terça-feira, 11 de agosto de 2015

O ouvinte tem sempre razão

Mas tem mesmo?


O ouvinte tem sempre razão? Não. Mas claro que não! Ou é preciso recordar que os Aqua foram #1 em todo o mundo em 1997 com "Barbie Girl"? Ainda alguém se lembra do Crazy Frog? E do Scatman John? E do R. Kelly? Ah ok, desse lembramo-nos por causa daquela cena chata da pedofilia.

Este fim-de-semana aconteceu o maior festival português na Zambujeira do Mar e, acreditem, eu queria ficar calado. A sério, juro que queria. Mas a quantidade de fezes que foi atirada na defesa desta nova ideia de 'festival de Verão' não me deixa ficar calado.

Outras vozes já se expressaram devidamente. As minha preferidas foram a de João Quadros, no Twitter: "Ainda assim: cartaz do PS > cartaz do Sudoeste" (tão bom) e a de João Pedro Rodrigues, no Facebook, um membro da "tribo" (parabéns ao génio publicitário que inventou este conceito) que avaliou o festival com 5 estrelas, comentando de forma assertiva: "epah mais um ano a partir aquela merd* toda !!! O cartaz é fatela Ya, mas o que conta com é o espírito !!!". Meus amigos do Sudoeste, quando um dos membros mais fervorosos da vossa tribo apelida o cartaz de "fatela Ya", eu acho que não preciso de entrar em cena com adjectivação adicional. O trabalho está feito.

Mas depois vieram as fezes.

Dizem-me que é a evolução, que a música nova irrita sempre as gerações mais velhas e que assim é que deve ser. Certo. Mas o quando o Dylan ligou a guitarra eléctrica no Newport Folk Festival em 1965 e chocou uma audiência que esperava um espectáculo acústico, ele não se limitou a carregar num botão para tocar hits da década anterior, nem começou a atirar bolos à audiência. Tocou a música dele AO VIVO, foi REAL.
E quando os Sex Pistols abriram a distorção e cuspiram no público dos bares suados da Grã-Bretanha de 1976, ainda era música AO VIVO que saía das colunas, por muito desafinada que fosse. Era REAL (excepto quando o Sid Vicious não ligava o baixo, aí era mesmo só cuspo).

Dizem-me que isto é "música do meu tempo" e que o meu tempo já passou. Música do meu tempo? Eu nasci nos anos 80 e as minhas bandas preferidas são dos anos 60 e 70. Moldei o meu gosto porque o meu Pai me deu a conhecer música e eu ganhei curiosidade para procurar mais. Os jovens ouvem aquilo que lhes dão e se eles gostam de caca é porque só lhes deram caca, dia após dia, após dia, e eles não conhecem outra coisa. Isto é só mais um capítulo do livro dos nossos tempos "Ausência dos pais em casa". Os miúdos não precisam de gostar dos Beatles nem dos Stones, mas convém conhecê-los, como parte da História e da Cultura que eles são. Não conhecer os Beatles é tão grave como não saber quem foi Hitler. E aposto que muitos não conhecem nenhum deles.

Dizem-me que que a geração mais nova gosta de volume e de graves e não quer saber do conteúdo. Certo. Mais uma vez, gostam disso porque é aquilo que lhes dão. É fácil. É anestésico. É acéfalo. Dá para desligar facilmente e assim dar atenção às babes que passam e à selfie que se tira.

Dizem-me frases feitas numa linguagem torpe de políticos, que normalmente antecede a sentença "e por isso vamos ter que aumentar os impostos". Mas esquecem-se de falar no desinvestimento. Porque aí é que reside a explicação. Querem uma ideia do que estamos a falar? Eu dou. Uma pesquisa rápida no Google revela-nos que Calvin Harris — talvez o nome mais caro do SW — cobra aproximadamente 500 mil euros por actuação. Dando um exemplo de outro cabeça de cartaz deste ano, os Muse cobram perto de 850 mil euros para dar um concerto. Pois. E se olharmos para o volume do cartaz? "Fatela Ya", como diz o João Pedro. Ou apenas o fruto do desinvestimento.

Dizem-me coisas em tom paternalista, de gente bem intencionada que acha que temos que "ser razoáveis" para com o festival e os seus organizadores e patrocinadores, "ser razoáveis" para com a vertigem do lucro. Mas isto é música. Desde quando é que temos que "ser razoáveis" para com a arte? Foi a isto que chegámos? Não é na música que devemos procurar a pureza? Pelo menos foi isso que a música do meu Pai me ensinou.

Não, o ouvinte não tem sempre razão. Como em todas as culturas, é preciso educar para colher frutos. Se educarem os miúdos com caca, eles vão ouvir caca. E caca é muito mais barato. Já aqui o escrevi: há demasiadas coisas medíocres na nossa vida, a música não pode ser uma delas.


Artigo publicado originalmente neste link,
na revista online New In Town (NiT), 
Terça-Feira 11 de Agosto de 2015

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