"Where were you while we were getting high?"
Ryan Adams chegou na semana passada ao Reino Unido para uma tour britânica, a primeira desde o escândalo que o afastou dos palcos em 2019 (eu tinha bilhete para o ver no Royal Albert Hall, mas a digressão foi cancelada) e, para celebrar a ocasião, lançou gratuitamente no seu site um álbum de covers do icónico “(What’s The Story) Morning Glory?” dos Oasis. Reimaginar o álbum mais bem sucedido dos Oasis é um exercício arriscado. Quase 30 anos depois do seu lançamento, “Morning Glory” continua mais relevante que nunca no Reino Unido, ou não fosse o terceiro álbum de originais mais vendido de sempre neste país, com 5 milhões de cópias vendidas (apenas atrás de The Beatles e Adele), e detentor do Brit Award para melhor disco britânico entre 1980 e 2010. É impossível escapar à música dos Oasis em Londres, seja nos pubs, ou até no metro, onde é comum ver adolescentes cantarem “Wonderwall” e “Don’t Look back In Anger”, ambos deste disco. Para mim, fã de Ryan Adams e dos Oasis, abordei com enorme interesse, mas também com igual precaução, um disco de versões de um dos álbuns da minha vida.
A minha preocupação era escusada. Ryan Adams despiu as canções ao mínimo essencial e com isso revelou (se dúvidas houvesse) que a escrita de Noel Gallagher nesta fase era absolutamente imbatível. Desconstruir todo o muro de guitarras dos Oasis até à pureza acústica, expor as melodias a nu, e mesmo assim ficar com uma paisagem com esta beleza, só prova que as canções são mesmo fantásticas. Ryan já tinha feito um exercício semelhante quando gravou na íntegra um álbum de covers de “1989”, segundo o próprio, como se fossem gravadas pelos The Smiths. Também aí, o resultado foi expor a nu a genialidade da escrita de Taylor Swift.
Com este disco, Ryan Adams gravou uma carta de amor à música do Reino Unido, mais especificamente à música de Manchester. A sua versão, mais sucintamente baptizada de “Morning Glory”, é um cesto de Easter eggs da sónica britânica, prontos a serem descobertos pelos vossos ouvidos. Podemos, por exemplo, ouvir Joy Division em “Hello”. “She’s Electric”, por outro lado, foi transformado num híbrido transcendental de “Sheila Take A Bow” dos The Smiths (a sério, ouçam por vossa conta, e digam-me se não é uma fusão genial). “Morning Glory”, o tema-título, soa a um outtake das sessões de “Standing On the Shoulder Of Giants”, fechando o ciclo de influências mancunianas.
Talvez o tema que mais esperava ouvir neste disco fosse “Hey Now!”, de longe a canção mais underrated deste disco, e quiçá dos Oasis. Ryan não desapontou. Mais uma vez, despindo-a ao mínimo, revelou-se a fundação maravilhosa desta música. Tal como na voz de Liam, as palavras “What am I gonna do while I’m looking at you, you’re standing ignoring me?” batem forte. Continua a ser uma das linhas mais poderosas de toda a lírica de Noel.
E por falar em lírica poderosa, que dizer do final com “Champagne Supernova”, transformado num semi-acústico low-fi gravado numa boombox, qual gravação retirada de “Nebraska” de Bruce Springsteen (talvez a maior influência de Ryan Adams) — “How many special people change, how many lives are living strange?”.
A versão de “Cast No Shadow” ganha um novo sentido ao ser dissecada e adornada com uma secção de cordas. Originalmente uma homenagem a Richard Ashcroft, torna-se numa balada sobre um outcast perdido da sociedade. Aparecem também aqui os sintetizadores de Springsteen em “Tunnel Of Love”, que Ryan Adams usa amiúde nos seus álbuns de originais, e que aqui dão corpo às canções, como no caso de “Don’t Look Back In Anger”. Ryan já tinha gravado um cover de “Wonderwall” em 2004, para o seu álbum “Love Is Hell”, mas aqui o tema aparece numa versão nova. Os hits, confesso, são os temas menos interessantes deste disco, talvez por estarem tão cravados na nossa memória. Ou então sou eu que já ouvi “Wonderwall” vezes que cheguem na minha vida.
Ryan Adams não se limitou a gravar o álbum original, e incluiu também uma selecção de alguns Lados B chave dos singles desta época, incluindo “Talk Tonight”, “Acquiesce”, “Rockin’ Chair”, “Headshrinker”. Curiosamente, estes dois últimos estão no lote das versões mais superlativas neste disco, se não mesmo definitivas. “Headshrinker”, em particular, é um triunfo absoluto — um bulldozer punk na versão original, que aqui é desacelerado a um semi-acústico retirado de “The Dreams We Have As Children” que, arrisco dizer, é melhor que o original cantado por Liam Gallagher. Pronto, está dito.
A versão de Ryan Adams de “Morning Glory” é uma revelação. Este álbum, marco indelével na cultura popular britânica, só ficou a ganhar com esta reinterpretação, que expôs a nu a perenidade das melodias de Noel Gallagher. Não que houvesse dúvidas disso. É o disco que têm que ouvir esta semana, basta irem ao site de Ryan Adams. É de borla.