sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Quero tudo e quero tudo agora: os Queen lançam caixa de luxo de “The Miracle”


Quando soube que os Queen iam lançar uma box de luxo do álbum "The Miracle", a minha reação foi de estupefação — “A sério, o "The Miracle"? Qual é que vão fazer a seguir, o "Flash Gordon"?”. Não é segredo que não morro de amores pelo antepenúltimo disco dos Queen, mas como fã incurável que sou, já tinha a box nas mãos no primeiro dia. O meu veredicto final não podia estar mais longe da impressão inicial. Este é o melhor lançamento de arquivo dos Queen desde, pelo menos, 2014, quando saiu “Live At The Rainbow”.

Independentemente da (falta de) inspiração do álbum, “The Miracle” é um disco importante na história dos Queen. Ao mesmo tempo que a banda tentava fazer um comeback portentoso — não foi por acaso que o single de avanço foi o roqueiro “I Want It All” —, por esta altura, circa 1987, os Queen já sabiam da condição de Freddie, por isso o disco começa a ter um feeling de despedida. A colocação de “Was It All Worth It?” no fim do disco também não é inocente. Este feeling seria muito mais acentuado nas sessões subsequentes, que deram origem a “Innuendo” e “Made In Heaven”. O estado de espírito de “The Miracle” é ainda muito mais optimista, desde a abertura com "Party", até ao tema-título "The Miracle".

A escolha deste disco para uma edição de luxo é enigmática, por não ser (de todo) um dos melhores discos dos Queen, mas por outro lado essa é precisamente a razão que torna a reavaliação de “The Miracle” mais premente. Será assim tão mau como a fama que carrega? Esta caixa confirma que não.

Para esta edição de luxo, os Queen foram à master digital restaurar a versão original de "The Miracle", que tinha “Too Much Love Will Kill You” no Lado A, entre "I Want It All" e "The Invisible Man". O tema ficou envolto em disputas de royalties que não foram resolvidas antes do lançamento do disco, e como tal, só veria a luz do dia no álbum a solo de Brian May, “Back To The Light”, em 1992. A versão das sessões de “The Miracle” só apareceria mais tarde, no disco póstumo dos Queen, “Made In Heaven”, em 1995. Devido ao facto de ser uma master digital, não podemos esperar grandes melhorias nesta nova tiragem em vinil, mas fica restituída a verdade do álbum.

A origem digital do álbum, que foi gravado praticamente por inteiro numa consola digital, e com uso excessivo de instrumentação electrónica, é um dos sintomas que explicam a tepidez e a falta de alma em "The Miracle". Como se explica o abuso da electrónica, especialmente quando se tem executantes tão virtuosos numa banda como os Queen? O factor humano é providencial na sonoridade dos Queen e isso fica provado no segundo disco da caixa, "The Miracle Sessions" — a jóia da coroa desta edição —, que mostra Freddie, Brian, Roger e John em estúdio, livres e soltos, a tocarem as suas partes nos respectivos instrumentos. Estes foram, em muitos casos, substituídos mais tarde por sintetizadores. À falta de versões ao vivo destas canções (não houve digressão devido à condição de Freddie), "The Miracle Sessions" mostra-nos como soariam estes temas caso os Queen tivessem levado o álbum para a estrada.

"The Miracle Sessions" é então dividido em duas partes, começando com uma versão alternativa do álbum, constituída por uma amálgama de demos, takes alternativos e ensaios de estúdio, colados com diálogo para dar uma sensação de continuidade. É uma experiência alternativa ao álbum original que, como referi em cima, é o mais próximo que alguma vez estaremos de ouvir as canções de "The Miracle" ao vivo. E é uma maravilha. Mesmo faixas absolutamente amorfas como "Party" e "Rain Must Fall" ganham nova vida nestas versões com instrumentação humana. É a primeira vez que ouvimos "Breakthru", de longe o melhor tema de The Miracle, com bateria e baixo verdadeiros. Este disco confirma também que "Breakthru" é na verdade uma colagem com outro tema, "When Love Breaks Up", que ouvimos aqui pela primeira vez.

Como seria de esperar, as melhores músicas da iteração final do álbum são as melhores músicas dos ensaios. "Scandal" soa por isso gloriosamente na sua versão despida em estúdio. O ensaio de "I Want It All" bate ainda mais forte que a versão final e é delicioso ouvir Freddie a deixar escapar um “shit!” quando entra cedo demais em "I Want It All". Freddie volta a antecipar-se em "Rain Must Fall", mas desta vez consegue segurar o vernáculo. "The Invisible Man" é aqui a demo original de Roger, que já conhecíamos da edição deluxe de 2011, mas agora com um take alternativo e estendido do solo de guitarra de Brian May no fim.

A segunda parte de "The Miracle Sessions" desvenda uma antologia de canções, (supostamente) completamente novas, gravadas nas sessões de "The Miracle". Supostamente porque temas como "Dog With A Bone", "I Guess We’re Falling Out", e o mais recente single "Face it Alone" já eram conhecidos dos fãs que frequentavam as convenções dos Queen desde há décadas. Confesso que esperava que a escolha para o tema de promoção a esta box recaísse sobre "I Guess We’re Falling Out", uma música muito mais radiofónica e representativa do material mais upbeat das sessões de "The Miracle" — em oposição a "Face It Alone", que captura melhor o mood mais sombrio de "Innuendo". O facto é que "Falling Out" requeria gravações adicionais devido aos nananas de Freddie, que revelam que a lírica não estava terminada (e que explica por que não foi utilizado em "Made In Heaven").

Não é certa a extensão da recauchutagem em estúdio de "Face It Alone" (há ali pelo menos uma correção de tom na faixa vocal de Freddie) a quanto foi tratado, mas tendo em conta o resultado minimalista, não me parece que Brian e Roger tenham mexido muito com as gravações originais. E este até é um exemplo em que um solo a rasgar de Brian May poderia elevar a canção para outro nível. "Face It Alone" nao é o melhor tema "perdido" interpretado por Freddie Mercury (esse continua a ser "It's In Everyone Of Us" de David Pomeranz, a última performance ao vivo na vida de Freddie), mas em todo o caso, é sempre bom ouvir música "nova" de Freddie Mercury. Nem que fosse a cantar o "Malhão".

"Dog With A Bone" é mais uma sessão de improviso do que uma canção, mas serve para nos relembrar da versatilidade e poder absurdos da voz de Roger Taylor. Só mesmo nos Queen é que alguém com este talento pode ser "só" o baterista. "Water" e "You Know You Belong To Me" são, estas sim, composições completamente novas e desconhecidas de Brian May, e eu só me pergunto se ele se esqueceu da existência destes temas. Nunca mais apareceram em discos dos Queen, ou sequer a solo.

O terceiro disco da caixa, "Miracumentals" (a sério, Brian? Não era melhor, sei lá, Instrumiracles? Ok, é igualmente mau), é outra revelação — um disco de versões instrumentais que revela pequenos detalhes, como por exemplo as harmonias na introdução de "Breakthru", as quais parecem retiradas de um tema do álbum “Barcelona”, que Freddie produziu na mesma altura que “The Miracle”. É um disco óptimo para fazer karaoke.

O set inclui ainda material vídeo em BluRay e DVD, que reúne os clipes de "The Miracle" e os respectivos making-ofs. Mais importante ainda, é possível escolher as misturas surround dos singles, que foram criadas há 20 anos para o DVD "Greatest Video Hits 2", bem como os respectivos comentários de Brian e Roger, também gravados para esse DVD. É pena que o resto do álbum não tenha sido misturado em surround.

A box de “The Miracle” é, de longe, o melhor produto a sair da esfera dos Queen nos últimos anos. Tem que ser o novo barómetro para os próximos lançamentos. E se a nova regra do Dr Brian May for lançar versões expandidas dos álbuns menos bem conotados dos Queen, que venha daí uma caixa de luxo do "Hot Space". Nenhum outro disco dos Queen precisa tanto de uma reavaliação como esta corajosa e transgressiva incursão pela Gay Disco no início dos anos 80.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Bono ao vivo no London Palladium: a música despida dos U2 num espetáculo intimista

Os últimos dez anos não foram simpáticos para Bono. Desde o fim da tremendamente bem sucedida 360º Tour (que pudemos ver em Coimbra), que parece que os U2 só sabem dar passos em falso. Primeiro, foi o infame lançamento de “Songs Of Innocence”, forçado a todos os utilizadores da Apple no mundo. Quando estalou a (absolutamente exagerada) polémica que, sublinhe-se, só aconteceu porque eram os U2, Bono fez pior ainda — pediu desculpa. Ora, o que podia ser visto como uma acção de promoção punk e transgressiva (que o foi), de repente esvaiu-se num pedido de desculpas envergonhado. Menos cool que isto era impossível. O disco, bem melhor do que lhe dão crédito, merecia mais. Mas como as coisas podem ficar sempre pior, depois veio o abominável “Songs Of Experience”, onde os U2 tentaram ser os Coldplay, vendendo a sua sonoridade a qualquer preço em busca do sucesso nas tabelas. Não o tiveram. Sem surpresa, SoE falhou, num tiro importante no porta-aviões dos U2, que os fez repensar a direcção que a banda tomava. Já lá vão cinco anos desde o mais recente disco dos U2. O que não quer dizer que os irlandeses estejam parados.

À semelhança do que têm feito outras estrelas Rock nos últimos anos (o isolamento na pandemia ajudou a tal), Bono escreveu uma autobiografia, a qual saiu no início deste mês. E à semelhança do que fez Bruce Springsteen quando lançou o seu livro, Bono decidiu apresentar “Surrender: 40 Songs, One Story” num espectáculo que é, efectivamente, uma peça de teatro sobre a sua vida, com a sua música, e interpretada por si. Esta receita pode soar um exercício de extrema auto-indulgência, especialmente quando falamos de Bono (o próprio admitiu-o), mas pincelada com a dose certa de ironia e humor auto-depreciativo, tornou-se na melhor coisa que o vocalista dos U2 fez desde, sei lá, o dueto com Luciano Pavarotti em 1995. Mas mais sobre isso daqui a pouco.

Serve esta longa introdução para vos dizer que, esta quarta-feira, 16 de novembro, fui ver o Bono apresentar o seu espetáculo “Stories Of Surrender” ao Palladium, no bairro de Soho, em Londres (ou como disse Bono “trocar o estádio pelo Palladium, para estar a solo em Soho”), e foi dos melhores shows que eu já vi na vida. Um Bono On Broadway, mas em West End, com um twist. Vamos por partes.

Ainda antes de começar, percebia-se que a noite ia ser especial. Três filas atrás de mim, sentou-se Noel Gallagher, que entrou na plateia para uma ovação de pé do público, que ele reagiu com um rasgado sorriso e um punho em riste (o Noel adora a atenção). Umas seis ou sete filas à minha frente, sentou-se Bob Geldof, mentor do Live Aid, que Bono saudou diretamente mais tarde no espectáculo, como o homem que lhe ensinou a “nunca aceitar um não como resposta”. Ao meu lado estava também Sadiq Khan, presidente da Câmara de Londres. E Bono ainda identificou Paul McGuinness, histórico manager dos U2.

No palco, o cenário não podia ser mais diferente do habitual banquete de adereços visuais dos U2 — apenas um violoncelo, uma harpa (!), um set de percussão e um laptop para os eventuais efeitos sonoros do espectáculo. E só. As canções foram despidas ao ponto de serem quase irreconhecíveis da sua forma original, e com isto pudemos testemunhar a humanidade, honestidade e proximidade da música dos U2, normalmente habituadas aos grandes palcos, mas tanta vezes diluída na megalomania das apresentações ao vivo. Nunca ninguém ouvira estas canções assim, por isso Bono teve que ir lá dentro, ao coração da música, buscar a alma e a razão que estiveram na sua origem, para as interpretações mais viscerais da sua música.

O cenário no palco era completado por uma mesa, quatro cadeiras (o mesmo número de elementos dos U2) e duas poltronas, onde Bono interpretou cenas chave da sua vida, fazendo o papel de si mesmo e de todos os outros intervenientes. Com direito a vozes e tudo. Ouvimos representações de Pavarotti, da Princesa Diana, dos quatro membros dos U2, e mais importantemente, da sua mulher Alison e do seu Pai Brendan Hewson.

Creio que a maioria do público se sentou no Palladium à espera de um espetáculo que mostrasse as canções dos U2 e a história da sua génese. Não foi bem isso que aconteceu. Essas estórias fizeram parte do show, com a criação de “I Will Follow” e “Sunday Bloody Sunday” à cabeça, mas estiveram longe de ser a parte mais importante da noite. Por falar em “Sunday Bloody Sunday”, quando Bono começou a cantar o refrão, praticamente a capella, o público juntou-se em uníssono. Era a força do hábito, do hábito dos estádios. Mas não era uma dessas noites. Com um gesto preciso e enfático, mostrando a sua indelével capacidade para dominar uma audiência, Bono acenou para baixo, como quem manda baixar o volume e mais ninguém cantou, mais ninguém se ouviu na sala. Pelo menos até “Pride (In The Name Of Love)”, quando Bono fez o mesmo gesto, mas desta feita para cima, como quem agora levanta o volume, e a audiência imediatamente anuiu, juntando-se-lhe a gritar “in the naaaaaaaame of loooove, one man in the name of love”. Podia ser este o nome do livro e do espectáculo. “Pride” foi a primeira vez que Bono recebeu um (tímido) elogio do seu Pai, com quem manteve até ao fim uma relação difícil e distante — ou apenas irlandesa —, e que nunca se deixou impressionar pelos milhões de fãs que o filho atraía. Bono desesperava pela aprovação do Pai e foi nessa busca incessante de atenção que conseguiu outro objectivo “menor” — a adulação de milhões de seguidores… Mas nunca do próprio Pai, quem ele mais desejava.

Bono começou por apresentar o espetáculo desta forma: “A história de como a minha mulher Alison me salvou de mim mesmo”. A música foi sempre o fio condutor e o elo de ligação entre todas as estórias, mas foi mesmo a história de como ele perseguiu a aprovação do seu Pai que roubou o coração do espetáculo. Um irlandês rijo e tradicional, Brendan Hewson não queria nem ouvir falar da família real britânica, isto até a Princesa Diana lhe aparecer à frente e em 8 segundos, séculos de dor geracional acumulada contra a realeza são dissolvidos, com apenas um sorriso da Lady Di. Relembro que Bono reproduz estas cenas com as vozes e os trejeitos de cada um dos intervenientes e é hilariante. Bono senta-se na poltrona a falar com o seu Pai em diferentes fases da sua vida, até ao momento em que Bono testemunha os últimos momentos do velho Hewson a lutar contra um cancro que o atirou para uma cama de um hospital. As penúltimas palavras do Pai de Bono foram: “Leva-me para fora daqui, quero ir para casa!”. Brendan murmurou qualquer coisa que Bono não percebeu, e quando este se aproximou para tentar ouvir, o seu Pai gritou “FUCK OFF!”. Foram as suas últimas palavras. Neste momento, eu estou no meu lugar já desfeito em lágrimas, sem conseguir controlar um choro copioso devido à inimaginável dor que deve ser ver um Pai naquele sofrimento. Bono disse que gosta de pensar que o seu Pai, nas últimas palavras, mandou foder toda a bagagem de dor que acumulou na sua vida. Eu queria ter-lhe dito que acho que ele mandou foder a morte. Que nunca se deu como rendido e mesmo quando estava prestes a ser derrotado, a última palavra que lhe ocorreu foi de resistência.

Bono terminou o espetáculo, já com o público lavado em lágrimas (bem, pelo menos eu estava), com uma interpretação emocional de “Torna A Surriento”, uma das melodias favoritas do Pai, que foi interpretado pelo cantor favorito de Bono— Luciano Pavarotti —, segundo ele, a melhor voz que alguma vez existiu no planeta Terra. A segunda vez que Bono impressionou o Pai foi quando o levou a conhecer Pavarotti — “algum cantor a sério tem que fazer companhia ao Luciano”, aludindo ao facto que ele sim, era um tenor, e Bono não. Mas quando o seu Pai morreu, diz Bono, um milagre aconteceu e ele começou a cantar como um tenor. Foi a herança que o velho Hewson lhe deixou.

Com a sua autobiografia sincera e este espetáculo intimista, Bono desceu do seu Olimpo de Rock Star e voltou a humanizar-se. No palco nu do Palladium, Bono não se podia esconder atrás de plataformas rotativas, fatos com lasers, ou limões espelhados gigantes. Para contar e cantar a sua história, teve por isso que ir buscar dentro de si o que fez dele um cantor e um comunicador de excelência. E provou que ainda mantém intactos todos os dons que o levaram até aqui. Foi maravilhoso. Fiz as pazes com o Bono e com a música dos U2 e estou já preparado para o próximo disco.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

“Only The Strong Survive”: o projecto de vaidade que fecha o ano horrível de Bruce Springsteen


Sou fã do Bruce Springsteen desde que o meu Pai trouxe para casa um CD de capa branca, com um homem de guitarra às costas, tinha eu 9 anos. Desde que fui introduzido com o “Greatest Hits”, que tive a minha vida preenchida e aumentada pela música do Bruce. Entre o meu velhinho blogue e as publicações da NiT, já escrevi mais de 30 textos sobre o Boss, todos elogiosos para com a sua música. Num artigo escrito há 3 anos, conto o episódio de quando o conheci pessoalmente e pude atestar que ele era tão cool como eu imaginava. Acrescentei na altura que Bruce “é muito mais do que um mero herói. Os heróis têm uma vida finita e perfeita. Vivem durante um filme, um livro, uma música. Bruce é real, com todas as imperfeições que tal encerra e que constroem um personagem muito mais complexo”. Eu gosto de ver os meus heróis sob a lupa dos seus defeitos (não há nenhum que não os tenha), de modo a humanizá-los. Porque todos os heróis cometem erros e Bruce acumulou muitos no último ano. E o pior de tudo, é que eu acho que ele nem sequer sabe que errou.

As coisas até começaram a prometer com o anúncio da digressão europeia da E Street Band, a primeira desde 2017; e possivelmente a última, tendo em conta que Bruce já leva 73 anos e os shows da banda são célebres pela energia eletrizante e pela duração acima das 3 horas. A bolha de entusiasmo rebentou rapidamente com o escândalo da venda de bilhetes para a digressão americana (que eu vou explicar com mais detalhe em baixo) e, como as coisas podem ficar sempre piores, agora chega-nos um álbum de covers Soul absolutamente insípido, que na melhor das hipóteses nos diz que Bruce entrou na sua fase Rod Stewart — artisticamente vazio e remetido a uma carreira de cantor de karaoke — e na pior, nos sugere que Bruce está na sua fase Madonna — completamente alienado do mundo real.

Vamos por partes. Antes de nos focarmos no novo disco, puxemos um meses para trás, até ao escândalo do “preço dinâmico” dos bilhetes na digressão americana. Para quem não sabe, o esquema de preço dinâmico segue a mesma lógica que se usa nos hotéis e nas viagens de avião, isto é, uma procura elevada no sistema dispara o preço dos bilhetes. Apesar do esquema ter sido anunciado, os fãs, fiéis e alheios a esta nova forma de extorsão, mobilizaram-se de cartão de crédito em punho à hora do início da venda de bilhetes, como sempre o fizeram no passado. O resultado foi catastrófico. Com o sistema entupido em poucos minutos, os preços das entradas para a plateia dispararam para a ordem dos 5 mil dólares. Até os lugares longe do palco não se conseguiam comprar por menos de 500 dólares.

É verdade que este sistema não é original, os Rolling Stones já faziam isto, mas os Stones nunca chamaram a si um pedestal moral, do qual Bruce sempre se valeu, por exemplo, nas suas posições políticas. Os bilhetes venderam-se, como sempre, mas não todos. Pela primeira vez, Springsteen vai entrar numa digressão que à partida não está esgotada. Além desta efeméride, o resultado prático da manobra foi que milhares de fãs do Bruce, que o seguem há décadas, ficaram de fora dos concertos. Os shows passaram a ser, efetivamente, um exclusivo para os super ricos, e um luxo proibitivo para a classe média. Ele afastou conscientemente os fãs que passam dificuldades, os mesmos sobre quem ele vai cantar.

Supostamente, este esquema vem auto-regular o mercado, ainda que de uma forma selvaticamente liberal e claro, ultra lucrativa para o Bruce. Ora, Bruce Springsteen é reconhecidamente um artista com uma posição política forte e fortemente à esquerda. Como se explica, então, tal ganância a quem toda a vida cantou sobre as provações da classe trabalhadora? Ficou uma nódoa que vai ser difícil, se não impossível, de tirar.

Compreender-se-ia esta manobra num quadro de dificuldades financeiras, ou de angariação de fundos para uma causa. Mas não. Bruce acabou de receber um cheque recorde de 500 milhões de euros (!) da editora pela venda dos direitos do seu catálogo, a maior quantia um artista já recebeu, e um valor que nem sequer é comensurável para a tal classe média que ele representa. Nada contra ver o Bruce receber tal quantia, pelo contrário, eu próprio já lhe deu muito do meu bolso (comprei bilhetes para quatro datas desta digressão e, acreditem, não foram baratos); mas para quem é tão obscenamente (e meritoriamente) rico, reitera-se a questão: como se justifica esta exploração predadora aos bolsos dos seus tão fiéis fãs?

A única explicação que encontro é esta: Bruce Springsteen está completamente desconectado com a realidade. Talvez da idade, talvez do (muito) dinheiro, talvez da muita bajulação (da qual eu também sou culpado), alguma coisa parece ter mudado em Bruce desde a pandemia. Depois de uma vida sempre com os pés no chão, Bruce parece finalmente ter-se deslumbrado. O novo álbum, “Only The Strong Survive”, um disco de covers Soul a ser lançado na próxima semana, parece vir a confirmar isto. E se eu utilizei o verbo “parecer” três vezes neste parágrafo, é porque ainda estou em negação.

Não há nada de particularmente obsceno sobre este disco. A premissa é inofensiva: Bruce Springsteen quis fazer um álbum de homenagem aos seus heróis do Soul, com uma coletânea de covers. Não são temas muito populares (como fora a seleção de Phil Collins, no seu disco “Going Back”, de premissa semelhante), nem tão-pouco completamente desconhecidos. As canções trazem a tarimba de qualidade da Motown, da performance nas tabelas, e do teste do tempo.

Mas também não há nada de particularmente, ou sequer remotamente interessante neste disco. Sem música assinada por ele, Bruce tinha aqui a oportunidade de pôr a sua impressão digital nas suas canções favoritas, mas os temas são largamente uma cópia tirada a papel químico dos originais. Quem conhece as versões originais, não vai encontrar nada de novo aqui, a não ser a voz de Bruce. E convenhamos, com um Bruce septuagenário a cantar, não há nenhuma razão para se ouvir estas versões em detrimento dos originais da Motown. A escolha do nome do disco, diga-se, também não foi a mais feliz. Para quem acabou de lançar um álbum sobre a morte dos seus amigos (“A Letter To You”), segui-lo com “Only The Strong Survive” não foi propriamente a melhor ideia.

Nem tudo é mau. Quando a música começa a tocar, está tudo no sítio, com a produção de Ron Aniello a fazer a colagem primorosa às gravações antigas. Ouvimos Bruce a canalizar o seu melhor sotaque de Filadélfia e Nova Orleães, a interpretar temas que claramente lhe dizem muito. A performance em “The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore” é o meu ponto alto do disco, talvez porque seja o tema mais próximo do que Bruce escrevia nos anos 70, ou talvez porque tenha mais do seu cunho pessoal. É preciso procurar o dedo de Bruce no detalhe e nas entoações, como em “Someday We’ll Be Together”, uma interpretação potente que fecha o disco e que supera o original de Diana Ross, mais nuanceada, mas menos emocional que Bruce. É a excepção que confirma a regra de “Only The Strong Survive”.

Se a ideia era fazer um disco Soul, seria muito melhor Bruce recorrer às suas próprias composições. Atentem, por exemplo, no disco “The Promise”, com canções escritas na época de “Darkness” (1976-1977), mas só lançadas em 2010. Uma seleção desse repertório permite-nos ouvir como seria um verdadeiro álbum Soul de Bruce Springsteen: “The Brokenhearted”, “Someday (We’ll Be Together)” — não confundir com o tema das Supremes, “One Way Street”, “Breakaway”, e só aqui já temos pelo menos meio disco maravilhoso.

Em última análise, “Only The Strong Survive” é um projecto de vaidade que vai chegar no dia 11 de novembro e vai desaparecer tão depressa como chegou, sem deixar marca. Os fãs vão comprar, ouvir uma vez e guardar para nunca mais. Não haverá uma única pessoa, dos milhões que compraram bilhetes para a tour do próximo ano, a pedir um destes temas para o set de Bruce. Com tanta música nova para ouvir, é difícil encontrar um motivo para escutar este disco mais que uma vez. E isto vem de quem ainda hoje ouve em repeat faixas dos últimos discos “Western Stars” e “A Letter To You”. Infelizmente, “Only The Strong Survive” parece vir de alguém que já não tem nada a dizer, e tendo em conta os últimos discos de Bruce, eu nem acho que isso seja verdade. Mas é certamente, e de longe, o projecto mais descartável da carreira de Bruce Springsteen.

No fundo, é um disco novo de Bruce Springsteen que não tem música de Bruce Springsteen, e esse é o grande problema de “Only The Strong Survive”. É bege, insosso, sem a chama da E Street Band e sem a sinceridade dos seus discos a solo. E pior, é apenas o primeiro volume, com um segundo previsto para Março. Os fãs, ávidos por música nova do Bruce, vão ter que continuar à espera.