segunda-feira, 29 de março de 2021

A pandemia do streaming e o formato físico como salvação da indústria musical

Adoro o streaming. Adoro saber que posso, em qualquer altura e em qualquer lado, apenas com uma ligação à internet, pôr a tocar "aquela" música que eu preciso de ouvir naquele exacto momento. Adoro ter os novos lançamentos no Spotify à mão e ouvir tudo no commute para o trabalho (quando havia commute) às sextas-feiras de manhã. Ou se estiver tão ansioso que mal posso esperar, ouvir tudo logo à meia-noite, qual Pai Natal a chegar em noite de consoada. Adoro chegar ao fim do mês e ver as estatísticas do que ouvi nas últimas semanas e depois passar tudo para um Excel onde tenho todos os registos musicais da minha vida. Adoro tanto esta funcionalidade, que chego ao ponto de pôr a tocar durante a noite as músicas que ouvi em vinil no dia anterior (em casa só ouço discos de vinil), de modo a contabilizar os formatos físicos para as estatísticas. Adoro tudo isto. Mas o Spotify tem um grande problema — está a matar a indústria musical.

Atentem nos números: o CEO e co-fundador do Spotify, o sueco Daniel Ek, tem uma fortuna avaliada em 2.8 mil milhões de dólares; o co-fundador dos Beatles, o britânico Paul McCartney, tem uma fortuna avaliada em 1.2 mil milhões de dólares. Sim, leram bem. O CEO do Spotify tem mais do dobro do dinheiro que o Paul, sem nunca ter escrito uma canção. E ambos fizeram fortuna à custa de música. Alguma coisa não está bem aqui.

Não se trata de uma apologia ao comunismo, mas se o dono de uma plataforma de música se serve do produto dos artistas para fazer fortuna e esses artistas não vêem nada do bolo, este torna-se um modelo de negócio insustentável. Quase todos os gigantes já se pronunciaram contra a ganância do Spotify, desde os Radiohead aos Tool, passando pela Taylor Swift, Neil Young e Beck, todos já tentaram agir contra a plataforma de streaming. Todos caíram.

Veja-se a Taylor Swift, tão somente uma das maiores trendsetters influencers do mundo, que andou em guerra com o Spotify durante vários anos e planeou em 2017 uma plataforma com conteúdos próprios para fazer face à sua ausência no mundo do streaming. Acabou por vacilar e disponibilizar toda a sua discografia no Spotify.

Também Neil Young perdeu a guerra contra os suecos. Durante anos, impediu a partilha da sua música no Spotify e chegou a criar o seu próprio leitor de media (o Pono), o qual oferecia música com resolução muito mais elevada. Acabou por ceder no final de 2016. Mas a sua investida contra o Spotify vai mais além. Neil acredita que o Spotify nos está a matar o cérebro, com música de má qualidade e fraca resolução. E acrescenta: "quando ouvimos música verdadeira, perdemo-nos nela porque tem o som de Deus. O Spotify não soa a Deus, ninguém pensa isso. Soa a uma ventoinha eléctrica, comprada uma loja de electrodomésticos". Claro que Neil é o purista dos puristas, mas ele tem a sua quota de razão. Ninguém discute que o vinil soa melhor que o Spotify, mas a verdade é que eu não posso ouvir os meus discos a caminho do trabalho. O streaming veio para ficar e não há mal nenhum nisso.

Independentemente da bonomia do vinil, a transição para o streaming é evidente, pelo que terão que ser essas plataformas — que vieram, em parte, substituir o papel das editoras — a compensar devidamente os artistas pela sua música e a investir neles, tal como as editoras faziam. Isto implica uma negociação complexa, da qual estamos ainda muito longe. A não ser, claro, que estejamos a falar de "marcas" já estabelecidas, com poder de alavancagem suficiente para negociar. Foi o caso dos Beatles, que por causa disto mesmo, entraram no Spotify muito tarde, só no final de 2015. Já os artistas em ascensão são obrigados a aceitar as migalhas que lhes atiram para os pés, tendo como única vantagem no Spotify a disponibilização (livre) do seu trabalho, como forma de promoção. Se esta promoção é mais ou menos efectiva é outra discussão — pertinente — que tem a ver com algoritmos e que deixarei para outro texto.

 
Esta dependência do streaming foi agudizada pela crise da pandemia do último ano. Até 2020, as bandas compensavam a queda das vendas físicas com a facturação da bilhética e a venda de merchandising. Sem a possibilidade de ir para estrada e levar a sua música ao público, esta alternativa esfumou-se e deixou em crise profunda uma indústria que já estava em agonia. O que resta às bandas neste momento são as vendas físicas pelos seus websites, tanto de discos, como de merchandising. Porque lá está, com o streaming, não podem contar. Pensem que comprar uma t-shirt equivale a aproximadamente 5 mil streams. Eu, que ouço música compulsivamente e faço em média 2 mil streams por mês, precisava de quase 3 meses a ouvir a mesma banda para pagar uma t-shirt.

Adoro o Spotify, mas a plataforma tem um problema fatal, de não pagar o que é justo aos artistas. Sendo hoje uma ferramenta tão poderosa, tem que rever a forma como valoriza o seu produto — adicionando a opção para áudio de alta resolução (prevista para o fim do ano) e, acima de tudo,  recompensando os artistas que lhes disponibilizam o seu trabalho de mão beijada.

Até que esse acordo seja alcançado, resta-nos a nós, fãs, pugnar pela sobrevivência da "nossa" música e, dentro das nossas possibilidades, ajudar os artistas que estiveram lá para nós, com a sua música, quando nós precisámos. E isso neste momento só é possível com o regresso aos formatos físicos, os únicos capazes de fechar o elo de ligação entre o artista e o ouvinte, agora mais do que nunca. Mas isso digo eu, que adoro o streaming, adoro os formatos físicos, e não vivo sem um nem o outro. Sei que estou precavido para o apocalipse nuclear que se avizinha. O apocalipse vai apagar todos os dados de todas as clouds e discos externos no planeta, eliminando toda a música das plataformas de streaming. Restarão os discos de vinil, os CDs e as cassetes. Como podem ver pela foto em cima, estou descansado.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Pablo Hasél e o direito a ofender

Olhando para o caso do rapper catalão, urge discutir a liberdade de expressão em Portugal


 Acho que não se está a dar a devida importância ao caso da prisão do rapper Pablo Hasél. Não me refiro necessariamente a manifestações de apoio ao catalão (as quais diria que têm sido tímidas em Portugal), mas sim à discussão aberta e aprofundada sobre um tema que nos diz respeito a todos – o direito a ofender. A liberdade de expressão ainda é um assunto tabu, o qual temos medo de abordar uma vez que no nosso país, já diz o povo, “o respeitinho é muito bonito”. Gostamos sempre de guardar as devidas distâncias sociais. Ora, existe o direito a ofender? A resposta não é simples. O caso de Hasél é interessante e não deveria ser uma questão de nicho, exclusiva de uma centena de nomes do espetáculo que fizeram uma petição online. A petição de solidariedade a Pablo Hasél (assinada por 4.5 mil pessoas) é um exercício demasiado unidimensional para um assunto tão complexo. Defende o texto que “os únicos crimes de Pablo Hasél (…) foram a denúncia da flagrante corrupção de uma monarquia cada vez menos legitimada democraticamente” e atira que “numa democracia, os artistas não são condenados a nove meses de prisão (…) por cantar e por escrever”. O problema é que podem. Podem em Espanha e podem até em Portugal. Mas já lá vamos.

Antes de mais, o contexto – Pablo Hasél, rapper catalão, foi condenado a nove meses de prisão efectiva por crimes de “ofensa à coroa” e “apologia do terrorismo”, devido ao que escreveu nas suas músicas e na sua conta de Twitter. Sim, os tweets foram a julgamento. Parece pueril, mas foi precisamente isto que aconteceu. Segundo o Guardian, a ofensa à coroa valeu-lhe uma elevada multa e a apologia do terrorismo, a pena de prisão efectiva. Como eu gosto de saber exactamente do que estamos a falar, fui à procura das famigeradas rimas que atiraram Pablo para a prisão. Créditos ao El Mundo pela antologia (fica aqui o link, onde também podem encontrar os tweets pelos quais ele foi julgado) e ao Google Translate pelas traduções do Catalão, depois adaptadas por mim (estou aberto a correcções):

  • "¡Merece que explote el coche de Patxi López!" – "O carro de Patxi López devia explodir!"
  • "No me da pena tu tiro en la nuca, pepero. Me da pena el que muere en una patera. No me da pena tu tiro en la nuca, socialisto" – "Não me importo que leves um tiro na nuca, pepero [membro do PP]. Sinto muito por quem morre numa patera [barcaça de emigrantes ilegais]. Não tenho pena de levares um tiro na nuca, socialista."
  • "Que alguien clave un piolet en la cabeza de José Bono" – "Que alguém enfie um machado na cabeça de José Bono."
  • "Pena de muerte ya a las Infantas patéticas, por gastarse nuestra pasta en operaciones de estética" – "Pena de morte já para as infantas patéticas, por gastarem o nosso dinheiro em operações de cosmética."
  • "En mi escuela pública había violencia y no era etarra sino de retratos de la monarquía encima de la pizarra" – "Na minha escola pública havia violência e não era da ETA, mas sim de retratos da monarquia no quadro."
  • "Prefiero grapos que guapos. Mi hermano entra en la sede del PP gritando ¡Gora ETA! A mí no me venden el cuento de quiénes son los malos, sólo pienso en matarlos" – "Prefiro grapos a meninos bonitos. O meu irmão entra na sede do PP e grita “Gora ETA!”. Eles não me vendem a história de quem são os bandidos, só penso em matá-los."
  • "Merece también un navajazo en el abdomen y colgarlo en una plaza" – "Merece também uma facada no abdómen e ser pendurado numa praça."
  • "Que li fotin una bomba, que revienten sus sesos y que sus cenizas las pongan en la puerta de la Paeria" – "Que lhe atirem uma bomba, expludam os seus miolos e coloquem as suas cinzas na porta da Paeria

Então o que é que temos aqui? Rimas desagradáveis? Check. Conteúdo ofensivo? Check. Ofensas à família real? Check. Referências abonatórias a terroristas? Check. Ameaças concretas à integridade física de alguém? Não me parece. Razão para prender um homem? De maneira nenhuma. Mas isso digo eu. Já a lei espanhola diz outra coisa.

Em Espanha, ofender a coroa é crime. É uma daquelas regalias centenárias da monarquia, um regime que, não se achando suficientemente ancorado no século XIX devido ao nepotismo, consegue superar-se com uma lei tão retrógrada que desafia a segunda emenda americana relativa às armas. A somar a isso, o passado traumático com a ETA ditou que a lei espanhola fizesse da humilhação de vítimas de terrorismo – um conceito tão perigosamente subjectivo –, uma apologia ao terrorismo e como tal, um crime punível com pena de prisão. Para o juíz que dissecou as letras das músicas e os tweets de Pablo Hasél, foi Checkmate.

Agora que já vimos que a liberdade de expressão está seriamente comprometida em Espanha, vamos ao caso português. Pedir a intervenção do Estado Português, como faz a petição referida em cima, quando a justiça do nosso país é ainda mais useira e vezeira neste tipo de sentenças, é risível. O Código Penal prevê um Capítulo inteiro de regime jurídico de crimes contra a honra, entre os artigos 180º e 189º, compreendendo as figuras de Difamação, Injúria e Calúnia. A somar, temos a cereja no topo do bolo que é o artigo 328º, que diz que "quem injuriar o Presidente da República (…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa". Um artigo que o inenarrável Cavaco adorava. Ou seja, andamos a aqui a maldizer a justiça espanhola e nós temos uma lei que é em tudo equivalente. A grande diferença entre Portugal e Espanha? É que os rappers daqui, pelo menos os que têm mais visibilidade, têm mais decoro. Mas mesmo esses são “capazes” (pun intended) de levar por tabela. Basta nos lembrarmos da estúpida polémica do videoclipe do Valete para o tema “BFF”.

Não tenho formação em Direito para vos explicar ao certo a abrangência legal das figuras jurídicas que elenquei em cima, mas elas estão no Código Penal para serem aplicadas e são-no com bastante frequência. Prova disso é que o Estado Português é um dos recordistas europeus no número de condenações por violação da liberdade de expressão no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Confusos? Eu explico. Enquanto o Código Penal português tem, como já vimos, um capítulo inteiro dedicado à defesa da honra individual, o TEDH toma esse direito como secundário em virtude da liberdade de expressão. Por isso sucede que muitos do que são condenados por estes crimes em Portugal recorrem para o tribunal europeu, que neste enquadramento jurídico anula as sentenças nacionais e obriga o Estado a indemnizar o condenado.

Portanto, temos aqui um caso interessante, em que a Europa evoluiu em direcção à liberdade de expressão, em contraciclo relativamente a alguns dos seus países membros, que por sua vez são obrigados a pagar somas substanciais a quem é condenado por crimes desta índole. E não sairemos disto enquanto os países se adaptarem. Ou em alternativa, saírem da União como o Reino Unido, e assim verem os seus tribunais soberanos novamente. Recordo que este foi um dos argumentos de quem defendia o Brexit. Se Portugal está no pelotão da frente da lista das indemnizações compensatórias, podemos concluir que temos também um longo caminho em direcção à liberdade de expressão.

E é por isso que, mais do que defender Pablo Hasél, me interessa fomentar esta discussão. Se chegaram até aqui, perceberam que a questão de fundo sobre a liberdade de expressão, mais do que de opinião, é de legislação, que me parece demasiado ancorada em conceitos de séculos passados. É urgente discutir este assunto à luz do século XXI e é urgente mudar a lei. A interpretação da lei é vaga, mas só deve limitar a nossa liberdade de expressão na estrita necessidade de defender valores inalienáveis. A violência que temos assistido nas ruas espanholas não devia estar associada a esta causa, uma vez que isso é, e deve continuar a ser, crime. Mas temo que os protestos nas ruas serão porventura a única maneira de chamar a atenção do país para esta discussão. “O respeitinho é muito bonito”, sim, mas a sociedade deveria ter mecanismos próprios – começando pela educação, que não me canso de referir ser o maior pilar da sociedade –, para se regular contra imbecis, sem ser preciso metê-los na cadeia por delito de opinião.

Bem sei que Hasél não é santinho nenhum. Para além da condenação por injúria à coroa, o rapper também levou uma sentença de dois anos e meia por ameaçar matar um homem num bar e outra de seis meses por atacar um jornalista em 2016. Relativamente a isto, não há nada a dizer. Não posso gritar “Libertem Pablo Hasél” ao som do “Soltem os Prisioneiros” dos Delfins, porque ele vai ter sempre que cumprir pena por estes crimes. Mas os nove meses de pena que levou por músicas que escreveu e tweets que publicou são absolutamente abomináveis para o senso comum e para a justiça também o deveriam ser. É nisto que assino o meu nome em defesa de Pablo Hasél. Pablo não levou estes nove meses por algo que fez; levou pelo que escreveu, cantou e tweetou. E se olham para as letras com nojo (o que é legítimo), convido-vos a olharem para o vosso histórico nas redes sociais; podem ter uma surpresa. Dir-me-ão que, ao defender Hasél, estou a dar voz a um imbecil. Ainda por cima a um imbecil que faz má música. Talvez. Mas que eu saiba, a imbecilidade não é crime. E a música má também não. Nada na música de Pablo Hasél me move em sua defesa, a não ser o seu direito em fazê-la. Esse, sim, é inalienável.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Pink Floyd: 48 anos do lado escuro da lua

"Everything under the sun is tune, but the sun is eclipsed by the moon"

“Sou louco há um caralhão de anos.” Começa assim o álbum mais consagrado dos Pink Floyd e provavelmente a marca mais conhecida da História do Rock, que faz hoje 48 anos de loucura. E o que é que eu posso escrever que ainda não foi dito sobre este disco que mudou tudo? Quem me conhece sabe que sou dado ao uso de superlativos e talvez seja essa a razão pela qual nunca tenha escrito nada sobre o “The Dark Side Of The Moon”. É que não há disco mais publicamente superlativado que este. Vejo-o como um filho mimado, que já tem atenção suficiente de toda a gente e que, como tal, não precisa das minhas loas em público. O que não quer dizer que não o faca em privado. Fui ver à minha base de dados do Discogs e tenho 17 cópias deste álbum em casa. Sim, leram bem, dezassete. E isto sem contar que a caixa Immersion tem 8 versões diferentes lá dentro (original, remix, surround, quadraphonic, ao vivo, demo, etc), ou que o álbum é reproduzido na íntegra no disco ao vivo “p·u·l·s·e”, do qual conto com 5 versões diferentes. Sou fã, já perceberam a ideia. Portanto, se nunca escrevi sobre o “Dark Side”, sendo alguém naturalmente de fácil superlativo, é porque temo entrar em tilt, ao procurar na língua portuguesa termos superlativíssimos (eu não disse?) para este álbum. Vou fazer aqui o melhor que posso.

Dizem os mais cépticos que a música não pode mudar o mundo. Mas como não, se a música muda a vida de tanta gente? A minha foi abanada várias vezes, em capítulos diferentes da minha existência, por discos que aterraram no meu mundo, sempre na hora certa. O primeiro terá sido “The Dark Side Of The Moon”. Em Castelo Branco, somos introduzidos ao álcool muito cedo. E cedo aprendi que era com grau de alcoolémia que melhor se apreciavam os Pink Floyd. Mas não foi assim que os comecei a ouvir, na tenra idade dos zero, quando o meu Pai tocava o “Dark Side”, ainda estava eu na barriga da minha Mãe. Talvez tenha sido por isso que fiquei com esta loucura. Ou então foi por causa daquele concerto de Veneza em 1989, com o palco na água e o público em gôndolas, que o meu Pai gravou em VHS (“numa noite de trovoada”, contará ele) e que eu via de olhos dilatados e imaginação no espaço, sempre que havia visitas lá em casa. Ou então foi por causa da chegada a casa daquele mágico CD do “The Division Bell” em 1994, que o meu Pai tocava todos os Domingos de manhã e que ficou tão ancorado no meu cérebro, que ainda hoje não passa uma semana em que não o ouça. Não foi, portanto, com o álcool que eu fui introduzido ao “Dark Side”. O disco já existia na minha vida. Mas quando eu tinha 15 anos e achava que já sabia tudo do Mundo (e na verdade sabia tão pouco), ouvi o “Dark Side” às escuras, catalisado por meia dúzia de médias e de repente, tudo fez sentido. Foi a primeira vez que eu “percebi” o Roger Waters e desde então que quando ele fala, eu ouço. Achei que ficara avisado para as armadilhas do Mundo que o tio Roger tão brilhantemente apontava. E olhem para mim hoje, 20 anos depois, a cair fatalmente em cada uma delas. 

Depois de ver o lado escuro da lua, nunca mais me calei com os Floyd. Fui para o Liceu contar a todos sobre a minha descoberta, mas sem grande sorte. Olhavam para mim como se eu estivesse a falar sobre uma seita esquisita e em defesa deles, era provavelmente com o mesmo ar de demência que eu me expressava. Com as miúdas então, nem vale a pena falar. O “Dark Side” não fazia muitos amigos. Até que numa festa de aniversário bastante “regada” (“vamos beber sumo”, dizia à minha Mãe), apanhei uma conversa de um grupo mais velho que estava a falar, imaginem, dos Pink Floyd. Wow. Afinal esta gente existe! As pupilas dos meus olhos dilataram imediatamente e finalmente pude jogar o meu futebol. Foi nessa conversa que ouvi uma interpretação do “On The Run” que, não sendo necessariamente verdade, é tao perfeita que nunca sequer pus em causa. A história reza assim: o tema tem um loop de sintetizador que evoca alguém a correr (o tema chama-se “On The Run”!); ouvem-se passos ofegantes, de alguém certamente atrasado para qualquer coisa; segue-se o anúncio de um aeroporto – “Tenham a vossa bagagem e passaporte prontos para os voos para Roma, Cairo e Lagos” – ah, ele está atrasado para o seu voo de férias; o indivíduo corre loucamente em direcção às portas do avião, na sua cabeça está o seu destino de sonho, a fuga do marasmo do seu quotidiano; ouve-se um riso insano – “Vivo para hoje, vou-me embora amanhã. Sou assim.”; a corrida continua, as portas já estão próximas; quando finalmente chega à porta de embarque, o avião já está a levantar; frustrado, fica ofegante a ver o seu sonho fugir; e eis que, depois de levantar, o avião que perdera por um triz explode diante dos seus olhos. Tau! “Manda vir mais uma rodada de médias!”, disse o João Francisco. Afinal, às vezes o sonho pode ser o nosso maior pesadelo. E às vezes é uma bênção quando não conseguimos o que queremos. Já todos passámos por isto.

Por isso é que “The Dark Side Of The Moon” é tão universal – porque nos diz respeito a todos. Porque as armadilhas dos sonhos, do tempo, do dinheiro, do nomadismo, do conflito e, em última instância, da morte, são comuns a todos nós. Somos consumidos pelo que temos, pelo que queremos e pelo que perdemos. Nascemos, trabalhamos e morremos. Qual o sentido da vida? Faz sentido ter medo da morte? Vivemos para alimentar as nossas próprias prisões – a carreira, a prestação do carro e da casa e as pressões do status quo. Por isso é que o “Dark Side” – um ensaio sobre a loucura e o stress induzido pela vida na nossa sociedade ocidental – faz ainda mais sentido hoje do que fazia nos anos 70. Não há discos perfeitos. Mas o mais perfeito de todos os discos é “The Dark Side Of The Moon”. Acho que não há maior ou melhor superlativo que este.

Fiquem em baixo com a performance ao vivo em Wembley do álbum na íntegra (uma das versões incluídas na caixa referida em cima). “Vemo-nos no lado escuro da lua”.

 “O lado escuro da lua não existe, na verdade é tudo escuro.”