sexta-feira, 21 de outubro de 2016

David Bowie desafiou os limites até ao fim

As últimas faixas gravadas nas sessões de "Blackstar" estão aqui. Será que valem a pena?


As últimas três faixas que faltavam ouvir das Blackstar Sessions chegaram. Dão pelo nome de "No Plan, "When I Met You" e"Killing A Little Time"e estão a partir de hoje disponíveis na banda sonora do musical off-Broadway de David Bowie."Killing A Little Time" é a mais fascinante e mind-bending das três canções e, como sempre acontece quando se fala de Bowie (principalmente na sua fase pós-milénio), é impossível de categorizar. Bowie atingiu um estado de tal aristocracia sónica desde a viragem do primeiro dígito do calendário, que parece controlar as ondas com uma batuta só dele. Para ser simplista, isto não se parece com nada que já ouvimos antes e no entanto, tem elementos de tudo um pouco.

Sabem quando abrimos várias janelas no Youtube e elas começam inadvertidamente a tocar ao mesmo tempo, criando um ruído indecifrável? Não raras vezes, "Killing A Little Time" parece-se exactamente com isso. Esqueçam os tempos do rock progressivo, em que se colavam sequencialmente vários temas com andamentos diferentes (Bowie fê-lo com mestria em "Station To Station") e assim se criava uma obra complexa. Tempos idos. Bowie inventou agora um novo método: a colagem simultânea. Há uma guitarra a tocar um riff metal à frente, temos um baterista lá atrás a fazer a cena dele, temos um Bowie a mandar versos fora dos lugares comuns, de vez em quando aparecem uns saxofones perdidos e ainda há um piano nervoso, a tocar ora à frente, ora atrás na mistura, como um balão que se esvazia caótico, enquanto embate nos quatro cantos da sala. Parecem três músicas diferentes a tocar ao mesmo tempo, às vezes de forma confusa, às vezes num casamento inesperadamente perfeito. Deixa-nos confusos, mas no fim, resulta. Como diz a inviolável sabedoria popular, primeiro estranha-se e depois entranha-se.

Ouvir "Killing A Little Time" recordou-me a sensação da primeira vez que ouvi "Blackstar", ainda antes da morte de Bowie. Estava no carro, a ouvir a Radar no regresso a casa e enquanto fazia a descida de Monsanto na A5, telefona-me o meu chefe, provavelmente estacionado poucos metros à frente ou atrás no mesmo engarrafamento: "Nuno, estás a ouvir isto?! O Bowie passou-se de vez!". Depois de largos minutos a processar o que acabara de ouvir, só pude concordar. É engraçado que "onde estava a primeira vez que ouvi Blackstar" pode ser o novo "onde estava quando os aviões embateram nas torres gémeas" dos melómanos (ou, para a geração mais velha, "onde estava no 25 de Abril"). Mas divago.

As outras duas faixas chamam-se "No Plan" e "When I Met You". "No Plan" é um óbvio out-take de "Blackstar", perfeitamente enquadrado na lírica, temática e sonoridade do álbum. "When I Met You" é bem mais interessante: perigoso e cortante, soa a algo saído de "Scary Monsters". Não é bem o mood de "Blackstar", mas é uma das melhores faixas das últimas sessões de gravação de Bowie e prova uma coisa: David Bowie desafiou os limites até ao fim. Só podemos imaginar até onde os poderia esticar ainda mais.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Nenhuma mulher pode amar um homem que ouve Phil Collins

Mas pode Phil voltar a amar-se a si mesmo?



O título da crónica é uma citação de "Sing Street", um dos meus filmes preferidos deste ano. Como fã de Phil Collins e dos Genesis, desmanchei-me a rir com esta fala do filme e adoptei-a como uma possível explicação para a minha própria turbulenta vida amorosa. Talvez o facto de amar o Phil Collins justifique o meu fado com o sexo oposto, não sei; mas sei que Phil deixou de se amar a ele própio há muito tempo, por não aguentar ser sujeito a décadas deste tipo de enxovalho. E que isso quase acabou com ele.

No dia em que foi anunciado o seu regresso aos espectáculos, a crónica que escrevi aqui em Janeiro sobre a necessária reapreciação do seu valor faz mais sentido que nunca. Independentemente do passado, sobra-me dizer mais umas coisas sobre o Phil e a sua nova digressão.

Vi a conferência de imprensa do anúncio da digressão em directo. Deu-me pena. Adoro o Phil. Para mim, o Phil é família; é como um tio não muito afastado que esteve sempre "ali". É difícil vê-lo tão fisicamente e animicamente acabado, um farrapo cheio de ressentimentos (confessou que reatou com a última mulher, mas que esta "não lhe devolveu o dinheiro que lhe tirou") e uma sombra do poço de vida que já foi.

Phil sempre teve muita dificuldade em lidar com a visão que o mundo tinha dele. Primeiro, quando o elevaram a superestrela depois de ter feito um álbum intimista e silencioso sobre o seu próprio divórcio. Depois, quando o atiraram para objecto de anedotas por ter continuado a fazer o que sempre fizera. Phil não conseguiu lidar com a dinâmica da opinião pública e como primeira defesa, isolou-se. Sem perceber que os Genesis eram a entidade que em última instância o protegia, enxotou-os após uma passagem triunfal por Knebworth em 1992 (sempre Knebworth como cemitério) e quando a Britpop estoirou, a sua imprensa só piorou. A defesa de Phil foi isolar-se ainda mais e avançar para uma reforma prematura, retirando-se da música agastado, surdo e sociologicamente queimado.

Quando voltou para casa para ser um pai a tempo inteiro, Phil foi recebido com o embate de um camião TIR. A mulher pediu-lhe o divórcio e com ela levou os filhos e o dinheiro. Phil ficou sozinho, agora sim, completamente isolado. Seguiram-se anos de depressão, alcoolismo solitário no sofá a olhar para a televisão e conversas com a linha de suicídio. Até Peter Gabriel teve que intervir na situação, para salvar o seu amigo Phil.

Eventualmente, Phil Collins começou a trepar lentamente para fora do buraco em 2014. A sua ex-mulher aceitou-o de volta (ficando com o dinheiro, como ele próprio sublinhou), Phil voltou a poder estar com os filhos e chegámos ao dia de hoje, em que ele anuncia uma digressão. Phil volta para um punhado de espectáculos a solo no Royal Albert Hall, em Colónia (terra santa para os Genesis, deuses eternos das Alemanhas) e em Paris.

Mas pela enésima vez, desde que despachou os Genesis em Knebworth, Phil volta a tomar a decisão errada, ignorando aquilo que realmente o protege: o chapéu-de-chuva dos Genesis.
O que Phil deveria ter feito era simples: telefonava aos seus (verdadeiros) amigos Mike Rutherford e Tony Banks, deixava-os tratar de tudo e limitava-se a sentar-se num banco à frente do palco, a cantar as músicas dos Genesis para gáudio de milhares de pessoas que desesperam para o ver (eu! eu! eu!) interpretar aquelas canções. Acontecesse o que acontecesse, Phil teria sempre o apoio de Tony, Mike e da máquina dos Genesis. Assim, volta à estrada por sua conta e risco, vulnerável a tudo o que lhe possa cair em cima.

Dito isto, toda a sorte do mundo para o Phil. Espero mesmo que ele derrote os seus fantasmas e que aprenda a voltar a amar-se a si mesmo. Aconteça o que acontecer, Phil, I will always love you. E cá estarei para defender o teu legado.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Os tempos, eles estão a-mudar

E às vezes para melhor: rejubilemos, Bob Dylan é o Nobel da Literatura. 


Não vou fingir o contrário: o Nobel da Literatura deste ano foi uma enorme surpresa. E das boas.
É a primeira vez que um poeta da música é reconhecido com este galardão e, que júbilo, já não era sem tempo. Apesar do impacto social dos escritores de canções ser indiscutivelmente maior que a esmagadora maioria dos receptores habituais deste prémio (e com uma longevidade de mais de meio século), os músicos sempre foram olhados de soslaio pela crítica literária. A verdade é que houve mais gente a ler e a ouvir os poemas de Bob Dylan, do que todos os outros prémios Nobel juntos. Há casos e casos, é certo, mas o caso de Dylan é inatacável.

A literatura é apenas uma das dimensões do espaço vectorial onde Bob Dylan opera. Dylan foi um homem que revolucionou a música popular, ora como diário confessional, ora como instrumento de intervenção. Nada foi igual depois da sua afirmação com "The Freewheelin' Bob Dylan" em 1963. Ao contrário da natureza estritamente lúdica da música popular que aparecia nas tabelas de então, as canções de Dylan incorporavam um peso intelectual que atraía uma audiência mais sofisticada, gente que ouvia música sentada em sofás enquanto fumava substâncias nem-sempre-legais e dissertava sobre o sentido da vida e o peso da existência. Dylan não valia só pela música, valia também pela poesia e pela mensagem.

Bob Dylan mudou tudo e é a ele que devemos uma quantidade astronómica da nossa música preferida, mesmo a que não foi composta por ele. Nem os Beatles seriam quem nós conhecemos hoje se não fosse Dylan. Foi ele quem convenceu John Lennon a deixar os "I love you"s e a dar outra profundidade e realidade à sua música, isto depois de lhe apresentar o charro.

Como melómano, alguém cuja vida foi conduzida pela música que ouvia, sinto que este Nobel é também um bocadinho meu. Em 2016, já escrevi uma série de textos de homenagem porque a morte dos respectivos artistas assim me obrigou (Bowie, Prince, Frey, já estava farto). Felizmente, posso fazer o louvor a Dylan enquanto ele ainda cá está. Ainda bem que a Academia também teve essa coragem.

Dylan anunciava em 1964 que os tempos, eles estavam a-mudar. Em 2016, eles estão a-mudar mais ferozmente que nunca e é por isso que importa que se reconheçam os génios e se separe o trigo do joio no meio de todo este ruído da tecnologia e das redes sociais. Este Nobel é totalmente merecido e vem no momento certo. Muito bem, Academia.

Agora falta o Lobo Antunes. E já agora, o Bruce Springsteen.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Vamos lá falar nos Bon Jovi

Os Bon Jovi têm um tema novo. E é mau que dói.


Não, esta não é mais uma crónica a desancar nos Bon Jovi como uma banda foleira, kitsch, ou outro chavão qualquer que se habituaram a ler na imprensa. Nem eu me atreveria a tal heresia, por dois motivos: em primeiro lugar, porque tenho amor à vida e não me quero meter com os fãs portugueses da banda, que são em tal número (58.5 mil no Facebook!) que em jogos de Champions mal cabiam no Estádio da Luz e tão poderosos que em 2011 obrigaram a Zon / Nos a retirar um anúncio do ar; em segundo, porque isso simplesmente não é verdade. Ao contrário do que vos fizeram crer, Bon Jovi rocks. Sim, é música despretensiosa, invariável e despida de múltiplas layers de interpretação. Mas e depois? It's a lot of fun. Cantar o refrão de "Livin' On A Prayer" a plenos pulmões não é só um cliché do Plateau: é terapêutico.

Não tenho problema nenhum com o Hair Metal. Da mesma forma que gosto de deprimir com uns Joy Division, também preciso do hedonismo stripper de um "Pour Some Sugar On Me", ou da simples pieguice de um "Love Bites". E por que não? Até os (sobreviventes) JD precisaram de sair da penumbra e formaram os New Order. Não andei no liceu na época, por isso sou imune aos preconceitos do status quo de então, olho para tudo com maior distância emocional. Aliás, toda a gente parece divertir-se tanto com as suas fartas permanentes nos videoclips dos anos 80, que não raramente eu fantasio em fazer uma, se tal fosse socialmente aceitável em 2016. Mas divago. Voltemos aos Bon Jovi.

De banda de proa de Hair Metal e ídolos Pop dos anos 80, os Bon Jovi metamorfosearam-se em standards clean dos 90s, munidos de Ray-Bans, cabelo liso (lá se foi a permanente) e vídeos em tons de sépia. Nesta transformação, os Bon Jovi mantiveram-se sempre os Bon Jovi, cool à sua maneira suburbana, sempre a tentar rescrever a mesma música, uma e outra vez, sem nunca venderem a sua sonoridade à moda vigente. E o mundo continuou a amá-los por isso. Eu pelo menos continuei.

Depois vieram os 00s e os Bon Jovi conseguiram a proeza de voltar aos liceus com "It's My Life" (desta vez quem lá andava era eu) - adivinhem como - ao continuarem a ser os Bon Jovi. "It's My Life" era uma cópia de "Livin' On A Prayer", mas era isso mesmo que o público queria. Havia diferenças: desta vez o vídeo começava com um jovem a escrever um e-mail (o advento da internet!) e, claro está, já não havia permanentes no cabelo (tirando o teclista David Bryan, que se manteve como o bastião Hair Metal da banda). De resto, a receita foi a mesma de sempre. O que me leva até ao dia de hoje, quando ouvi o novo single da banda de New Jersey, "Born Again Tomorrow". Parece que os Bon Jovi decidiram, finalmente, inovar. E o resultado é trágico.

O primeiro single do novo álbum "This House Is Not For Sale", com o mesmo nome, foi lançado em Agosto e era Bon Jovi em piloto automático. Tudo na mesma, parecia apenas um pretexto para voltar às digressões. "Born Again Tomorrow" mostra uns Bon Jovi diferentes; diferentes, na medida em que me pela primeira vez me apeteceu cravar uma lapiseira nos ouvidos ao ouvir Bon Jovi.

Em "Born Again Tomorrow", Jon Bon Jovi decidiu "modernizar" a sonoridade da banda, que é o mesmo que dizer que decidiu que a banda devia soar igual a tudo o resto que passa na rádio. Por outras palavras, decidiu Coldplayzar os Bon Jovi. Há ali a meio um solo de guitarra de 10 segundos que soa mais ou menos a Bon Jovi, mas de resto, aquilo soa tanto a Coldplay que parece que a qualquer momento vai sair um "'cos you're a skaaaay, 'cos you're a skaaaay". Até dói.

Jon Bon Jovi parece perdido desde que o guitarrista da banda Richie Sambora se foi embora em 2013. Pelos vistos, Richie era a alma da banda e tinha um papel muito mais importante do que poderíamos pensar (e sempre teve bom gosto). O que se passa com Jon? O desespero para voltar aos liceus é assim tão grande? Será que o convenceram que para tocar na RFM, é preciso soar como a toda a trampa que lá passa? Um dia Jon disse que a diferença entre tocar em arenas e em estádios era um "hit single". Mas isso foi há duas décadas. Os anos provaram que os Bon Jovi não precisam disto para encher as grandes salas, até porque nos estádios ninguém quer ouvir as músicas novas. Querem os clássicos de peito cheio, querem o Richie de volta (por favor) e querem os Bon Jovi iguais ao de sempre. Até porque, se a inovação é isto, mais vale estarem quietos.