse, a gritar GET BAAACK ainda com mais tesão. E ainda goza: “Get back Loretta, you’ve been playing on the roofs again! Your mama doesn’t like that, she’s gonna get you arrested!”. Fantástico. Como não amar o Paul? O epítome do conceito de cool é Paul McCartney em 1969, a cantar no terraço da Apple (temo que me apaixonei pelo Paul neste fim-de-semana). John remata o último concerto dos Beatles com a lendária tirada: "I’d like to say thank you on behalf of the group. I hope we’ve passed the audition." Claro que sim, John. Até a polícia gostou.
 
Os Beatles voltam ao estúdio no dia seguinte para gravar a maioria dos takes que iriam figurar na versão final de Phil Spector do álbum "Let It Be". Glyn Johns foi o produtor original das sessões de gravação e compilou duas versões do álbum em 1969, ainda com o seu nome original "Get Back", ambas rejeitadas pela banda. O projecto foi então completamente abandonado e os Beatles voltariam a gravar poucas semanas mais tarde, desta vez de regresso a Abbey Road, naquele que seria efectivamente o seu último álbum, baptizado com o nome da rua onde fotografaram a capa. Só em 1970, já com os Beatles definitivamente separados, é que John e George convidaram Spector para revisitar as fitas de Janeiro de 1969, resultando na versão que conhecemos de "Let It Be" — Spector deveria ter sido fiel ao conceito inicial do disco de regresso às raízes e levar o nome "Get Back" até ao fim. O disco está longe de ser perfeito, mas também não é o desastre que muitos acusam, eu incluído. Este novo documentário oferece um novo contexto e permite-nos apreciar melhor o álbum maldito dos Beatles. E perceber que devido ao conceito sem filtro e sem rede destas sessões, nunca haverá uma versão definitiva de "Get Back" / "Let It Be". O mais que podemos fazer é, com a mais recente edição super deluxe, construir a nossa versão favorita.

O que é que falta ao documentário Get Back? Mostrar mais takes finais e mais versões completas de músicas. "Let It Be" é um dos poucos álbuns em que temos acompanhamento visual para todas as gravações que ouvimos no disco e seria muitíssimo interessante ter esse emparelhamento. Espero que quando o documentário for lançado em BluRay, seja disponibilizada essa versão visual do álbum "Let It Be", juntamente com uma restauração do filme original. E já agora, uma versão “limpa” do concerto to rooftop, sem o diálogo com a polícia e as entrevistas de rua. Peter Jackson revelou que a sua versão inicial de Get Back tinha 18 horas e eu espero poder ver essa edição em breve. Pode ser que aí mostrem os Beatles na casa de banho Até lá, estamos limitados a estas 8 horas. É tão bom falar de barriga cheia.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Freddie Mercury - 30 anos depois, o Rei ainda vive

Uma carta de amor a Freddie, no dia do aniversário da sua morte.


Uma das minhas memórias mais fortes de infância foi a noite de 24 de novembro de 1991, quando a televisão dava a notícia da tragédia do desaparecimento de Freddie Mercury. Tinha acabado de fazer seis anos e na minha perceção confusa do mundo, onde o Pai Natal existia e as novelas eram cenas da vida real, o Freddie era meu tio. E nem sequer estou a brincar. Sabia lá eu que Wembley era em Londres. Para mim, que via o VHS com o concerto dos Queen diariamente, era ali ao cimo da rua.

Foi por isso em choque que recebi a notícia que aquele tio próximo que falava uma língua estranha e via todos os dias, embora somente em vídeo, estava morto. Aquela noite foi a minha primeira interação com a morte.

No próprio dia, a RTP passou o documentário da BBC “Freddie Mercury: A Tribute”, uma colagem de clipes e performances aos vivo dos Queen (Hammersmith ‘75, Rio ‘85, Live Aid ‘85, Wembley ‘86) que foi, efetivamente, a melhor forma de o relembrar e ilustrar a sua gloriosa vida. Durante anos repeti o mesmo sonho: estava no Live Aid em Wembley e vi o Freddie colapsar, a morrer à minha frente, no fim da performance do “We Are The Champions”.

Lembro-me de ir para a cama nessa noite e de me deitar enquanto o meu pai tentava explicar o que se estava a passar. Não faço a mínima ideia do que me disse, só me lembro de que fingi entender para o fazer feliz. Coitado. Ver-se obrigado a explicar a morte a um miúdo de 6 anos. 30 anos volvidos, eu não o saberia fazer. “O Freddie desapareceu”, dizia o José Rodrigues dos Santos. Sim, mas para onde?

Para onde? Para lado nenhum. Ou melhor, para todo o lado. 30 anos volvidos, a música dos Queen está mais forte e pujante do que nunca. São mais populares nas novas gerações do que qualquer outra banda antiga, incluindo os Beatles. Não sou eu, são os números do Spotify e do YouTube que o dizem. Têm uma loja na Carnaby Street em Londres. Loja essa que durante semanas teve filas de horas por causa de uns discos de vinil exclusivos com músicas que toda a gente já ouviu milhares de vezes. Loja essa que teve confrontos à porta (não, não estou a brincar) na última semana porque se percebeu que não havia discos para todos.

Para mim, está aqui. Aqui mesmo, no coração. 30 anos depois do seu alegado desaparecimento, não há dia nenhum que passe e que não ouça a sua voz. A sua música fez, faz e para sempre fará parte do tecido da minha vida. O rei Freddie Mercury desapareceu há 30 anos, mas nunca foi embora das nossas vidas. Anyway the wind blows… and Queen lives.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

'Easy On Me': Adele em piloto automático traz música com pele de seda



O mundo acordou recentemente para uma Adele diferente — mais magra (impossível não referir o óbvio) e alegadamente mais feliz. Mas momentos felizes não fazem um álbum da Adele e por isso este dá pelo nome de "30", idade em que ela o começou a escrever há 3 anos, quando passava pela tormenta de um divórcio. Divórcio? Assim sim, já temos um disco da Adele. Trataram mal a Adele e ela quer falar sobre isso.

O single de avanço "Easy On Me" aterrou no nosso Spotify à meia noite de Quinta para Sexta-Feira num evento interplanetário a fazer jus à importância que Adele tem na indústria de hoje. Como é hábito em música nova de artistas desta craveira, os superlativos não tardaram a chegar — "Adele voltou melhor que nunca!", lê-se por todo o lado. Calma. Basta uma visita às suas redes sociais para perceber que os longos intervalos entre discos deixaram os fãs tão desesperados por música nova, que à hora do refresh do Release Radar no Spotify é quase irrelevante que esta seja boa ou má. Estão apenas contentes por ter alguma coisa nova, depois de anos de seca. Não é uma característica dos fãs da Adele, isto acontece comigo também, embora com artistas diferentes. Como neste caso posso ter algum distanciamento, após uns dias de maturação, mantenho a primeira impressão que tive quando ouvi o tema pela primeira vez na madrugada de Sexta-Feira — a Adele pode estar diferente, mas a sua música soa exactamente igual.

É difícil apontar exactamente qual dos seus temas anteriores Adele foi beber para "Easy On Me", porque parece que tem um bocadinho de tudo. Desde a clássica lírica melodramática, ao tom melancólico, à produção minimalista do piano, até ao falseto no feeeeeeeel / eeeeeeeeasy on my baby, que já ouvimos mil vezes antes. Sem copiar um tema em específico, Adele fez o mesmo que aquele bot que criou um tema "novo" dos Nirvana, fundado numa base de dados com os outros temas todos. "Easy On Me" soa imediatamente familiar, como algo que já ouvimos mil vezes no supermercado. Que é precisamente o que vai acontecer na quadra que se avizinha. Quando chegar o Natal, voltamos a falar.

Outrora um tesouro britânico, com toda a espontaneidade e inadequabilidade associada, a Adele parece ter sido raptada definitivamente pelos americanos. Os ângulos começaram a ser polidos no álbum "25" e julgando por "Easy On Me", a sua música parece vir agora com pele de bebé.

Talvez seja eu que, confesso, não sou o maior fã das baladas da Adele. Gosto mais quando ela injecta um pouco de ritmo como em "Rolling In The Deep" (continua um temaço, 10 anos depois), ou um pouco de ambience como em "Skyfall". Espero que o novo disco tenha um pouco de variedade e se não for o caso, então que arrisque aproveitar esta fase mais feliz da sua vida para escrever algo de diferente. A Adele é melhor quando bate o pé e não está constantemente a tentar regurgitar o "Someone Like You", agora em versão seda. Espero melhor, muito melhor que isto no álbum que aí vem.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Nunca conheçam os vossos heróis. Excepto se o vosso herói for o Brian May

Já ouviram aquele ditado que diz para nunca conhecerem os vossos heróis? Felizmente nem sempre é assim. Há um mês participei num daqueles concursos que assinamos e nunca mais nos lembramos, porque sabemos que é praticamente impossível ganhar - “habilita-te a ir a uma sessão de Q&A (perguntas e respostas) com o Brian May”, anunciava o site dos Queen. Right. Como se fosse possível. Só que na semana passada o impossível aconteceu e eu fui contactado pela editora para estar com mais 20 pessoas. Nem queria acreditar.

Depois de uma noite mal dormida, acordei com o coração aos pulos. Chegara o dia. As instruções da editora eram precisas - era obrigatório apresentar o Covid pass do NHS com as duas vacinas e mesmo assim nenhum contacto com o Brian seria permitido devido à pandemia. Entende-se. O homem já não vai para novo e precisa de se proteger. À chegada ao Regent Street Cinema, uma nova restrição - para além do NHS pass, todos os convidados eram obrigados a fazer um teste rápido à porta. Mas se não era possível contacto, qual o problema? A resposta viria mais tarde.

A sessão tem início com o Brian a lembrar que viu ali os The Who por volta de 1966. The Who em 1966? Fixe. Mas fixe mesmo é o Brian May mesmo ali à minha frente. Começamos por ver os vídeos originais dos três singles do seu álbum de estreia a solo, lançado em 1992 e reeditado agora para chegar à nova geração de fãs que Brian tem abraçado no instagram desde o advento do filme sobre os Queen. Os vídeos de “Driven By You”, “Resurrection” e “Too Much Love Will Kill You” (a versão original de Brian, entenda-se) foram polidos, o áudio remasterizado e parecem e soam gloriosos em volume máximo na sala de cinema. Qualquer destes temas é nível Queen.

Brian regressa para introduzir o novíssimo vídeo para o tema-título de “Back To The Light”. É para isso que estamos aqui. Bem, pelo menos oficialmente (eu estou pelo Brian, mas já la vamos). O vídeo é uma mistura perfeita entre o velho e o novo Brian. Ele viaja no tempo para se encontrar com o seu eu de 46 anos e tocar guitarra na sua própria banda de 1993. Vemos o Brian pujante de cabelo escuro e forte, a liderar a sua banda no centro do palco, e ao lado o Brian de cabelo grisalho e fininho, contente por, como ele refere, “voltar a ser apenas o guitarrista”. O novo vídeo usa imagens do vídeo “Live At Brixton Academy” (que segundo Brian será lançado mais à frente nesta campanha de reedições), gravado em 1993, e mistura com imagens recentes filmadas no Hammersmith Odeon (hoje Apollo), sala mítica para os Queen.

https://www.youtube.com/watch?v=Zvmp8YhEgQk

O vídeo termina e Brian volta a subir a palco visivelmente orgulhoso com o trabalho de Simon Lupton na realização. É ele quem vai conduzir a sessão de perguntas que se seguirá. Brian refere que terá sido o primeiro a fazer um exercício deste género, uma vez que ninguém é tão velho para fazer isto. Cientista e Rock ‘n’ Roll Star, confessa-se apaixonado por filmes de time travel (somos dois) e que se tivesse oportunidade, avisaria o Doc de “Regresso ao Futuro” para voltar para trás - “We fucked up!”, diz Brian com os olhos esbugalhados, na sua melhor melhor imitação de Doc.

Tempo de responder a algumas questões da sala, diz Simon Lupton - “Quem é que tem perguntas?”. Antes de ele terminar a questão, já eu estou de braço no ar, pois claro, mortinho por interagir com o meu herói. Passam-me o microfone e neste momento, os nervos que carrego desde manhã suspendem-me num estado zen. Dirijo-me directamente ao Brian May: “antes de mais, obrigado por esta oportunidade e parabéns pelo novo vídeo”. Repito em traços gerais a impressão que descrevi atrás nesta crónica, em como o vídeo é bem sucedido em misturar o velho com o novo e a passar a mensagem pretendida. O Brian agradece e responde “what’s your name, sir?” Sim, o Brian May quer saber o nome. “Sou o Nuno Bento, sou português e coleciono todos os seus trabalhos, tanto oficiais, como não oficiais”. Arranco uma gargalhada ao Brian (isto está mesmo a acontecer?) e assim ganho crédito par falar mais um bocadinho com ele: “Brian, o meu álbum favorito é o “A Day At Races”, onde eu acho que os Queen atingiram o seu pináculo, especialmente no Lado A, que eu considero ser o crowning achievement da discografia dos Queen, o qual soma na medida perfeita todos os elementos que fizeram os Queen extraordinários. Contudo, raramente vejo o Brian falar neste disco. Como é que se sente acerca deste álbum hoje em dia?” 

O Brian parece surpreendido com esta referência: “eu vejo esse disco como o irmão gémeo do “A Night At The Opera”, foi de facto o disco onde levámos ao limite a nossa criatividade num estilo mais barroco e eloquente. Depois achámos que esgotámos essa vertente e regressámos a um estilo mais simples no “News Of The World”. Eu insisto: “concordo que o “Opera” e o “Races” são gémeos, mas a atenção vai sempre toda para o primeiro. Será que podemos esperar uma edição expandida para o “A Day At The Races”, como já tivemos para o “A Night At The Opera”?” Brian olha para mim pensativo e responde: “quem sabe?”. É o fim da minha intervenção e registo a minha pulsação em níveis taquicárdicos.

Nas perguntas seguintes, Brian esclarece que não está a pensar em voltar aos palcos em nome próprio - “eu nunca quis deixar de ser o guitarrista dos Queen. É só isso que eu quero ser”, confessa. Eu, que sempre fui contra a colaboração com o Adam Lambert e apologista que o Brian May e o Roger Taylor deviam ir para a estrada “sozinhos” (isto é, sem vocalistas adicionais, a partilhar as responsabilidades do microfone), engoli em seco. O Brian adianta que pode fazer uma aparição “algures” na digressão a solo do Roger que se avizinha. Eu vou vê-lo a Shepherd’s Bush no próximo mês, a walking distance de onde o Brian mora, por isso espero ver os Queen, sem o “+”, nessa noite. Agora que penso nisso, o John também mora a poucas estações de metro. Hum…

No fim da sessão, quando todos esperavam pela saída imediata do Brian (não podia haver contacto, lembram-se?), ele puxou a cadeira para a frente do palco e chamou a si os seus fãs. Ficaram assim explicados os testes obrigatórios à entrada. Depois de quase 2 anos fechado em casa, o Brian estava evidentemente com saudades dos seus fiéis. Cheguei-me à frente com o meu “A Day At The Races” (eu ia preparado para qualquer eventualidade) e o Brian recebeu-me com o maior sorriso e a maior simpatia “obrigado por vires Nuno, gostei mesmo da tua pergunta”. Obrigado eu, Brian! Obrigado eu. 

Assinou o meu disco e, não sei porquê, terá achado que a caneta lhe fugiu e que o autógrafo não saiu bem. Olhou desapontado para a assinatura e pediu-me desculpa - “estou destreinado”, suspirou. Ri-me com uma lágrima já a sair e assegurei-lhe que estava perfeito assim mesmo, não podia ter saído melhor. Pedi só uma foto para a posteridade. O Brian puxou-me pelo ombro na sua direcção e eu fiz um sorriso estúpido para a câmara como se tivesse 15 anos. E naquele momento tinha. 


O Brian foi simpático, afável, atencioso e muito mais do que eu alguma vez poderia esperar. Já diz o povo: nunca devem conhecer os vossos heróis, excepto se o vosso herói for o Brian May.


terça-feira, 7 de setembro de 2021

ABBA de volta como hologramas — É este o futuro que queremos?

E eis que chegámos oficialmente ao futuro. Quarenta anos depois da mais acrimoniosa das separações, que envolveu um drama mexicano de traições, divórcios e corações partidos, os ABBA estão de volta com um novo álbum e uma nova digressão. Mas quem for ver um concerto dos ABBA em 2022, não vai ver propriamente os ABBA e muito menos ao vivo. O que a audiência vai ver é um espectáculo de realidade virtual, com hologramas do que eram os ABBA em 1974. Como devem imaginar, isto levanta um sem número de questões e ironias, por isso vamos por partes. Comecemos pela nova música.

Se há um elemento que confere validade a todo este projecto distópico de fusão do novo com o "não-tão-novo" (estou a citar a expressão espirituosa do site) é que, tal como nos bons velhos tempos, esta digressão é apoiada em música nova. Vem aí um novo álbum dos ABBA, "Voyage", a ser lançado em Novembro, exactamente 40 anos depois de "The Visitors" em 1981. E com este anúncio vieram dois aperitivos do novo disco: "I Still Have Faith In You" e "Don’t Shut Me Down". Fiquei parcialmente impressionado. Já explico porquê.

A maioria dos álbuns de reunião de grupos de nomeada são uma desilusão, uma vez que falham em recapturar a magia que levou ao sucesso noutros tempos. Os artistas mudam, a música muda, as técnicas de gravação mudam, o mundo muda, e invariavelmente temos álbuns que são orientados para as bases de fãs antigas, vendem tudo o que têm para vender nas primeiras semanas (muitas vezes atingindo o topo das tabelas) e depois desaparecem do mapa para nunca mais serem ouvidos. É possível que seja isso que aconteça com "Voyage", contudo, mérito seja dado aos ABBA, os temas que ouvimos são competentes no seu propósito de somar o número máximo de elementos clássicos do quarteto sueco. Os compositores, Bjorn e Benny, provam que sabem e ainda dominam a fórmula dos ABBA. Com excepção das vozes das meninas que, naturalmente, envelheceram, a música consegue capturar o âmago dos anos 70. É esse o maior feito dos novos temas dos ABBA. 

"I Still Have Faith In You" foi escolhido como o tema de avanço devido ao conteúdo lírico, obviamente auto-referencial, mas é o elo mais fraco deste lote. Admito que nunca tive paciência para as baladas dos ABBA e talvez por isso não consiga tirar nada deste tema, mas o facto é que, 5 dias depois de desvendado, está no primeiro lugar das músicas em alta no Youtube com 14 milhões de visualizações. O cínico em mim diz que é um sucesso fundado em nostalgia, mas é mais que isso. É a fórmula resolvente dos ABBA em acção.

 "Don't Shut Me Down" é o tema mais upbeat deste par e francamente superior. Os elementos reconhecíveis dos ABBA também estão aqui, mas resultam melhor num contexto dançável. Especialmente quando a melodia despoleta uma reacção familiar no cérebro, programado para sentir conforto quando reconhece padrões antigos. "Somos suecos e fazemos música que não vos sai da cabeça", deveria ler-se no cartão de visita do grupo.

Como a última frase deve ter deixado escapar,  quem vos escreve não é propriamente um fã dos ABBA. Mas nem eu consigo escapar ao charme dos "a-has" de "Voulez-Vous", das notas impossíveis de "Dancing Queen", ou da linha de sintetizador de "Gimme! Gimme! Gimme!". Estas canções estão cravadas na cultura popular e no imaginário de quem quer que se cruzou com elas. É impossível escapar aos ABBA, porque eles são assim tão bons. Goste-se ou não. Para além do seu espólio, deixaram o dedo firme em todo o género que conhecemos como música Pop, desde Madonna, a Max Martin, ou Lady Gaga. Se andarmos as referências para trás, vamos invariavelmente dar aos ABBA. 

Por outro lado, esta bitola de excelência Pop torna a vida das novas canções inevitavelmente mais difícil. E se eu não posso rebater um "Thank You For The Music" (adaptado para português pelo Chuva de Estrelas e readaptado mais tarde por estudantes universitários), não consigo ouvir os hooks inatacáveis nas novas canções. São competentes, sim, mas carecem aquele magnetismo característico dos ABBA. Esperemos pelo resto do disco para um juízo final deste regresso. Para já, levam um nada desprestigiante B-.

A outra parte do anúncio deste comeback refere-se à já referida digressão holográfica da banda sueca. Ora, isto não é de somenos. Já se fala nos hologramas há muitos anos, normalmente com o propósito mórbido de levar ao palco artistas defuntos (Amy Winehouse, Whitney Houston, Tupac, etc), mas penso que será a primeira vez que músicos vivos preferem enviar em digressão hologramas, em vez de levarem a sua música ao seu próprio público. O grupo nem sequer gravou faixas vocais novas para a digressão — o que vamos ouvir são gravações dos anos 70, cantadas por hologramas dos ABBA dos anos 70. É um episódio digno de um livro de Philip K. Dick. E isto levanta, obviamente, uma série de questões. É isto que nós queremos para o futuro da música? Será que a oferta da música dos nossos dias é tão calamitosa que nos obriga a ir buscar jovens a 1974? Será o próximo passo a criação de andróides, réplicas dos ABBA, que vão andar em digressão? Não nos estamos a aproximar demasiado do Blade Runner e de outras distopias da ficção científica? São questões pertinentes e sem resposta imediata. A substituição de humanos por tecnologia é uma temática complexa, que merece a nossa reflexão. Temos que falar também dos deep fakes musicais, como o bot que "escreveu" uma música de Nirvana, mas isso fica para outra crónica.

Se estivéssemos a falar de outro tipo de banda, digamos, por exemplo, os Arcade Fire, poderíamos alegar que este projecto estaria mergulhado em ironia pós-moderna — em como a nossa sociedade está obcecada com a juventude —, e que este seria um "statement" para ridicularizar isto mesmo. Mas são os ABBA, historicamente kitschy e grau zero de ironia. São a maior instituição Pop global e what you see is what you get. E o que temos é um passo firme em direcção ao futuro que quisemos ter, ancorado na nostalgia dos ases do passado e higienizado com a certeza de uma banda que cumpre todas regras do bom comportamento e do distanciamento social, uma vez que nem sequer está lá. Cabe-nos a nós decidir se este é mesmo o futuro que queremos.

terça-feira, 22 de junho de 2021

O génio resiliente de Noel Gallagher


Noel Gallagher atingiu esta semana o décimo segundo nº 1 na tabela de álbuns do Reino Unido com o lançamento da compilação "Back The Way We Came", que reúne os melhores temas (segundo ele) da sua carreira a solo. Este é o quarto no.1 da sua discografia a solo (em quatro álbuns), depois de oito com os Oasis (em oito álbuns), aos quais se somam nove singles que também atingiram o topo das tabelas. Números impressionantes que, ainda assim, deixam Noel longe de reunir consensos. Não que ele os queira, ou sequer os procure — Noel adora antagonizar a sua própria audiência — mas é notável que depois de três décadas a disparar hits, melodias e letras que aumentaram a realidade das nossas vidas, Noel ainda seja olhado de soslaio pela franja mais hipster do público que, pura e simplesmente, não o percebe. Não é assim tão difícil.

As canções de Noel Gallagher personificam tudo aquilo que a música pop deve ser — durante quatro minutos e meio, transformam a nossa vida mundana numa aventura épica, onde o amor vence e os sonhos são realidade. "In my mind my dreams are real" ("Rock 'n' Roll Star") é a linha que define toda a magia da escrita de Noel. Um rapaz do council estate que recusou o seu destino, votado a uma vida esquecida na classe média-baixa mancuniana, e aprendeu a olhar para as estrelas enquanto ouvia a música dos Beatles, Stone Roses, Sex Pistols e The Smiths, trancado no quarto, para se esconder de um pai bêbado e violento. Quantos de nós não passámos horas infinitas trancados no quarto a ouvir música, cada um com as suas razões? Eu sei que passei. A diferença é que o Noel teve a coragem, e o talento, de pegar na guitarra e começar a escrever as suas próprias viagens ao céu. Conduzido por uma melancolia e uma ânsia de sair muito inglesas, o Noel veio anunciar que há mais para além do que nos querem dar. Que não estamos presos ao nosso destino. Que num mundo onde nos querem pôr constantemente no nosso lugar, baixinhos e inofensivos, podemos ser o que quisermos ser. Que num mundo onde todos nos dizem para olhar para o chão, devemos apontar ao céu. Que num mundo obcecado com a morte, podemos viver para sempre

Para quem vem de baixo, para quem tem a ânsia de chegar mais alto, ou simplesmente para os sonhadores — todos aqueles que vivem a vida a olhar para as estrelas —, estas canções ressoam, batem forte como um exorcismo, um bálsamo que nos leva deste "mundo grande e mau" (para citar outro génio da Britpop). Não é suposto serem uma afirmação intelectual, são apenas o reflexo das nossas ansiedades, a verdade que procurávamos e que nos liga uns aos outros. É por isso que, 25 anos depois, milhões de pessoas ainda cantam em plenos pulmões estas canções em bares, parques, arenas, estádios e comboios um pouco por todo o mundo, enquanto abraçam um qualquer desconhecido ao seu lado. Porque o apelo da sua música é transversal. É esse o génio resiliente de Noel Gallagher — um génio que cruza gerações, continentes e estratos sociais.

Sei perfeitamente que é daqui que vem grande parte da resistência aos Gallaghers. Por muito que se glorifiquem histórias da ascensão social do underdog, quando elas acontecem na realidade, quem está em cima não gosta dos trepadores que ali chegam e quem está em baixo não gosta dos que saem de lá. Basta olhar para o caso do Ronaldo, que mesmo depois de tantos anos de conquistas, de se afirmar como um génio que será lembrado durante décadas, para muitos nunca passará de um azeiteiro pé rapado dos confins Madeira. A ascensão dos Gallaghers significa o triunfo dos bárbaros, dos iletrados, da classe operária. A classe intelectual nunca os perdoará. Mas que importa isso para os sonhadores? Rigorosamente nada.

Se leram até aqui, já perceberam que a música do Noel teve uma grande influência na minha vida. Foi ele que ensinou um miúdo que cresceu trancado num quarto em Castelo Branco a olhar para o céu, apontar ao Sol e querer sempre mais. Lembro-me como se fosse ontem de estar naquele quarto — o meu Pai chamava-lhe "o bunker" —, a voar com a música dos Oasis, tal como o Noel fizera anos antes com os seus heróis. "In my mind my dreams are real", e foram mesmo. Noel não é Morrissey, mas a sua lírica é tão ou mais efectiva.

Atentemos no imaginário de “Slide Away”, provavelmente a obra-prima do espólio de Noel Gallagher. “Slide Away” é uma canção de amor, mas não é uma canção de amor qualquer. Em vez do prosaico “quero ficar contigo para sempre”, Noel pede para "ser aquele que brilha contigo" (“Let me be the one who shines with you”), porque juntos, nós voamos (“Together we fly”) e juntos, vamos apontar ao Sol (“we’ll find a way of chasing the sun”). Querem lírica mais gloriosamente romântica que isto? Curiosamente, a música de Noel é praticamente assexuada (Noel Gallagher não é, definitivamente, o George Michael), em vez disso remete-nos para uma dimensão amorosa platónica, estratosférica, onde um beijo nunca é “só” um beijo — é um desejo pintado num céu de veludo. E a Supernova de Champagne, bem, isso talvez seja de facto uma metáfora sexual.

O Noel de hoje já não tem nada a ver com o rapaz do "Definitely Maybe", que ansiava por uma vida melhor fora do council estate. Mas Noel continua a olhar para as estrelas. Os últimos 10 anos deram-nos preciosidades como “A Simple Game Of Genius”, “Alone On The Rope”, “Revolution Song”, “Let The Lord Shine A Light On Me”, ou “Rattling Rose”, curiosamente, ou muito provavelmente não, todas elas fora do alegado best of que Noel lançou na semana passada. Noel adora antagonizar e confundir a sua audiência, Há coisas que nunca mudam. Esqueçam por isso a nova colectânea e ouçam antes esta playlist de Lados B da sua carreira a solo, que é muito mais interessante.

terça-feira, 8 de junho de 2021

David Gilmour vs Roger Waters: A guerra sem fim



Quase tão antigo como o conflito israelo-palestiniano, e tão ou mais interessante, é o conflito Waters-Gilmouriano. Duas estrelas que durante duas décadas colidiram numa supernova criativa e que agora parecem nao sair do buraco negro. As duas últimas semanas trouxeram muitas novidades, mas desta vez nem todas más. Aqui o tio Nuno, parte interessada neste conflito há mais de 30 anos, dá-vos o update do essencial.

Comecemos pelo fim. Ontem saiu uma entrevista à Rolling Stone do casal inseparável John/Yok..., errr desculpem, David/Polly, onde o tio David atira a matar sobre o tio Roger. Na parte mais escaldante da entrevista, a inevitável pergunta dos Pink Floyd, David não mostrou a sua habitual contenção:

RS: Is there anything going on with Pink Floyd on the archival front? There’s been talk of an Animals reissue in recent years.

Gilmour: Well, a very lovely Animals remix has been done, but someone has tried to force some liner notes on it that I haven’t approved and, um, someone is digging his heels and not allowing it to be released.

Samson: But you don’t have liner notes, do you?

Gilmour: No, we’ve never had liner notes.

Samson: Why are you suddenly having liner notes?

Gilmour: Because someone wants them, and they got a journalist to write some, and I didn’t approve them. And he’s just getting a bit shirty. You know how he is, poor boy.

Ora, esta entrevista e esta resposta em particular, explicam o que aconteceu na semana passada na barricada do tio Roger que, como sabemos, não é propriamente conhecido pela sua contenção. Num vídeo carregado de veneno, o Roger anunciou o lançamento da nova remistura do álbum Animals, bloqueada desde 2018 pelo conflito Waters-Gilmouriano, tudo graças àbonomia do próprio Roger, que ia ceder pela sua parte e anuir ao lançamento sem as liner notes escritas por Mark Blake (autor de "Pigs Might Fly: The Inside Story of Pink Floyd"), que contariam a história por trás da criação do álbum e que David se recusava a incluir nesta reissue. Algumas notas sobre isto:

Em primeiro lugar, o David está (quase) correcto em como, mal ou bem, os lançamentos dos Pink Floyd nunca tem liner notes. Curiosamente, a excepção que me recordo é a caixa "Shine On", que o próprio David lançou como projecto pessoal em 1992, quica para "legitimar" os seus Floyd ao lado dos classic Floyd, numa altura em que o assunto ainda era, e muito, discutido (hoje acho que não há discussão - os Floyd dos 80s e 90s são tão Floyd como os dos 70s). Retirando essa (curiosa) excepção, de facto, os lançamentos dos Floyd costumam deixar a música falar por si e deixar o "behind the scenes" envolto em mistério.

Depois, como é óbvio, a inclusão destas liner notes é mais do interesse do Roger do que do David, uma vez que o Roger é que foi o principal responsável pela criação e pelo conceito do álbum "Animals". Se David tivesse levado a sua ideia avante, o álbum "Wish You Were Here" teria sido formado por 3 longas composições: "Shine On You Crazy Diamond" no Lado A e "Raving And Drooling" e "You Gotta Be Crazy" no Lado B. Teria sido um álbum largamente instrumental mas, segundo Roger (e bem), sem um fio condutor. Com a composição conjunta do tema "Wish You Were Here", o disco ganhou uma nova direcção e o resto é história. Para "Animals", uma nova perspectiva Orwelliana recuperou "Raving And Drooling" de Roger como "Sheep" e "You Gotta Be Crazy" de David como "Dogs". A face política de então inspirou Roger para "Pigs (Three Different Ones)" (com a ajuda de um loop de Rick Wright e que nunca foi creditado) e estava assim feito o álbum mais sombrio dos Pink Floyd. Para Roger, ele compôs 4/5 do álbum. Para David, ele compôs metade, uma vez que "Dogs" compõem a quase totalidade do Lado A. Ambos têm razão à sua maneira, mas é impossível fazê-los concordar em quem fez mais ou em quem fez o que (o que, convenhamos, é um bocado triste quando pensamos que estes senhores já tem 80 anos). As liner notes de Mark Blake, mais elogiosas para o Roger, foram assim naturalmente vetadas pelo David. E assim chegámos a 3 anos de um conflito sem fim à vista. Até há semana passada.

O vídeo de Roger a anunciar a reedição de "Animals" apanhou toda a gente de surpresa, primeiro porque ninguém sabia por que este projecto estava bloqueado e segundo, porque não lhe cabe a ele fazer esse anúncio. Para todos os efeitos, o Roger saiu da banda em 1985, anunciando que os Pink Floyd eram uma "força esgotada". David tinha outras ideias e levou a bandeira dos Pink Floyd pelos anos 80 e 90, introduzindo a banda a novas gerações (eu incluído), provando que Roger estava errado. Entretanto, os Pink Floyd tornaram-se num million dollar business e Roger, responsável pela maioria da sua música, ficou de fora da esfera de decisões, por (má) decisão própria. Para o bem e para o mal, é assim que funciona. Chegados aos dias de hoje, temos o ridículo dos livros de Polly Samson a serem anunciados no site oficial dos Pink Floyd e os projectos de Roger Waters, (auto-denominado) génio criativo dos Pink Floyd, fora do site, fora do Facebook, fora de tudo. É ridículo, sim, mas o Roger só se pode culpar a ele próprio. Por mais que esbraceje e ataque o David, nada vai mudar nesse sentido.

Nesta guerra sem fim, o Roger foi suficientemente esperto ao antecipar os comentários da entrevista da Rolling Stone (certamente alguém o avisou do que aí vinha) e, com este vídeo, sair como o herói da situação para os fãs, e colocar o David entre a espada e a parede (e ao mesmo tempo lançar as famigeradas liner notes no seu site - o tio Roger não dá ponto sem nó - enquanto chamou David de "a jolly good guitarist and singer"). Depois da cedência de Roger, David está agora obrigado a lançar a remistura de "Animals", sob pena de sair como o vilão da história que age puramente por despeito e perder a imagem de "nice guy" que tem na audiência. E esta é a única boa notícia para nós, fãs dos Pink Floyd, que estamos para este conflito como os filhos de um casal divorciado que não se consegue entender. Do mal o menos, vamos mesmo ter a caixa de "Animals", com novas remisturas em Stereo e Surround e uma nova e mais recente imagem da magnífica Battersea Power Station, onde este que vos escreve trabalhou durante 2 anos como Lead Engineer de Temporary Works (a jóia da coroa da minha carreira profissional). Nesta altura, já não espero que os meus dois ídolos se entendam, mas como diz o David no fim da sua entrevista na Rolling Stone - "we live and we hope".

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Desfolhada Portuguesa: as dez melhores canções portuguesas da Eurovisão

O cronista da NiT lista as melhores canções que Portugal levou à Eurovisão


Estamos em semana de Festival da Eurovisão e hoje Portugal joga o acesso à final de Sábado. Antes de torcer pelos Black Mamba na semi-final de hoje, recordemos algumas das melhores entradas portuguesas do passado, na contagem das minhas 10 canções favoritas que representaram Portugal na Eurovisão. Escusado será dizer que é uma lista pessoal e inevitavelmente influenciada pela minha infância, quando seguia o festival mais de perto. Acho que nunca recuperei da desilusão de ver Rui Bandeira (grande cabelo, ó Rui) afundar na Eurovisão de 1999, a que se seguiram anos negros de fracas prestações e canções esquecíveis, até àquela noite mágica de 2017 em Kiev. Sem mais demoras, vamos ao top 10.

10. Da Vinci — "Conquistador" (1989)


Tendo nascido em Novembro de 1985, no festival de 1989 tinha apenas 3 anos, mas por algum motivo (haverá com certeza uma explicação para isto), todas as minhas memórias mais remotas estão ligadas a música e o primeiro tema que eu tive noção de sair do Festival da Canção foi o "Conquistador" dos Da Vinci. No infantário, foi um hit que martelou a sala ad nauseam, mesmo que na altura ninguém ali soubesse bem do que se tratava. Estávamos no infantário, pois claro. Hoje em dia, um tema inofensivo como o "Conquistador" seria impossível de chegar à televisão. Já estou a imaginar os gritos de "colonialistas", "imperialistas", "racistas" e outras parvoíces que seriam atirados aos Da Vinci. Ah os 80s. Quando nos podíamos divertir com coisas mundanas.

9. Paulo de Carvalho — "E Depois Do Adeus" (1974)


A canção que ficará para sempre ligada à revolução de 25 de Abril de 1974, por ter sido a primeira senha que na noite de 24 deu sinal 'as tropas para estarem a postos para o que aí vinha. "E Depois Do Adeus" não tinha nada a ver com política e por isso mesmo foi o tema escolhido, para não evitar suspeitas. Paulo de Carvalho ficou eternizado naquela noite, depois de uma prestação modesta no Festival da Eurovisão de Brighton, poucas semanas antes da revolução.

8. Dina — "Amor D'Água Fresca" (1992)


Continuamos com as minhas memórias do Jardim Escola (aqui "já" tinha 6 anos), desta vez para um tema de apelo transversal. Amor e frutas, o que há para não gostar? Olhando hoje para trás, "Amor D'Água Fresca" era um peso demasiado leve para a Eurovisão e a Dina, tendo um dom raro para a melodia (raio da música do CDS que nunca sai da cabeça), nao tinha propriamente aquele look de Pop Star necessário para triunfar contra as estampas da Hungria e da Lituânia. É pena, a música era muito boa.

7. Dulce Pontes — "Lusitana Paixão" (1991)


Depois dos Da Vinci em 1989, voltámos a puxar pelo sentimento tuga com a Dulce Pontes em 1991. No prelúdio de uma carreira fenomenal, a Dulce levou a Roma a "Lusitana Paixão", uma ode ao fado, MAS (wink, wink) tinha mais de Stevie Wonder do que de Amália. Não que isso seja mau e a prova é que a Europa gostou e a Dulce teve uma excelente prestação. Bem, pelo menos para o contexto português, que na Eurovisão é de fuga 'a despromoção.

6. Salvador Sobral — "Amar Pelos Dois" (2017)



Mas na Eurovisão, como na bola, de vez em quando aparece um tomba gigantes e até o Sporting ganha o campeonato e Portugal ganha o Festival da Eurovisão. Em 2017, Portugal apareceu em Kiev com um tema que era a antítese de toda a foleirada que a Eurovisão representava e o impensável aconteceu - ganhámos. E não só ganhámos, como ganhámos com a canção menos eurovisionável possível. Na altura muito se escreveu em como a vitória de Salvador Sobral com o belíssimo "Amar Pelos Dois" representava uma mudança de paradigma na música e na Eurovisão. Certo. No ano seguinte, com o festival em Lisboa, ganhou a pior canção que me lembro de ouvir na Eurovisão. O que é que mudou desde então? Nada. Salvador foi um alien na Eurovisão e isso não é necessariamente mau. O alien é nosso.

5. Carlos Paião — "Play-Back" (1981)


Em pleno auge dos sintetizadores, Carlos Paião levou a Synth-Pop portuguesa à Eurovisão, com uma crítica à música plástica e aos cantores sem voz que começavam a proliferar na altura. O tema era brilhante e certeiro, mas a Europa não percebeu e "Play-Back" nao foi além do 18º lugar. Os anos seguintes iriam provar que a carapuça serviu 'a Eurovisão e o Carlos estava certo. Grande Carlos, grande talento.

4. Sara Tavares — "Chamar A Música" (1994)


A Sara foi a Dublin com 16 aninhos para mostrar um vozeirão à Europa e que pena que nao foi além do 8º lugar. Foi uma boa classificação para Portugal, eu sei, mas "Chamar a músicá" apanhou-me na fase de maior euforia com a Eurovisão e a canção era tão boa que estava convencido que íamos ganhar. Uma pena.

3. José Cid — "Um Grande, Grande Amor" (1980)


"Addio, adieu, aufwiedersehen, goodbye / Amore, amour, meine Liebe, love of my life". Se há canção da Eurovisão que entrou para o cânone da cultura popular portuguesa, foi esta ode ao amor emigrante do José Cid. O Zé levou à Holanda um penteado que iria definir os agrobetos ribatejanos durante décadas (conheci uns quantos tirados a papel químico) e uma música para ganhar. Diria até que em toda a história do Festival da Canção, não consigo pensar em tema mais eurovisionável que "Um Grande, Grande Amor". Ok, o título é capaz de ser fatela (já não usava esta palavra há uns 15 anos), mas a canção preenche todos requisitos. Começando pela letra, europeia e acessível. Justificando as comparações, José Cid nunca soou tanto com Elton John como neste tema (aliás, em 1980, Cid soava mais a Elton que o próprio Captain Fantastic e é bastante discutível quem era melhor). José Cid igualou na altura Carlos Mendes na melhor classificação de sempre para Portugal (ficámos em 7º), mas soube a pouco. O Zé merecia mais. 

2. Simone de Oliveira — "Desfolhada Portuguesa" (1969)


Simone, o furacão português, foi a Madrid em Março de 1969 para trazer o caneco da Eurovisão. A aposta era forte, mas fundada. A "Desfolhada Portuguesa" era um tema poderoso e viciante, que se afigurava como um dos principais favoritos à vitória daquele ano. Portugal parou para ver Simone de Oliveira fazer uma interpretação sísmica e atingir... Um inenarrável 15º e penúltimo lugar. "Portugal venceu com o penúltimo lugar", denunciou na altura a revista Flama. A Europa deve ter corado de vergonha quando deu 4 pontos a Simone de Oliveira. Bem, a Europa não sei, mas os espanhóis coraram de certeza, porque correram para o camarim dela para imediatamente lhe pedir desculpas pelo vexame. Vexame deles, claro, que a Simone esteve fantástica. "Sigo cantando", atirou ela, do alto de quem sabe que fez a sua parte. É a rainha do festival da Eurovisão e qualquer lista com as melhores músicas tem que ter a Simone no topo. Bem, a minha não tem, mas já vão perceber porquê.

1. Anabela — "A Cidade (Até Ser Dia)" (1993)


A Anabela foi o meu primeiro grande crush de criança, tinha eu 7 aninhos (ela tinha 16, por isso hey, não é assim TÃO esquisito). Talvez pela minha paixoneta de infância, eu seja tao parcial relativamente à perfeição de "A Cidade (Até Ser Dia)". Para mim, a canção que a Anabela levou à Irlanda continua a ser a melhor que Portugal teve na Eurovisão. É tudo perfeito. Desde o charme urbano das trompetes a anunciar o refrão, passando pelo crescendo vocal até uma nota impossível no refrão ("cidadeeeeee" — na atabalhoada versão das semi-finais do Festival da Canção ela ainda não a arriscava), até à entrada triunfal das backing vocals que complementam na perfeição a voz angelical da Anabela. Já passaram quase 30 anos e ainda me apaixono por ela sempre que recordo o vídeo no Youtube. Se isto não é o poder de uma canção, não sei o que é.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Criptomoeda? Não, discos de vinil

Já terão ouvido os vossos pais e os vossos avós dizer que comprar ouro é o melhor investimento. Não é arriscado como criptomoeda, acções em bolsa, ou fundos de investimento e dá um retorno seguro. Muito bem, mas qual é a piada? A não ser que sejam fãs de numismática, nenhuma. E mesmo se forem, o nível de divertimento é seriamente discutível. Já os discos de vinil? Horas de diversão a comprar e a ouvir e um retorno absurdamente elevado. É plástico envolto numa capa de cartão, certo, mas se souberem "investir", isto é, se souberem o que comprar, o vinil deixa a criptomoeda de rastos. Como? Aqui o tio Nuno explica.

A lógica de mercado dos discos de vinil tem as suas nuances, mas na base, é relativamente fácil de entender — o preço é função directa da raridade do disco e da sua procura. Os discos lançados nos anos 90 e anos 00 (décadas "mortas" do vinil) tiveram prensagens limitadas, pelo que os preços destes discos é invariavelmente alto, mesmo que a procura não seja muito grande. Se a procura for grande, então o preço explode. Um exemplo simples é a discografia dos Radiohead nos 90s. Partindo do princípio que os Radiohead são uma banda muito popular, incluindo nos dias de hoje (12.6 milhões de ouvintes mensais no Spotify), as prensagens originais dos seus álbuns serão sempre caras; tendo sido lançados nos 90s, esse preço dispara; e nos álbuns mais consagrados, o preço é ainda mais obsceno. Senão vejamos: o preço médio da primeira prensagem britânica do "Pablo Honey" — álbum raro, mas pouco popular — são na ordem dos 100€ (dados do Discogs); já as primeira prensagens do "The Bends" e "Ok Computer" (o mais popular, mas também o mais comum) andam à volta dos 200€ — o dobro do "Pablo Honey". Qualquer um destes discos, se o encontrarem "in the wild" (que é como quem diz, perdido numa loja de discos) por um preço razoável abaixo dos 100€, é sempre de compra imediata. O investimento é de retorno garantido.

Aconteceu-me exactamente isto neste fim-de-semana, quando andava no meu record shop tour em Londres. No mesmo dia, em lojas diferentes, vi o "Smile Sessions" dos Beach Boys e o "Singles Collection" do David Bowie, ambos por 50£. Comprei os dois sem pestanejar. Quando cheguei a casa, pus o "Smile Sessions" no eBay pelo triplo do preço e dois dias depois estava vendido. Não o pus à venda, mas se fosse para o eBay, fazia o dobro facilmente. Limpinho, limpinho.

As nuances deste mercado são a chave para saber onde investir. Qualquer edição limitada é à partida um bom investimento, uma vez que quando ficar fora de circulação, o preço automaticamente duplica. E nisto dos discos, nunca há desvalorização. Se o preço por alguma razão duplicar, é aí que fica estabelecido para sempre. A não ser que haja uma reedição e aí quebra um pouco, pelo menos até essa reedição sair de circulação. Depois volta ao mesmo preço, ou a um preço superior.

É preciso também ter em atenção os fenómenos que causam os picos de subida. Já vimos que a saída de circulação (o disco ficar out-of-print) é um deles. A morte do artista é o mais óbvio de todos, sendo o caso mais flagrante a morte de David Bowie, que fez disparar os preços de toda a sua discografia. A prensagem original (e única até hoje) do "Older" do George Michael já andava a precos proibitivos, na ordem dos 100€ a 200€ antes da sua morte. Hoje, o preco médio no Discogs é de 650€. Sim, leram bem. 650€ por um disco de vinil. Falem-me lá agora da valorização da Bitcoin.

Recentemente, temos também o caso da separação dos Daft Punk, que criou um pico de procura absurdo no Discogs, o maior da história da banda. Temos também o caso dos Queen, em que o filme "Bohemian Rhapsody" fez disparar o custo de todos os discos para o dobro. E mesmo se não considerarmos estes picos, a valorização é sempre uma constante, especialmente para os discos mais antigos, cada vez mais difíceis de encontrar em boas condições.

Sou um coleccionador e não um negociante de discos, mas quando vejo uma oportunidade de negócio, não resisto a meter a mão. No ano passado vi uma caixa "The Rolling In Stones in Mono" selada por 300£; pus no eBay a 900£ e em três meses estava vendida pelo preço que estabeleci. Ouro? Não, plástico. Muito mais fixe, tem o bónus de dar música e não estão dependentes da volatilidade dos mercados, das políticas do governo, ou de declarações incendiárias do Elon Musk que vos fazem perder tudo. A vossa colecção de música, para além de cool as fuck, está sempre a valorizar. A música nunca perde valor.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Ryan Adams, o culpado de todos os pecados de décadas de "má conduta sexual"

Ryan Adams caiu em desgraça em 2019 quando, em pleno auge do movimento #metoo, o New York Times fez uma reportagem com testemunhos de ex-namoradas que não tinham grandes coisas a dizer sobre ele. A reportagem dava também conta de trocas de mensagens com raparigas menores, que o FBI prontamente se encarregou de investigar. Esta última acusação, gravíssima, acabaria por não dar em nada, uma vez que ficou provado que a rapariga mentiu sucessivamente sobre a sua idade. Já os relatos das ex-namoradas, aparentemente mais prosaicos, ditaram o fim da carreira de Ryan Adams; não porque ele tenha cometido algum crime, mas sim porque terá sido prevaricador de, cito, "má conduta sexual". O tribunal? A imprensa musical.

Ryan tentou retratar-se, mas o artigo do NYT causou um terramoto nas redes sociais tao grande, que obrigou o artista americano a cancelar a tourné que tinha planeada para a Europa (eu tinha bilhete para o Royal Albert Hall), bem como o lançamento da trilogia de álbuns que estava prevista para esse ano e que à data começava com "Big Colors", seguido de "Wednesdays" e por fim, "Chris". Nenhum deles viu a luz do dia em 2019.

Desde então, Ryan Adams tentou reatar a sua carreira, sem sucesso. No ano passado, o leak do álbum "Wednesdays" precipitou o lançamento online do segundo disco da trilogia que tinha programado. Porém, nenhum órgão da imprensa mainstream arriscou sequer fazer uma review do álbum. O disco foi completamente ignorado pela mesma imprensa que o queimou e o tornou o réu de todos os crimes alguma vez cometidos no mundo da música. Mesmo que aparentemente ele não tenha cometido nenhum.

Ryan Adams foi o mártir perfeito. Um músico suficientemente conhecido e criticamente laureado para que a imprensa musical o pudesse dizimar e com isso hastear a bandeira do #metoo contra os homens brancos e poderosos; mas não tão conhecido e influente que colocasse em risco a própria imprensa, que não quer ter uma horde de milhões de fãs dos Beatles, dos Stones, ou dos Red Hot furiosos à sua porta. Ajudou também que a maioria dos fãs do Ryan Adams fossem hipsters com demasiada self-awareness social, com medo de sequer questionar os quês e porquês do linchamento que se estava a fazer ao músico. Ai de alguém que arriscasse sair em defesa da música de Ryan Adams. Sim, porque no fim do dia, é de música que estamos a falar.

Atentem, depois de ler a história do New York Times e fazendo fé que é verdade (o que não sabemos ao certo), eu também não iria aconselhar uma amiga minha a sair com o Ryan Adams. Nem teria grande interesse em incluir alguém tao insuportavelmente queixinhas e miserável no meu grupo de amigos (e o mesmo diria da Phoebe Bridgers, mas nem vou entrar por aí). Mas não é de avaliações pessoais que se trata, pois não? Estamos a falar de música. Se é boa (e "Wednesdays" é pelo menos metade excelente) ou má. Podemos julgar para um lado ou para o outro, não podemos é fingir que não existe.

Notem que também não estou a dizer que os órgãos de comunicação social devem ter a obrigação de escrever sobre a música de Ryan Adams. Se querem ignorar por princípios morais, ok, eu aceito. Mas essa é uma espada muito pesada que mais cedo do que tarde se vai virar contra os próprios. É que se Ryan Adams está fora para estes guerreiros sociais, então não é aceitável escrever sobre nomes como: John Lennon (por bater na mulher), Lou Reed (idem), George Harrison (por ser mulherengo), Eric Clapton (idem), David Bowie (mais um réu de má conduta sexual), Iggy Pop (idem), Keith Richards (idem), Mick Jagger, Marvin Gaye, Elvis PresleyAnthony KiedisSteven TylerJimmy Page (todos por se envolverem com raparigas menores). Se não escreverem sobre nenhum destes, nem sobre todos os músicos que alguma vez foram acusados por alguma mulher de "má conduta sexual" (#believeher, nunca esquecer), vão ter a vida muitíssimo dificultada, mas respeito. De outra forma, estão a incorrer numa terrível hipocrisia.

Ou então façam uso da vossa liberdade para falar na música do Ryan Adams, dizendo tudo o que vos vai na alma, chamando-o de porco se quiserem, mas reconhecendo a sua existência, como fazem com os outros. Passado o turbilhão do #metoo, Ryan Adams foi praticamente o único que no mundo da música pagou por todos os pecados de décadas de, citando, "más condutas sexuais". Todos sabemos o que aconteceu com nomes bem mais sonantes do que ele. 

Voltando ao que interessa, à música, Ryan Adams prepara-se para lançar aquele que supostamente seria o primeiro volume da sua trilogia programa para 2019 - "Big Colors". Esta semana já pudemos ouvir uma amostra - "Do Not Disturb" -, um slow burner que é muito mais entusiasmante que o primeiro tema deste disco que conhecemos em 2019 - "Fuck The Rain" (que entretanto desapareceu de todas as plataformas online). Fico ansiosamente à espera de mais novidades de "Big Colors", especialmente depois de ter ficado rendido a "Wednesdays" no ano passado. Se estão hesitantes em ouvir a música de Ryan Adams por causa do que ele terá ou não terá feito há 10 anos, o meu conselho é seguirem as palavras sábias de Steve Van Zandt - "Confiem na arte, nunca no artista". Gostam do álbum? Não tenham problemas em admitir. #metoo

segunda-feira, 12 de abril de 2021

God Save The Queen: Segui a Rainha e levei a vacina da Astrazeneca em Londres

A história de paixão do cronista da NiT pelo Reino Unido, agora consumada com a vacina da Covid-19

Toda a vida cresci fascinado com o Reino Unido. Muito à custa da música, a minha história de amor com o UK começou cedo, de tal forma que quando tive a primeira aula de inglês aos 6 anos, a minha motivação era levar o livrete do Greatest Hits dos Queen à professora, para me traduzir títulos como "Bohemian Rhapsody" e "Headlong" (estávamos nos early 90s e não havia internet) que, hoje sei, nem ela sabia como explicar. A paixão nunca esmoreceu com os anos e quando comecei a ganhar dinheiro para viajar, ir a Londres estava no topo da minha lista de destinos. Repeti a viagem vezes sem conta, em média três vezes por ano, sempre com o pretexto de ver concertos. Em 2018, consumei o meu amor por este país e mudei-me para Londres. A cidade deu-me tantas coisas boas, que a minha estadia aqui só fez com que o amor antigo crescesse ainda mais. Esta semana, fiquei ainda mais enamorado, quando levei a primeira dose da vacina contra a Covid-19, algo impensável se ainda estivesse em Portugal.

Longe de mim alguma vez advogar em favor do Brexit, mas num mundo onde só se foca o negativo, permitam-me realçar o lado positivo — se há uma coisa em que os Brits saíram à frente de toda a Europa, foi no programa de vacinação contra a Covid-19, que tem sido um estrondoso sucesso no Reino Unido e que, na prática, só foi possível devido ao Brexit. E isto são factos: o Reino Unido é de longe o país com maior taxa de vacinação da Europa e o 5º país no mundo inteiro, apenas atrás das Seychelles, Israel, Butão e Maldivas (Portugal é o 27º). Nesta altura, 47% da população já recebeu pelo menos uma dose da vacina. Esta semana, foi a minha vez. 

É verdade que, em condições normais, alguém da minha idade (35 anos) não seria ainda vacinado, mas a minha asma alguma vez haveria de ser útil para alguma coisa e agora foi a hora. Imagino que a vossa próxima questão seja relativamente à origem da vacina. Sim, foi a da AstraZeneca. Como toda a gente que lê notícias, também eu fiquei com as minhas reservas quando soube que era esta a vacina que ia levar, tal a avalanche de informação a dar conta dos seus riscos e o pânico que a mesma gera, mesmo sabendo que são inferiores aos da pílula anticoncepcional. Quando entrei na sala onde ia levar a vacina, dei a conhecer as minhas preocupações às senhoras da pica, que rapidamente, e de forma extremamente britânica, afundaram as minhas questões:

Nuno: "So I’m taking the unpopular vaccine, eh?"
("Então quer dizer que vou levar a vacina impopular, não é?")

Senhoras da pica: "What do you mean unpopular? I’d say it’s very popular. THE QUEEN took this vaccine. If it’s good for the Queen, it surely is good enough for you!"
("Como assim impopular? Eu diria que é muito popular. A RAINHA (Queen) levou esta vacina. Se é boa para a Rainha, é boa para si de certeza!")

Nuno: "Oh is it the Queen vaccine? Then let’s have it! I’m a massive fan."
("Ah é a vacina da Rainha? (trocadilho com a "vacina dos Queen"). Então venha ela. Sou grande fã.")

E pronto, já levei a minha primeira pica e estou muito contente e agradecido ao Reino Unido por (mais) oportunidade que me atiraram. Cada vez gosto mais deste país.

Hoje, 12 de Abril, o país prepara-se para reabrir e o regresso à normalidade está já aí ao virar da esquina. Normalidade, que é como quem diz para mim, concertos. Já tenho uma série deles em vista para o final do ano e depois da segunda dose em Junho, vou com certeza pôr a hipótese de, pelo menos, ir a uns festivais de Verão ao ar livre. Até lá, vou continuar na minha rotina de usar duas máscaras no metro todos os dias e tomar banho de álcool-gel sempre que toco nalguma coisa. Mas pelo menos sei que o pesadelo está quase a acabar, graças ao Reino Unido. God save the Queen.