quinta-feira, 29 de setembro de 2022

"Moonage Daydream" é uma das experiências sensoriais mais potentes que vão ter no cinema

Fui ver a estreia do novo filme sobre David Bowie ao IMAX do BFI, e saí ainda mais fã do que entrei.


A vida em Londres é sempre a voar. Com a estreia do novo filme sobre David Bowie, "Moonage Daydream", a calhar numa quinta-feira no IMAX do BFI em Waterloo, e sem tempo para comer entre o trabalho e o início da sessão, o meu jantar foram três pints no pub por baixo da estação (há sempre tempo para uma pint. Ou três). Não admira, pois, que, quando me sentei na sala, já levasse a cabeça a andar à roda. Nada que interfira com o visionamento de um mero documentário sobre a vida e carreira de um músico. Achava eu.

Só que "Moonage Daydream" não é um documentário qualquer. Pode-se até conjecturar que é a antítese de tudo aquilo a que nos habituámos a ver num documentário Rock — um narrador a apresentar uma história temporalmente linear e uma selecção de comentadores que privaram com o sujeito, ou o estudaram, a explicar os quês e os porquês dos factos e acontecimentos ocorridos na sua vida. Não há nada disso aqui. O realizador, Brett Morgen, não está interessado em apresentar uma biografia factual de David Bowie; prefere antes dar a conhecer o artista através de frases-fortes proferidas na primeira pessoa, e imagens de momentos-chave da sua carreira. “Sound And Vision”, já dizia o próprio. É com este binómio tão familiar, que Morgen pretende atingir o espectador no cinema, com as mesmas sensações que Bowie intimava nos seus espectáculos.

Em vez do clássico "Rockumentário", somos então sugados por um drug-movie que quebra todas as regras do formato — um cruzamento entre Gaspar Noé e David Lynch, que devia vir com um pré-aviso de luz estroboscópica e banda sonora taquicárdica, não recomendável aos mais susceptíveis de epilepsia e hipertensão. Ao ponto de o próprio realizador sugerir o consumo de psicotrópicos antes do visionamento do seu filme*  Foi sem dúvida uma das experiências sensoriais mais potentes a que alguma vez fui submetido. Tendo em conta que Bowie trabalhou com Lynch em Twin Peaks e era fã do excêntrico realizador americano (não sei o que achava de Noé), estou convicto que ele iria gostar de "Moonage Daydream".

Desde logo porque neste filme, David é o narrador da sua própria história. Uma história de um alien, dizem os líricos, mas que na verdade era apenas um homem, inexoravelmente humano, à procura de si mesmo e, como todos nós, a desejar amar, e ser amado. O amor que, diz Bowie na primeira parte do filme, "não se pode intrometer no meu caminho". "Eu escondo-me muito do amor", confessa. "Sei que o amor é poderosíssimo, mas não tenho tempo para uma relação e não posso deixar que uma coisa dessas afecte a minha carreira". Nos minutos finais, um Bowie mais velho e experiente emenda a mão: "eu sei que no passado disse que estar apaixonado era como estar doente, mas hoje já não me revejo nessa frase”. O mais importante vem sempre acima.

A alegoria da viagem está bem presente em "Moonage Daydream". “Não desperdicem um único minuto da vossa vida”, diz um Bowie já ancião. Uma viagemde auto-descoberta relatada na primeira pessoa: "Passei muita da minha energia, toda a minha vida, a tentar fugir de onde vim e a tentar encontrar quem sou". Bowie acrescenta: "O que o público vê, não é real. Eu não sou real. O Mick Jagger não é real. O John Lennon não é real. Somos todos projecções do artista que queremos ser." O que não significa que saibam quem realmente são.

"Moonage Daydream" lembra-nos repetidamente que Bowie era um poliglota artístico, sempre em busca de novas linguagens para se exprimir. A música era apenas um destes idiomas - Bowie foi actor, pintor, escultor, e sempre que sentia que dominava um dialecto, saltava para o seguinte. "Vão sempre para fora da vossa zona de conforto", aconselha Bowie, enquanto o vemos a subir mais umas escadas rolantes."Sempre que sentirem que estão a perder o pé, é aí que estão perto de fazer uma nova descoberta". A sua curiosidade, criatividade e entusiasmo são contagiantes. Foi à procura de novas linguagens musicais que Bowie matou Ziggy, acabou com o Thin White Duke, ou fugiu de L.A., para se refugiar em Berlim. "Queria fugir de Los Angeles e pensei qual seria o lugar mais oposto no planeta para recomeçar — Berlim!". Ali, Bowie fez equipa com Brian Eno e Tony Visconti, em busca da reinvenção da sua carreira.

Visconti assina a banda sonora frenética de "Moonage Daydream", uma colagem de sons e excertos de toda a discografia de Bowie, desconstruindo para fazer de novo, por vezes a lembrar o mashup dos Beatles ,"Love", para o espectáculo do Cirque de Soleil. A mistura de Visconti é imersiva, de volume no máximo, certamente o melhor que Bowie já soou numa sala de cinema e o mais próximo de um concerto do saudoso cantor.

As filmagens de D. A. Pennebaker do lendário concerto no Hammersmith Odeon em 73, onde Bowie mata Ziggy Stardust, são a peça fulcral do filme. Desde logo, porque vemos a faixa que dá nome ao filme, "Moonage Daydream", interpretada por um Bowie, Mick Ronson e restantes Spiders From Mars, todos em absoluto pico de forma. Depois, porque podemos pela primeira vez ver, e ouvir, o delicioso medley “The Jean Genie / Love Me Do”, com participação especial de Jeff Beck na guitarra, que no passado vetou sempre o seu lançamento. Esta é a primeira vez que podemos ver este momento histórico. E claro, ver Bowie na pele de Ziggy é o tónico perfeito para um filme onde é pintado um artista que tem muito pouco de terreno.

Quando Bowie desce eventualmente à Terra, vemo-lo a dar um linguado a uma caveira na Soul Tour de 1974, parte do filme “Cracked Actor” que nunca viu a luz do dia oficialmente em home video. Outras imagens que nunca viram a luz do dia e estas vemos mesmo pela primeira vez, são as de Earl’s Court em 1978, tourné Isolar II, de promoção a ““Heroes”” (notem as duplas aspas) que aparecem aqui com uma qualidade insana. Criminoso, como ainda não temos o filme desse concerto nas nossas prateleiras, a fazer companhia ao disco ao vivo "Welcome to The Blackout".

"Moonage Daydream” é um ataque aos sentidos, uma experiência sensorial intensa, até por vezes desconfortável, que nos vira do avesso, dilata as pupilas (pensem "naquela" cena do "Laranja Mecânica"), e nos deixa a cabeça a andar à roda. Algumas filmagens artísticas mais recentes, que nada têm a ver com Bowie, eram desnecessárias, mas o saldo é francamente positivo. Confesso que não estava à espera que fosse tão bom. Quando a arte nos abana desta forma, é aí que sabemos que é boa. Se Bowie não disse algo parecido, poderia ter dito.

* Não foram consumidos psicotrópicos no visionamento deste filme. A sério.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Animals and me

A história de como o "Animals" se cruzou com a minha vida e a análise da nova reedição, que traz o álbum pela primeira vez em Surround.


Deixem-me, antes de mais nada, apresentar-me. Sou engenheiro civil e mudei-me para Londres no início de 2018, há quase cinco anos. No primeiro dia de trabalho, segunda-feira, 8 da manhã, tive o meu primeiro "monday meeting" — uma hora onde eram atribuídos os projetos e as horas de trabalho para a semana de cada um dos engenheiros. Todos se reuniam no centro do escritório a olhar para um ecrã gigante que mostrava uma folha de Excel com a lista dos projetos que a empresa tinha em carteira. Apaixonado por Londres e pela música britânica, alguns nomes sobressaíam ali imediatamente, ruas e lugares que conhecia de discos e concertos históricos das minhas bandas favoritas. Wembley, Earl’s Court ou… Battersea Power Station.

Vou agora puxar um pouco mais para trás. Os Pink Floyd são, a par dos Queen, a minha banda preferida desde que me lembro de existir. A coleção do meu Pai tinha todos os discos dos Floyd e aquelas capas ficaram desde cedo cravadas na suscetível mente de um miúdo que, já na altura, era absolutamente obcecado por música e preferia “brincar” com a aparelhagem do pai do que com os seus próprios bonecos. Uma capa, em especial, sempre me deixou particularmente impressionado — a enigmática capa de "Animals", disco dos Pink Floyd originalmente lançado em 1977. Uma imponente mega fábrica em tijolo, com quatro chaminés gigantes e um porco a voar sob um céu apocalíptico. Essa fábrica, soube mais tarde, era a Battersea Power Station. Lembro-me de estar na faculdade e de ler uma notícia sobre o projeto de reabilitação da Power Station e de pensar que seria um sonho um dia trabalhar naquele projeto. Ri-me. Era um sonho longínquo, quase impossível, para um jovem a marrar nas catacumbas do Técnico.

Saltamos 10 anos para a frente e lá estou eu, sentado no centro do escritório, à espera de ser colocado no meu primeiro projeto em Londres. O diretor ia passando pelos nomes da lista e atribuindo trabalho a todos, mas nada para mim. Até que chegou à linha que dizia Battersea Power Station. O meu coração saltou umas batidas. "Nuno, vais liderar este projeto.", disse o diretor. Palavras que pararam o tempo, qual Matrix. Nem queria acreditar.

Instintivamente, talvez fruto de anos de catequese e educação católica, olhei para cima. Vi uma luz. Era a lâmpada no teto falso. Mas também a realização de que a sorte me tinha sorrido. Se alguma vez na vida senti que tinha chegado ao sítio certo, à hora certa, foi neste momento. Os astros alinharam-se.

Agarrei a oportunidade com unhas e dentes e nos dois anos que se seguiram, período em que a minha barba se pintou de branco, liderei e entreguei o meu projeto de sonho — a Fase 3 da reconstrução da Battersea Power Station que, nem de propósito, está prestes a abrir ao público, já no dia 14 de Outubro (também dava um bom artigo para a NiT). Foi um projeto duríssimo, mas sempre que as forças me faltavam, olhava para a majestosa Power Station, e saía rejuvenescido. Estava a viver um sonho. Mas a história não terminou aqui.

Quando juntei poupanças suficientes para comprar uma casa em Londres, a minha intenção era clara — um apartamento com vista para a Power Station, uma espécie de capa do "Animals" viva, que eu pudesse ver todas as manhãs quando acordasse, todas as noites antes de me deitar, ou sempre que me apetecesse olhar pela janela. É precisamente a olhar para ela, a Battersea Power Station, que vos escrevo, aqui sentado no meu sofá. E nem sequer falta a Algie a voar na minha sala.

Serve esta longa introdução para vos contextualizar sobre a importância do álbum “Animals” dos Pink Floyd na minha vida, e sobre o meu comprometimento com a banda britânica em geral; a propósito da novíssima edição de "Animals", que foi lançada na semana passada em CD, LP e Blu-Ray. Apresentando o sufixo "2018 Remix", esta reedição oferece novas misturas em Stereo (em todos os formatos) e em Surround no Blu-Ray, o qual também apresenta uma versão de Alta Resolução da mistura original de 1977. Dito assim, parece um lançamento prosaico. De todo. A história da mistura em Surround de "Animals" remonta a 2004, quando foi primeiramente ventilado que o Engenheiro de Som da banda, James Guthrie, estava a trabalhar no projeto com o objetivo de uma edição no ano seguinte, ou seja, em 2005. Ainda andava eu na faculdade.

Guthrie terminou primeiro a mistura em Surround de "Wish You Were Here", alegadamente por volta de 2007, mas esta ficou na gaveta até 2011, quando os Pink Floyd fizeram a última campanha massiva de reedições do seu catálogo. De "Animals", nada se ouviu. Não é preciso grande imaginação para adivinhar que a missão de Guthrie, de agradar a gregos e a troianos (leia-se, Roger Waters e David Gilmour), terá sido hercúlea. Mas conseguiu.

Algures em 2018, há 4 anos portanto, James Guthrie terminou finalmente as remixes Stereo e Surround de "Animals". Aubrey Powell tirou mais uma série de fotografias majestosas da Battersea Power Station, agora em obras (possivelmente comigo lá no meio), e tudo estava pronto para o lançamento da versão 5.1 do disco sonicamente mais problemático dos Floyd. Só que não.

https://www.youtube.com/watch?v=jX5x9wzMN4s

Roger e David entraram então num conflito (que é como quem diz, continuaram o seu eterno conflito) devido a um texto adjudicado a Mark Blake, sobre as sessões de gravação de "Animals". Blake tem vários livros editados sobre a banda e está dentro dos factos, mas este texto em particular é largamente elogioso para Waters e praticamente negligencia a contribuição dos outros membros da banda. Nomeadamente David Gilmour que, naturalmente, vetou a sua inclusão nesta reedição. Entretanto, os fãs dos Pink Floyd, que nada sabiam, viviam no escuro relativamente ao tão propalado Animals em Surround.

Em Maio de 2021, Roger lançou uma notícia no seu website, acompanhado de um vídeo jocoso, revelando que a razão do atraso era um braço de ferro entre ele e David sobre o tal texto, mas que ele, numa atitude salomónica, ia aceitar a exclusão do texto no livrete da reedição, para finalmente libertar as remixes de "Animals". Estava fechado este capítulo do conflito entre Waters e Gilmour, a novela que nunca acaba.

E eis que chegamos aqui, Setembro de 2022, e depois de mais de 18 anos de espera, podemos finalmente ouvir as remisturas de "Animals" em Stereo e Surround. A espera foi recompensada. As novas versões de “Animals” (ou vá, de 2018) põem o álbum no mesmo panteão audiófilo habitado pelos outros discos de nomeada dos Floyd (“The Dark Side Of The Moon”, “Wish You Were Here”, ou “The Wall”), todos eles gravados em estúdios profissionais, como Abbey Road. “Animals” foi gravado em Britannia Row, num estúdio que eles próprios construíram (literalmente — Nick Mason conta na sua biografia que a banda acompanhou e dirigiu a obra e montou todo o equipamento). As instalações não correspondiam à mesma bitola a que os Pink Floyd estavam habituados e a sónica do disco sofreu com isso. Esta nova mistura, mais limpa, fina e delicada, levanta um véu que cobria as gravações nas fitas originais e revela pormenores que não ouvíamos antes.

Foram tomadas algumas liberdades com as faixas vocais de Roger Waters, outrora afogadas em reverb e agora secas, frontais e definidas. Podemos OUVIR o Roger, atentar na sua dicção e locução das palavras, como se ele estivesse sentado ao nosso lado. A dinâmica do espectro sonoro ficou intacta, com a guitarra de David Gilmour a explodir nas colunas, sempre que este arranca um solo. Podemos agora ouvir todas as notas de David em alta-definição, como quem tira um VHS e põe um Blu-Ray. Também em Full HD aparecem as teclas hipnóticas de Richard Wright, finalmente com espaço para respirar com toda a claridade. Mas o maior beneficiado desta remix terá sido Nick Mason, que viu sua a bateria saltar para a frente da paisagem sonora.

Tudo isto pode ser testemunhado ao ouvir a nova mistura em Stereo, mas a verdadeira jóia da coroa desta reedição é a remistura em Surround. Ouvir mesmo atrás de nós os porcos a grunhir, os cães a ladrar, e as ovelhas a balir põe-nos dentro da quinta do universo de George Orwell, tal como imaginada por Roger Waters e David Gilmour. A introdução de Rick nas teclas em “Pigs (Three Different Ones)” já era nauseante em stereo; em Surround, deixa-nos a cabeça a andar à roda.

Contudo, este levantamento do véu das limitações técnicas de Britannia Row chega com um preço. A sónica monolítica da mistura original assentava que nem uma luva no conteúdo abrasivo do álbum. Esta rugosidade e sujidade da mistura original perdeu-se. Este deixa de ser o álbum Punk dos Pink Floyd, onde a banda desceu aos infernos e voltou para nos trazer a visão distópica da sociedade. Também é de lamentar que não tenha sido incluído qualquer material extra: nem a versão completa de “Pigs On The Wing” (exclusiva ao formato de cartucho 8-track), nem as versões iniciais de estúdio que circulam entre os fãs (e que tinham Roger na voz em “Dogs” e diferentes takes de guitarra), nem qualquer material ao vivo da lendária In The Flesh Tour — uma digressão tao intensa e atribulada, que terminou em Montreal com Roger Waters a chamar um fã ao palco para lhe cuspir na cara (“who was trained not to speak in the fan”, não é?).

Portanto, se quiserem ouvir “Animals” MELHOR, mais claro e limpinho, ouçam a 2018 Remix. Se quiserem ouvir “Animals” PIOR, mais sujo e monolítico, ouçam o original. São duas experiências diferentes, e por isso não vos poderei dizer qual é a melhor. A minha preferida continua a ser a original, uma vez que é suposto que "Animals" seja um álbum sujo. Não podemos ouvir os porcos sem descermos à pocilga.

A Surround Mix não tem nada a apontar. Arrisco dizer que esta mistura imersiva é a melhor de todas as experiências Surround dos Pink Floyd. Antes já tivemos “Meddle” (um bónus da colecção “The Early Years”), “The Dark Side Of The Moon” (SACD, Blu-Ray), “Wish You Were Here” (SACD, Blu-Ray), “A Momentary Lapse Of Reason” (Blu-Ray), “The Division Bell” (Blu-Ray), e (se quiserem contar com este) “The Endless River” (Blu-Ray). Se considerarem as misturas quadrifónicas, ainda houve “Atom Heart Mother”. “Animals” é o melhor deles todos, o que nos deixa com grandes expectativas para o trabalho de James Guthrie no outro gigante que falta — “The Wall”, alegadamente já terminado em 2021 e agora à espera de luz verde para o seu lançamento.

Se pensarmos que “Animals” demorou 4 anos só em discussões de packaging, o futuro não parece animador. Se adicionarmos o facto que, no divórcio entre Roger Waters e restantes Floyd, Roger ficou com o controlo de tudo o que fosse relacionado com “The Wall” e “The Final Cut”, as perspectivas não são as melhores para ouvirmos estes em Surround. E não esquecer o filme "The Wall Live In Earl’s Court", o santo graal dos Pink Floyd, que está refém na cave de Roger. Se o génio criativo dos Pink Floyd (como ele se autodenomina) desse mais atenção a estes projectos e menos a amizades com líderes bafientos de leste, mais lhe valia.