quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Apocalipse, Soul e Cocaína - Bowie vai para a América



Na sequência da fabulosa caixa "Five Years (1969 – 1973)" (que eu tenho lá em casa em formato vinil), que compreendia os primeiros anos da carreira de David Bowie e o seu período Ziggy, chega agora o volume seguinte: "Who Can I Be Now? (1974 – 1976)". Antes de mais, louvo a intenção do campo de Bowie, que assim pode organizar a caótica e difusa discografia de David Bowie e com isso, pode também encher os bolsos uma vez mais com a obra que o alien mais terráqueo nos deixou.

Incluídos nesta nova caixa, estão os álbuns do período de charneira de David Bowie, que fazem a ponte entre a fase Glam Rock de Ziggy ao período de fusão electrónica de Berlim: "Diamond Dogs", "Young Americans" e "Station To Station". E é aqui reside o grande senão deste set. Em virtude de consistência temática, isto é, para não cortar a meio nenhuma das diferentes fases da carreira de Bowie, "Who Can I Be Now" contém apenas três álbuns originais, contra os seis de "Five Years". É muito pouco "value for money". "Mas não têm ambas o mesmo número de discos?", perguntar-me-ão. Ter, têm, mas estes estão espalhados por "David Live" (duas misturas: 3LP + 2LP), "Live At Nassau Colisseum" (2LP), uma versão alternativa de "Station To Station" e, como já devem saber se chegaram até aqui, "The Gouster".

"The Gouster" foi promovido como um álbum "novo", não editado, uma jóia perdia de David Bowie e como o grande atractivo de "Who Can I Be Now". Calma. "The Gouster" tem o seu interesse, já lá vamos, mas não é mais que uma versão arcaica do que viria a ser "Young Americans".

Poderão estar a pensar que este período de Bowie entre Londres e Berlim, retratado nesta caixa, é de somenos. Nada disso. Na verdade, o "período americano" deu origem a uma das suas obras-primas, o superlativo e em doses iguais perigoso e maravilhoso "Station To Station". Não tenho aqui espaço para falar muito de STS (ide aqui), a não ser que é um dos álbuns da minha vida e se não é da vossa, é porque ainda não o ouviram muito bem.

Estes foram os anos que viram David Bowie a fascinar-se pela América e a injectá-la alarvemente na sua música. No apocalíptico "Diamond Dogs", inicialmente pensado para uma produção teatral de "1984" de Orwell (a utilização dos direitos foi recusada), ainda cheiramos Ziggy em "Rebel Rebel", mas o aroma ao Soul de Filadélfia já começa a dominar lá mais para o Lado B. Pessoalmente, não é o meu álbum preferido de Bowie (há tanto por onde escolher), mas atentem na intensidade da sequência "Sweet Thing" / "Candidate" / "Sweet Thing (Reprise)". É um dos pontos altos da sua discografia.

Fascinado pela América e cego na sua obsessão pela música Soul desta altura, David resolve fazer um golpe de harakiri à sua carreira: lançar um álbum de Soul. "Classic Bowie", dizemos hoje entre sorrisos. Na altura, o público deve ter ficado baralhado. David agregou uma banda que pudesse tocar a música que queria ouvir (entre eles, um tal de Carlos Alomar), alugou um estúdio em Filadélfia em Agosto de 1974 e mergulhou a fundo na sua nova sonoridade. As primeiras tentativas das sessões Soul deram origem a "The Gouster" - "40 minutos de funk glorioso", como lhe chamou Tony Visconti, o produtor de sempre de David. O "álbum Soul" conheceu diversas iterações, com diferentes baptismos - "Dancin'", "One Damn Song", "Fascination", ou "Somebody Up There Likes Me" - mas ainda não era "isto" que Bowie queria. Até que em Janeiro de 1975 apareceu em estúdio um tal de John Lennon e gravou com David dois temas: "Fame" e uma nova versão de "Across The Universe". Nascia assim "Young Americans".

No fim do ano, Bowie mudou de Costa e foi para Los Angeles, onde se afundou na coca. Do buraco, saiu "Station To Station". Daí, foi curar-se para Berlim. O resto saberemos na próxima caixa.

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