sábado, 21 de maio de 2022

Adeus, Vangelis — morreu o último deus grego

Zeus, Poseidon, Apolo, Vangelis. Deixou-nos aos 79 anos o último dos deuses gregos, Evángelos Odysséas Papathanassíou, deus da música electrónica, génio da pintura de paisagens sónicas, pioneiro do uso de sintetizadores na música popular. Palavras grandes, bem sei, mas o legado do grego é largo, maior do que eu conseguirei pregar nesta eulogia. Vangelis deixou-nos com uma obra tão vasta e variada, que serão necessárias décadas para digerir o verdadeiro espectro da sua herança.

Para o público menos atento, Vangelis é conhecido pela banda sonora de "Chariots Of Fire", que lhe valeu um Oscar de Melhor Banda Sonora em 1982. Se esta referência não vos diz nada, pensem na "música dos Jogos Olímpicos", utilizada por todas as cadeias de televisão desde as Olimpíadas de 1984. Em Portugal, a sua música teve pelo menos dois usos proeminentes: a banda sonora de "Antarctica" serviu de acompanhamento para o boletim meteorológico da RTP, na primeira metade dos anos 90; e claro, a banda sonora de "1492: Conquest of Paradise" serviu de hino para as campanhas políticas de António Guterres e é instantaneamente reconhecível para qualquer português com mais de 30 anos.

Nos círculos de culto, Vangelis é também o autor da revolucionária banda sonora de "Blade Runner". Na opinião deste que vos escreve, esta é "só" a banda sonora mais soberba da história do cinema. Mais palavras grandes, eu sei, mas nunca em vão. A forma como Vangelis projectou na perfeição o futuro Dickiano das megalópoles, distópico, escuro e solitário, "apenas" munido com a palete sónica dos seus sintetizadores, foi nada menos que brilhante. É o equivalente em engenharia a construir uma ponte só com a mão-de-obra de um homem. "Blade Runner" é o meu filme preferido de sempre e a banda sonora faz o filme.

Todos os trabalhos mencionados em cima são superlativos, sim, mas são referências a meros quatro álbuns. Vangelis lançou mais de cinquenta ao longo da sua extensa carreira, que começou nos Forminx em 1962, ainda os Beatles estavam a começar. Para além dos discos editados, trabalhou em muitas mais bandas sonoras que nunca viram a luz do dia, para além da eventual aparição numa colectânea. Alguns destes registos são essenciais. Dizem que a altura para se conhecer um artista é quando ele morre, pois bem, aproveitem para conhecer o génio de Vangelis. Permitam-me dar-vos a conhecer alguns dos seus melhores trabalhos. Dez, para começar. 


L'Apocalypse Des Animaux (1970) (lançado oficialmente em 1973)

"L'Apocalypse Des Animaux" é uma das primeiras gravações a solo de Vangelis, ainda com o seu nome completo Vangelis Papathanassíou escrito na capa — que só recentemente consegui pronunciar depois de treino intensivo com um amigo grego. Foi também a primeira vez que Vangelis colaborou com o realizador Frédéric Rossif, autor de programas de vida selvagem para a televisáo francesa, com quem iria trabalhar muitas vezes no anos 70 (e sempre com resultados excepcionais, como veremos em baixo). E foi curiosamente também a minha entrada no mundo de Vangelis, por meio de um disco enigmático que fazia parte da coleccao do meu Pai. O álbum reúne várias peças dedicadas a diferentes animais, cada um no seu ecossistema. É brilhante. Sem nunca ter visto o documentário de Rossif, consigo mergulhar no escuro aquático do oceano profundo, ao ouvir "La Petite Fille De La Mer". Consigo visualizar o macaco, na vida solitária da selva, a saltar de ramo em ramo, com "Le Singe Bleu". Metáfora perfeita para as nossas vidas na selva das grandes cidades.


666 [Aphrodite's Child] (1971)  (lançado oficialmente em 1972)

Apocalipse, orgasmos e sintetizadores. A loucura grega dos anos 60 foi cristalizada nesta obra-prima Avant Garde que não é para todos, mas deve ser ouvida por todos. Salvador Dalí, amigo do grupo, planeou um evento inesquecível em Barcelona para promover o disco — centenas de cisnes (vivos) seriam despejados junto à Sagrada Familia com dinamite amarrada, para serem detonados remotamente numa versão explosiva de dança sincronizada; aviões de guerra sobrevoariam a catedral e despejariam elefantes, hipopótamos, baleias e arcebispos com guarda-chuvas na mão. Obviamente que nada disto aconteceu fora da cabeça de Dalí, mas podem retirar daqui uma ideia do que é este disco. Vangelis podia ter começado aqui uma carreira como teclista de um grupo de Rock Progressivo de nomeada, mas a sua vida estava destinada a voos mais altos do que apenas um Rick Wakeman grego, escondido num palco atrás das teclas. Curiosamente, Vangelis recusaria mais tarde a oportunidade de o substituir nos Yes, tendo trabalhado com Jon Anderson a solo, em várias colaborações mais ou menos bem sucedidas nos anos 70 e 80. Mais sobre isto em baixo.


Heaven And Hell (1975)

Originalmente lançado em LP como uma longa composição em duas partes (Lado 1 e Lado 2 do LP), "Heaven And Hell" foi subsequentemente dissecado nos seus vários movimentos, tendo alguns deles tomado vida própria. "So Long Ago, So Clear", que fecha a primeira parte, contou com a voz de Jon Anderson e foi lançado em single em 1975. Lançado no auge do Rock Progressivo, onde os Yes eram figuras de proa, esta colaboração atirou Vangelis para a esfera dos círculos prog e deu-lhe o primeiro êxito da sua carreira. Anos mais tarde, em 1980, o "3rd Movement" foi utilizado por Carl Sagan como tema de abertura da série "Cosmos", que ganhou enorme popularidade com as transmissões na PBS nos EUA e na BBC no UK. Esta visibilidade voltou a chamar a atenção para "Heaven And Hell" e para Vangelis como compositor. Não faltariam convites para trabalhar em bandas sonoras de tudo o que mexesse na década de 80.


China (1979)

Vangelis partilhava da filosofia chinesa relativamente à música, na qual esta tem um efeito preponderante em todo o corpo e intelecto, em vez de ser apenas um meio de entretenimento. Fascinado pelo imaginário chinês, estudioso da sua cultura e dos seus ensinamentos, Vangelis esculpiu em "China" uma imagem colorida e detalhada do gigante do Oriente, sem nunca ter lá estado. "China" quebra a regra dos melhores discos de Vangelis serem bandas sonoras, mas nem por isso. É que o disco não é mais do que a banda sonora do imaginário chinês que passa na cabeça do grego. "China" captura os diversos elementos singulares do país — a sua tradição ("The Tao Of Love"), a sua filosofia ("Yin & Yang"), a tranquilidade das suas paisagens ("The Little Fête"), e a sua vastidão ("Himalaya"). "The Little Fête", em particular, é um dos momentos mais brilhantes de toda a discografia de Vangelis e foi utilizado por Ridley Scott no seu anúncio para o Channel No.5 em 1979. Scott falou com Vangelis sobre uma adaptação ao cinema de um certo livro de Philip K Dick, e o resto é história.


Opera Sauvage (1979)

"Opera Sauvage" foi a terceira, de quatro, bandas sonoras de Vangelis para documentários sobre a vida animal de Frédéric Rossif. Num registo radicalmente diferente dos ecossistemas orgânicos de "L'Apocalypse Des Animaux" (1970) e da percussão tribal de "La Fête Sauvage" (1976), "Opera Sauvage" aproxima-se da sonoridade mais urbana que Vangelis iria adoptar na década seguinte. "Hymne" e "L'Enfant" ganharam notoriedade como singles, mas é em "Rêve" que Vangelis volta a tocar no céu, num longo tema reflectivo que iria servir de maquete para "Blade Runner", anos mais tarde. Vangelis voltaria a trabalhar em mais projectos com Rossif, nenhum deles lançado até hoje. Só "Savage Et Beau" (1984), teve o tema principal incluído na colectânea "Portraits" de 1996. Fica a ideia para uma fundamental caixa Rossif/Vangelis a juntar todos estes trabalhos em áudio e vídeo.


Chariots Of Fire (1981)

Não são precisas grandes apresentações para este. A banda sonora de "Chariots Of Fire" captura na perfeição o imaginário das olimpíadas, ou simplesmente da luta humana pela superação; seja de um atleta do salto à vara, de um cientista no laboratório, ou de um estudante nos exames. Não é um dos meus discos favoritos de Vangelis, talvez por ser demasiado leve e unidimensional, mas essa era a função da música no filme e o objectivo de Vangelis foi cumprido. Em última análise, deve-se a "Chariots Of Fire" o reconhecimento internacional de Vangelis, que se mantém até hoje. Enquanto houver Jogos Olímpicos, vamos ter a música de Vangelis a tocar.


Blade Runner (1982) (lançado oficialmente em 1995)

Todos os caminhos da carreira de Vangelis desaguam aqui. Quando Ridley Scott o desafiou para compor para a sua adaptação de "Do Androids Dream Of Electric Sheep?", Vangelis ficou com a tarefa impossível de fazer música de 2019 em 1982. Kubrick recorrera a Ligeti em "2001", Scott chamou Vangelis. O grego convenceu Scott a usar música atmosférica como parte proeminente do seu filme, para colocar o espectador no futuro. Sempre que Ridley completava uma cena na sala de edição, Vangelis sentava-se em frente às teclas e pintava a paisagem no sintetizador. O resultado foi uma obra assombrosa de cinema onde som e imagem vivem inseparáveis. Se há um filme que atesta o poder da música, é este. Devido a complicações contratuais, a banda sonora original de "Blade Runner" só foi lançada, parcialmente, em 1995. Foi expandida em 2007 em "Blade Runner Trilogy", mas inexplicavelmente, a banda sonora completa continua por lançar — procurem nos locais certos na internet pela "Esper Edition".


Antarctica (1983)

Vangelis seguia a todo o vapor na sua fase imperial na primeira metade dos anos 80. As bandas sonoras para filmes de Hollywood sucediam-se, e pelo meio havia espaço para filmes japoneses obscuros como "Antarctica" — a história verídica de um grupo de pastores alemães que foi abandonado no (longo) Inverno da Antártida e que eu recomendo vivamente. O tema principal é imediatamente reconhecível, pelo menos para quem viu a meteorologia na RTP nos anos 90, mas é em "Antarctica Echoes" que Vangelis tem mais um momento de génio, retratando o frio e a solidão dos caninos no gelo infinito do fim do mundo. Que pode ser uma metáfora para o gelo emocional de que tantas vezes somos rodeados.


The Bounty (1984) (nunca lançado oficialmente)

Vangelis regressa a Hollywood para o remake do clássico "Mutiny In The Bounty", desta feita com um jovem Mel Gibson e um Anthony Hopkins no seu auge. O filme é bom, mas a banda sonora é absolutamente excepcional. Também de forma inexplicável, nunca foi lançada até hoje. Mais uma vez, se pesquisarem nos sítios certos, a internet é vossa amiga. "The Bounty" é mais um ensaio de Vangelis sobre aventura, solidão e ecossistemas aquáticos. O tema dos créditos finais, em particular, coloca-nos setentrionalmente no barquinho do Lieutenant William Bligh, que navegou sozinho em alto mar durante mês e meio, até encontrar costa em Timor. E por falar em navegadores...


1492: Conquest Of Paradise (1992)

A última obra-prima de Vangelis. Os 90s foram muito bons para o grego (ouvir também "Oceanic) e isso deve-se muito à banda sonora do filme de Ridley Scott. Depois de uma segunda metade da década de 80 em crepúsculo, Scott voltou a chamar Vangelis para pintar paisagens sónicas épicas, no seu filme sobre as viagens de Cristóvão Colombo. Numa dimensão diferente da colaboração em "Blade Runner", dez anos antes, Vangelis capturou em "1492" o mistério do desconhecido, que os navegadores viviam nos Descobrimentos, como ninguém fez antes, ou depois. 


Vangelis foi o melhor pintor de paisagens sónicas do último século e há muito mais para conhecer, para além do espectro mais óbvio. Podem começar também com esta playlist:


quinta-feira, 12 de maio de 2022

Os Arcade Fire estão de volta, mas calma, não há razão para alarme

A banda canadiana regressa com "WE", o seu melhor disco dos últimos 10 anos.


Os Arcade Fire têm um álbum novo e a primeira coisa que me passou pela cabeça foi "será que o mundo não está a sofrer o suficiente?". A banda que se auto-esgotou ao se tornar um pastiche de si mesma regressa com o primeiro disco desde o pavoroso "Everything Now" de 2017, cujo tema-título tantas vezes me fez procurar por objectos pontiagudos para perfurar os ouvidos, sempre que despudoradamente aparecia na rádio. Sabendo que os últimos discos dos Arcade Fire foram penosamente longos, já estava preparado para uma hora de sofrimento quando pus o novo "WE", lançado na última Sexta-Feira. Não havia razão para alarme.


"WE" é facilmente o melhor disco dos Arcade Fire desde "The Suburbs", que ganhou o Grammy para melhor álbum do ano em 2011. Menos obcecados com o pastiche Disco contente, que é como quem diz, menos Imagine Dragons e mais LCD, os AF parecem ter-se reencontrado com a simples receita do foco no básico - a melodia. Precisamente aquilo que levou o público a apaixonar-se por eles há 15 anos.

O álbum abre ao som do piano aconchegante de "Age Of Anxiety I" e desde logo, sabemos que estamos em casa. A introdução dá lugar a um pulsante tema Synthpop, clássico Arcade Fire. O piano é, aliás, o fio condutor de todo o disco, imprimindo um registo mais épico aos sintetizadores barrocos do grupo. Esta fundação em ganchos melódicos no piano é o factor que valida as canções e faz de "WE" o melhor álbum dos Arcade Fire nos últimos 10 anos.

O ponto alto do álbum surge quase no fim, com o mutante World-Music / Synthpop / Alt-Rock "Unconditional II", tema que tem a participação especial de Peter Gabriel. Embora o ex-vocalista dos defuntos Genesis passe praticamente despercebido, este é o tema que condensa todas as ideias que caracterizam os Arcade Fire. Talvez tenha sido o Peter a lembrar aos canadianos o que eles fazem de melhor. 

O nadir do disco é, de longe, a sequência "The Lightning I" / "The Lightning II", momento Mumford & Sons que, com ou sem surpresa, foi exactamente a escolha do grupo para single de promoção do álbum. É o maior lapso dos Arcade Fire em "WE", uma réstia infeliz dos tempos de "Everything Now".O álbum termina em paz, num registo acústico atmosférico Ryan Adams, com o tema-título "WE". Consumado o triunfo da banda dos Butler.

Para trás, esperamos, estão os tempos da ironia de segundo grau e do dress code formal "aconselhado" nos concertos. A banda que durante anos condensou a ideia do hipsterismo, ao mesmo tempo que era mais mainstream do que as bandas declaradamente Pop, cabeça de cartaz no Rock In Rio com o Justin Timberlake, abandona a forma e regressa à substância. Saúde-se este regresso aos grandes discos dos Arcade Fire.