quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Nunca conheçam os vossos heróis. Excepto se o vosso herói for o Brian May

Já ouviram aquele ditado que diz para nunca conhecerem os vossos heróis? Felizmente nem sempre é assim. Há um mês participei num daqueles concursos que assinamos e nunca mais nos lembramos, porque sabemos que é praticamente impossível ganhar - “habilita-te a ir a uma sessão de Q&A (perguntas e respostas) com o Brian May”, anunciava o site dos Queen. Right. Como se fosse possível. Só que na semana passada o impossível aconteceu e eu fui contactado pela editora para estar com mais 20 pessoas. Nem queria acreditar.

Depois de uma noite mal dormida, acordei com o coração aos pulos. Chegara o dia. As instruções da editora eram precisas - era obrigatório apresentar o Covid pass do NHS com as duas vacinas e mesmo assim nenhum contacto com o Brian seria permitido devido à pandemia. Entende-se. O homem já não vai para novo e precisa de se proteger. À chegada ao Regent Street Cinema, uma nova restrição - para além do NHS pass, todos os convidados eram obrigados a fazer um teste rápido à porta. Mas se não era possível contacto, qual o problema? A resposta viria mais tarde.

A sessão tem início com o Brian a lembrar que viu ali os The Who por volta de 1966. The Who em 1966? Fixe. Mas fixe mesmo é o Brian May mesmo ali à minha frente. Começamos por ver os vídeos originais dos três singles do seu álbum de estreia a solo, lançado em 1992 e reeditado agora para chegar à nova geração de fãs que Brian tem abraçado no instagram desde o advento do filme sobre os Queen. Os vídeos de “Driven By You”, “Resurrection” e “Too Much Love Will Kill You” (a versão original de Brian, entenda-se) foram polidos, o áudio remasterizado e parecem e soam gloriosos em volume máximo na sala de cinema. Qualquer destes temas é nível Queen.

Brian regressa para introduzir o novíssimo vídeo para o tema-título de “Back To The Light”. É para isso que estamos aqui. Bem, pelo menos oficialmente (eu estou pelo Brian, mas já la vamos). O vídeo é uma mistura perfeita entre o velho e o novo Brian. Ele viaja no tempo para se encontrar com o seu eu de 46 anos e tocar guitarra na sua própria banda de 1993. Vemos o Brian pujante de cabelo escuro e forte, a liderar a sua banda no centro do palco, e ao lado o Brian de cabelo grisalho e fininho, contente por, como ele refere, “voltar a ser apenas o guitarrista”. O novo vídeo usa imagens do vídeo “Live At Brixton Academy” (que segundo Brian será lançado mais à frente nesta campanha de reedições), gravado em 1993, e mistura com imagens recentes filmadas no Hammersmith Odeon (hoje Apollo), sala mítica para os Queen.

https://www.youtube.com/watch?v=Zvmp8YhEgQk

O vídeo termina e Brian volta a subir a palco visivelmente orgulhoso com o trabalho de Simon Lupton na realização. É ele quem vai conduzir a sessão de perguntas que se seguirá. Brian refere que terá sido o primeiro a fazer um exercício deste género, uma vez que ninguém é tão velho para fazer isto. Cientista e Rock ‘n’ Roll Star, confessa-se apaixonado por filmes de time travel (somos dois) e que se tivesse oportunidade, avisaria o Doc de “Regresso ao Futuro” para voltar para trás - “We fucked up!”, diz Brian com os olhos esbugalhados, na sua melhor melhor imitação de Doc.

Tempo de responder a algumas questões da sala, diz Simon Lupton - “Quem é que tem perguntas?”. Antes de ele terminar a questão, já eu estou de braço no ar, pois claro, mortinho por interagir com o meu herói. Passam-me o microfone e neste momento, os nervos que carrego desde manhã suspendem-me num estado zen. Dirijo-me directamente ao Brian May: “antes de mais, obrigado por esta oportunidade e parabéns pelo novo vídeo”. Repito em traços gerais a impressão que descrevi atrás nesta crónica, em como o vídeo é bem sucedido em misturar o velho com o novo e a passar a mensagem pretendida. O Brian agradece e responde “what’s your name, sir?” Sim, o Brian May quer saber o nome. “Sou o Nuno Bento, sou português e coleciono todos os seus trabalhos, tanto oficiais, como não oficiais”. Arranco uma gargalhada ao Brian (isto está mesmo a acontecer?) e assim ganho crédito par falar mais um bocadinho com ele: “Brian, o meu álbum favorito é o “A Day At Races”, onde eu acho que os Queen atingiram o seu pináculo, especialmente no Lado A, que eu considero ser o crowning achievement da discografia dos Queen, o qual soma na medida perfeita todos os elementos que fizeram os Queen extraordinários. Contudo, raramente vejo o Brian falar neste disco. Como é que se sente acerca deste álbum hoje em dia?” 

O Brian parece surpreendido com esta referência: “eu vejo esse disco como o irmão gémeo do “A Night At The Opera”, foi de facto o disco onde levámos ao limite a nossa criatividade num estilo mais barroco e eloquente. Depois achámos que esgotámos essa vertente e regressámos a um estilo mais simples no “News Of The World”. Eu insisto: “concordo que o “Opera” e o “Races” são gémeos, mas a atenção vai sempre toda para o primeiro. Será que podemos esperar uma edição expandida para o “A Day At The Races”, como já tivemos para o “A Night At The Opera”?” Brian olha para mim pensativo e responde: “quem sabe?”. É o fim da minha intervenção e registo a minha pulsação em níveis taquicárdicos.

Nas perguntas seguintes, Brian esclarece que não está a pensar em voltar aos palcos em nome próprio - “eu nunca quis deixar de ser o guitarrista dos Queen. É só isso que eu quero ser”, confessa. Eu, que sempre fui contra a colaboração com o Adam Lambert e apologista que o Brian May e o Roger Taylor deviam ir para a estrada “sozinhos” (isto é, sem vocalistas adicionais, a partilhar as responsabilidades do microfone), engoli em seco. O Brian adianta que pode fazer uma aparição “algures” na digressão a solo do Roger que se avizinha. Eu vou vê-lo a Shepherd’s Bush no próximo mês, a walking distance de onde o Brian mora, por isso espero ver os Queen, sem o “+”, nessa noite. Agora que penso nisso, o John também mora a poucas estações de metro. Hum…

No fim da sessão, quando todos esperavam pela saída imediata do Brian (não podia haver contacto, lembram-se?), ele puxou a cadeira para a frente do palco e chamou a si os seus fãs. Ficaram assim explicados os testes obrigatórios à entrada. Depois de quase 2 anos fechado em casa, o Brian estava evidentemente com saudades dos seus fiéis. Cheguei-me à frente com o meu “A Day At The Races” (eu ia preparado para qualquer eventualidade) e o Brian recebeu-me com o maior sorriso e a maior simpatia “obrigado por vires Nuno, gostei mesmo da tua pergunta”. Obrigado eu, Brian! Obrigado eu. 

Assinou o meu disco e, não sei porquê, terá achado que a caneta lhe fugiu e que o autógrafo não saiu bem. Olhou desapontado para a assinatura e pediu-me desculpa - “estou destreinado”, suspirou. Ri-me com uma lágrima já a sair e assegurei-lhe que estava perfeito assim mesmo, não podia ter saído melhor. Pedi só uma foto para a posteridade. O Brian puxou-me pelo ombro na sua direcção e eu fiz um sorriso estúpido para a câmara como se tivesse 15 anos. E naquele momento tinha. 


O Brian foi simpático, afável, atencioso e muito mais do que eu alguma vez poderia esperar. Já diz o povo: nunca devem conhecer os vossos heróis, excepto se o vosso herói for o Brian May.


terça-feira, 7 de setembro de 2021

ABBA de volta como hologramas — É este o futuro que queremos?

E eis que chegámos oficialmente ao futuro. Quarenta anos depois da mais acrimoniosa das separações, que envolveu um drama mexicano de traições, divórcios e corações partidos, os ABBA estão de volta com um novo álbum e uma nova digressão. Mas quem for ver um concerto dos ABBA em 2022, não vai ver propriamente os ABBA e muito menos ao vivo. O que a audiência vai ver é um espectáculo de realidade virtual, com hologramas do que eram os ABBA em 1974. Como devem imaginar, isto levanta um sem número de questões e ironias, por isso vamos por partes. Comecemos pela nova música.

Se há um elemento que confere validade a todo este projecto distópico de fusão do novo com o "não-tão-novo" (estou a citar a expressão espirituosa do site) é que, tal como nos bons velhos tempos, esta digressão é apoiada em música nova. Vem aí um novo álbum dos ABBA, "Voyage", a ser lançado em Novembro, exactamente 40 anos depois de "The Visitors" em 1981. E com este anúncio vieram dois aperitivos do novo disco: "I Still Have Faith In You" e "Don’t Shut Me Down". Fiquei parcialmente impressionado. Já explico porquê.

A maioria dos álbuns de reunião de grupos de nomeada são uma desilusão, uma vez que falham em recapturar a magia que levou ao sucesso noutros tempos. Os artistas mudam, a música muda, as técnicas de gravação mudam, o mundo muda, e invariavelmente temos álbuns que são orientados para as bases de fãs antigas, vendem tudo o que têm para vender nas primeiras semanas (muitas vezes atingindo o topo das tabelas) e depois desaparecem do mapa para nunca mais serem ouvidos. É possível que seja isso que aconteça com "Voyage", contudo, mérito seja dado aos ABBA, os temas que ouvimos são competentes no seu propósito de somar o número máximo de elementos clássicos do quarteto sueco. Os compositores, Bjorn e Benny, provam que sabem e ainda dominam a fórmula dos ABBA. Com excepção das vozes das meninas que, naturalmente, envelheceram, a música consegue capturar o âmago dos anos 70. É esse o maior feito dos novos temas dos ABBA. 

"I Still Have Faith In You" foi escolhido como o tema de avanço devido ao conteúdo lírico, obviamente auto-referencial, mas é o elo mais fraco deste lote. Admito que nunca tive paciência para as baladas dos ABBA e talvez por isso não consiga tirar nada deste tema, mas o facto é que, 5 dias depois de desvendado, está no primeiro lugar das músicas em alta no Youtube com 14 milhões de visualizações. O cínico em mim diz que é um sucesso fundado em nostalgia, mas é mais que isso. É a fórmula resolvente dos ABBA em acção.

 "Don't Shut Me Down" é o tema mais upbeat deste par e francamente superior. Os elementos reconhecíveis dos ABBA também estão aqui, mas resultam melhor num contexto dançável. Especialmente quando a melodia despoleta uma reacção familiar no cérebro, programado para sentir conforto quando reconhece padrões antigos. "Somos suecos e fazemos música que não vos sai da cabeça", deveria ler-se no cartão de visita do grupo.

Como a última frase deve ter deixado escapar,  quem vos escreve não é propriamente um fã dos ABBA. Mas nem eu consigo escapar ao charme dos "a-has" de "Voulez-Vous", das notas impossíveis de "Dancing Queen", ou da linha de sintetizador de "Gimme! Gimme! Gimme!". Estas canções estão cravadas na cultura popular e no imaginário de quem quer que se cruzou com elas. É impossível escapar aos ABBA, porque eles são assim tão bons. Goste-se ou não. Para além do seu espólio, deixaram o dedo firme em todo o género que conhecemos como música Pop, desde Madonna, a Max Martin, ou Lady Gaga. Se andarmos as referências para trás, vamos invariavelmente dar aos ABBA. 

Por outro lado, esta bitola de excelência Pop torna a vida das novas canções inevitavelmente mais difícil. E se eu não posso rebater um "Thank You For The Music" (adaptado para português pelo Chuva de Estrelas e readaptado mais tarde por estudantes universitários), não consigo ouvir os hooks inatacáveis nas novas canções. São competentes, sim, mas carecem aquele magnetismo característico dos ABBA. Esperemos pelo resto do disco para um juízo final deste regresso. Para já, levam um nada desprestigiante B-.

A outra parte do anúncio deste comeback refere-se à já referida digressão holográfica da banda sueca. Ora, isto não é de somenos. Já se fala nos hologramas há muitos anos, normalmente com o propósito mórbido de levar ao palco artistas defuntos (Amy Winehouse, Whitney Houston, Tupac, etc), mas penso que será a primeira vez que músicos vivos preferem enviar em digressão hologramas, em vez de levarem a sua música ao seu próprio público. O grupo nem sequer gravou faixas vocais novas para a digressão — o que vamos ouvir são gravações dos anos 70, cantadas por hologramas dos ABBA dos anos 70. É um episódio digno de um livro de Philip K. Dick. E isto levanta, obviamente, uma série de questões. É isto que nós queremos para o futuro da música? Será que a oferta da música dos nossos dias é tão calamitosa que nos obriga a ir buscar jovens a 1974? Será o próximo passo a criação de andróides, réplicas dos ABBA, que vão andar em digressão? Não nos estamos a aproximar demasiado do Blade Runner e de outras distopias da ficção científica? São questões pertinentes e sem resposta imediata. A substituição de humanos por tecnologia é uma temática complexa, que merece a nossa reflexão. Temos que falar também dos deep fakes musicais, como o bot que "escreveu" uma música de Nirvana, mas isso fica para outra crónica.

Se estivéssemos a falar de outro tipo de banda, digamos, por exemplo, os Arcade Fire, poderíamos alegar que este projecto estaria mergulhado em ironia pós-moderna — em como a nossa sociedade está obcecada com a juventude —, e que este seria um "statement" para ridicularizar isto mesmo. Mas são os ABBA, historicamente kitschy e grau zero de ironia. São a maior instituição Pop global e what you see is what you get. E o que temos é um passo firme em direcção ao futuro que quisemos ter, ancorado na nostalgia dos ases do passado e higienizado com a certeza de uma banda que cumpre todas regras do bom comportamento e do distanciamento social, uma vez que nem sequer está lá. Cabe-nos a nós decidir se este é mesmo o futuro que queremos.