segunda-feira, 20 de março de 2017

O equívoco de Taylor Swift

O mundo adora a Taylor Swift, mas não precisa do Swifties.
Gosto da Taylor Swift. Não só pela evidência de que ela é, digamos, extremamente boa; mas porque para além disso, é também capaz de compor música Pop açucarada que cai extremamente bem no goto. Não tenho medo das palavras: "Shake It Off" é a melhor canção Pop desde os anos 90. A afirmação é discutível, admito, mas não andará longe da percepção global sobre um tema que materializa tudo aquilo que uma canção Pop deve ser. Mais: o álbum "1989" é um baú de pérolas Pop — embora nem sempre com arranjos de bom gosto, mas suponho que esse seja o preço a pagar pelo largo espectro de público que pretendia atingir — que a reinterpretação de Ryan Adams expôs a tão belo nu.



Mas a relevância de Taylor Swift não esbarra na música. Taylor é uma trendsetter. Normalmente quando a menina fala, o mundo escuta. Passando ao lado da polémica mal amanhada (e aparentemente forjada) com Kanye, onde ninguém ficou bem na fotografia, Taylor já mostrou várias vezes ser dona de uma personalidade forte, sem medo de arriscar, seguir sozinha e fazer frente aos dogmas da indústria musical. Ainda que nem sempre da melhor maneira. Caso em questão: a interminável batalha com o Spotify, que esta semana conheceu novos desenvolvimentos segundo o TMZ (se não conhecem, pensem num Correio da Manhã americano e rico).

Diz o TMZ que Taylor Swift está a planear uma plataforma própria com conteúdos audio exclusivos e non-downloadable (em streaming, portanto) — alegadamente baptizada com o nome de Swifties — para colmatar a sua ausência desde 2014 do nosso tão bem conhecido e amado Spotify (bem amado, menos quando metem anúncios de David Guetta no meio de um álbum dos Joy Division; os patifes sabem mesmo como convencer um gajo a assinar o Premium — pela tortura).

Taylor Swift tem a sua quota de razão nesta batalha. O Spotify é hoje uma ferramenta tão generalizada como o Facebook (quase, vá) e tem que rever a forma como valoriza o seu produto (o Lossless nunca mais vem?) e como compensa os artistas que lhes disponibilizam o seu catálogo — que é como quem diz, o seu trabalho — de mão beijada. Se bandas como os The Beatles (ou a própria Taylor Swift) podem alavancar o acordo que quiserem, já as bandas em ascensão são obrigadas a aceitar as migalhas que lhes atiram para os pés, cada vez mais fracos incentivos ao sonho do Rock N' Roll.

Percebo a intenção de Taylor Swift. Na prática, o Swifties pode ser um cruzamento entre a banca de merchandising da cantora, o Spotify e o Jornal do Benfica. O utilizador descarrega a aplicação e por uma determinada mensalidade tem acesso exclusivo à música de Taylor, enquanto ao mesmo tempo pode comprar as T-Shirts da nova colecção de merch e receber as últimas novidades da cantora (devidamente saneadas pela própria). Com isto, Taylor acha que será devidamente paga pela sua música, enquanto ao mesmo tempo isola as suas massas e as controla à sua maneira.

Poderá ser o Swifties um olhar para o futuro? Em vez de ter termos no telemóvel uma aplicação do Spotify, uma da Apple Music e outra do Tidal (e eu já acho que são demais), poderemos no futuro ter aplicações "The Beatles", "Taylor Swift" e "Tame Impala" e só nessa plataforma nos ser permitido ouvir a música desse artista? Não me parece. A tendência tem que ser para simplificar e não complicar mais. Para além de que não acredito no isolacionismo inerente a este tipo de acção, que impede a convivência da sua música em playlists com os seus pares.

Taylor Swift tem o dom de saber o que o público quer ouvir e mais importante que isso, o que o mundo quer dela. Por isso se mantém naquela fina linha entre a menina inocente e vulnerável que pinta nas suas músicas e a mulher firme e sabida que faz frente aos gigantes. Mas aqui não está a ver a pintura toda. O mundo não precisa do Swifties, nem de outra estratégia isolacionista que possa inventar a seguir. Taylor é a última rainha de uma linhagem que vem de Britney Spears e Madonna e deve preservar esse estatuto com aquilo que realmente interessa ao mundo: música e vídeos com pouca roupa.

domingo, 5 de março de 2017

Quando os U2 encontraram aquilo que procuravam — 30 anos de "The Joshua Tree"

"The Joshua Tree" faz 30 anos. Tempo de relembrar o álbum quintessencial dos U2.

Vivem-se tempos estranhos no mundo dos U2. Longe parecem ir os anos da aclamação global e das multidões a dormir ao relento numa BP para agarrar um bilhete. Da última vez que deram à costa, os U2 pareceram aquela tia que leva à festa de natal um vestido inusitadamente arrojado para a sua idade — quiseram ser punks ao colocarem o álbum "Songs Of Innocence" no iTunes de todos os utilizadores do mundo, mas acabaram queimados com a jogada. E para piorar tudo, ainda caíram no ridículo de pedir desculpa. Menos punk que isto era impossível. Mais noção precisava-se, Bono.

Talvez em resposta ao (despropositado) backlash global do caso iTunes, os U2 começaram finalmente a agir como uma banda da sua idade. Decidiram arrumar o álbum "Songs Of Experience" na gaveta (tal como tinham feito com "Songs Of Ascent", o "Zooropa" de "No Line On The Horizon") em detrimento de uma digressão nostálgica para comemorar os 30 anos de "The Joshua Tree". O aniversário do álbum é precisamente hoje, um dia em que, mais que nunca, é uncool falar nos U2. Mas como ignorar um álbum que mudou a vida de tanta gente? A minha mudou. Por isso fuck the uncool, vamos falar em "The Joshua Tree".

Há vários prismas por onde olhar para "The Joshua Tree", sendo o mais óbvio o seu sucesso: vendeu 25 milhões de cópias; é o álbum mais vendido dos U2 e um dos mais vendidos de sempre; ganhou o Grammy de Álbum do Ano e é presença habitual nas listas dos melhores álbuns para as principais publicações. Não admira por isso que este tenha sido o álbum que consagrou os U2 como 'a maior banda do planeta', um título que os próprios inventaram para si e que mantiveram durante mais alguns anos, mesmo quando (e principalmente quando) decidiram desmanchar tudo para refazer de novo (mas já estou a andar rápido de mais).

"The Joshua Tree" é o produto de maturação de uma década, foi a cristalização de um caminho que os U2 percorreram durante 10 anos e onde em breve se veriam encurralados (lá estou eu a andar depressa demais). É o quinto álbum da banda e contém todos os elementos com que foi polvilhando a sua discografia ao longo dos anos 80. Mal deixamos cair a agulha, somos submergidos pela solene introdução ambiente de "Where The Streets Have No Name", uma marca-de-água de Brian Eno, que estende a passadeira para a entrada da marca-de-água de The Edge (e dos U2) — "o riff" que ecoa ao infinito. Já tínhamos ouvido variações d'"o riff" em temas tão longínquos como "The Electric Co.", ou mais proximamente em "Pride (In The Name Of Love)"; mas é aqui que a imagem de marca da sonoridade dos U2 se cristaliza.

A introdução solene dá o mote para o traje polido e grandioso que os U2 pretendem dar ao álbum. Tudo em "The Joshua Tree" soa grande, grandioso, grandiloquente; é o gospel de "I Still Haven't Found What I'm Looking For", são os prantos de "With Or Without You", o sermão de "Mothers Of The Disappeared", a fúria de "Exit", a pregação (e a fúria) de "Bullet The Blue Sky". Aliás, os U2 construíram um séquito ao longo de toda a década de 80 (lembrem-se dos cartazes que enchiam o Wembley no Live Aid, dois anos antes) e passam "The Joshua Tree" a pregar às suas hostes. Bono aparece aqui como o pregador, completando assim a transformação do punk adolescente que apareceu em "Boy" 10 anos antes. A esponteinade de "Boy" foi aniquilada em favor de uma abordagem mais metódica e formulaica mas, e este é um grande "mas", com melhores canções. 30 anos volvidos, estas canções continuam um deleite para os ouvidos.

É a força das canções, o grande suporte de "The Joshua Tree". Elas constroem aquela que é, acima de tudo, uma carta de amor ao imaginário americano. É sobre isso que Bono prega. Note-se que tal não significa necessariamente uma carta de amor à América de então e muito menos à política de Reagan, como é bem notório em "Bullet The Blue Sky". É mais uma carta de amor aos desertos ("I'll show you a place high on a desert plain"), às cidades ("I have scaled these city walls, only to be with you") e ao sonho americano ("She is liberty and she comes to rescue me, hope, faith, her vanity"). E eis que chegámos à palavra-chave que melhor define o álbum: esperança. Esperança é o sentimento que conduz todo um álbum intenso em imagens (vide as chamas de "Bullet The Blue Sky") e intenso em sentimentos de quem vive nessas imagens. Numa altura que o mundo vive uma relação de amor-ódio com a América, o álbum ganha "The Joshua Tree" uma renovada relevância actual. 

Mas mais que a política, que pouco ou nada interessa para quem ouve música, é a forma como as canções de "The Joshua Tree" ainda ressoam no público o que mantém o álbum relevante. Não importa se Bono apoia o Pence ou critica o Trump, porque no fim do dia o que interessa é aquela noite em que dançámos agarradinhos ao som de "With Or Without You"; ou quando gritámos com um amigo a plenos pulmões, abraçados e já com os copos, que "as ruas não têm nome" enquanto fazíamos juras de amizade eterna; ou quando sozinhos ouvimos o Lado 2, de canções desconhecidas e "só nossas" e de repente deixámos de estar sozinhos. Momentos que marcam, memórias que ficam e que eternizam "The Joshua Tree".

O grande paradoxo de "The Joshua Tree" encerra no título de um dos seus três hits: "I Still Haven't Found What I'm Looking For". Porquê? Porque como diria o José Hermano Saraiva, foi aqui, foi exactamente aqui que os U2 encontraram aquilo que procuraram toda a sua carreira. E foi daqui que passaram os 10 anos seguintes a tentar fugir com "Achtung Baby", "Zooropa", "Pop" e "Passengers", depois de esgotarem a fórmula em "Rattle And Hum"; e foi aqui que tentaram desesperadamente voltar depois disso, com os mais melódicos "All That You Can't Leave Behind" e "How To Dismantle An Atomic Bomb". Por fim, este ano os U2 voltam sem medos às suas origens e voltam a levar o álbum quintessencial da sua discografia à estrada numa digressão que, para mal de nós, não passará por Portugal. Quem não tem com saudades de uma noite ao relento na BP?