A primeira vez que Roger Waters atuou em Portugal foi em 2002, no (ainda) Pavilhão Atlântico, em virtude da digressão In The Flesh, que marcava o regresso do ex- Pink Floyd aos palcos da Europa continental, pela primeira vez desde 1984. Eu estava lá. Foi o primeiro grande concerto da minha vida, tinha eu 16 anos, e marcou a abertura de um ciclo que me levou a ver os Floyds a solo 22 vezes (Roger: 8, David: 10, Nick: 4) — escusado será dizer que sou fã. À saída do mesmo pavilhão no passado fim-de-semana, hoje Altice Arena, naquele que terá sido o último concerto de Waters em solo português, também eu senti que um ciclo se tinha fechado.
Foi bom ver o Roger uma última vez. O cenário 360º da This Is Not A Drill tour, instalado no meio do Atlântico (salvo seja), obrigava à mobilidade de Waters, que exibiu uma forma física invejável. A espaços, fez lembrar um Mick Jagger a correr de um lado para o outro do palco cruciforme — prova que, apesar da idade avançada, a cabeça e o corpo de Roger não param de trabalhar.
Ver os Floyd ao vivo para mim é como ir à missa. E tendo em conta que já fui à comunhão algumas vezes, posso dizer que se vai ver o David pelo clímax musical e o Roger pela apoteose do espectáculo. É o próprio Roger quem vos dirá, qual Jorge Jesus do Rock, que foi ele quem inventou o espectáculo Rock. Se inventou, ou não, pode ser discutível, o que não merece dúvidas é a sua capacidade para fazer os melhores espectáculos Rock que o mundo já assistiu, capacidade essa que se mantém intocável aos 79 anos. E no entanto, já não é a mesma coisa.
Eu sei, foi um grande concerto. Quem lá esteve pode atestar que sim. É o Roger Waters a tocar Pink Floyd, era difícil correr mal. Mas não é essa a questão. Este espectáculo da This Is Not A Drill tour — segundo Roger, a sua última digressão —, embora brilhante, mostra também sinais de cansaço, e de que já não há muito para onde ir. É preciso estabelecer a priori que não há comparação entre os shows saídos da cabeça do Roger e dos outros artistas Rock; é outro campeonato. Mas se numa escala global, o concerto foi um 8 ou um 9; na escala Roger Waters, foi um 5, ou um 6. As críticas que tenho lido, todas a tecerem loas ao génio criativo dos Pink Floyd, olvidam que estamos na presença do mestre. A exigência é maior com ele.
Comparando com a última apresentação de Waters no Atlântico em 2018, na digressão Us + Them, mais focada no álbum "Animals", este espetáculo ficou muitos furos abaixo, tanto em termos de show (lembram-se da Battersea Power Station no meio do pavilhão?), como em termos musicais. E se pusermos este show ao lado da sua obra prima — The Wall Live — que trouxe ao Atlântico em 2011, e foi o melhor espetáculo que eu já vi na minha vida, então perde por goleada em toda a linha. É de salutar que Roger queira fazer coisas novas, mas o declínio entre tournés é evidente.
Nesta digressão, Roger tentou não ir a jogo com os mesmos cavalos de corrida de sempre e apresentou algumas novidades na setlist, com destaque para "The Powers That Be" do (injustamente) famigerado "Radio KAOS" (1987) e "The Bravery Of Being Out Of Range" do brilhante "Amused To Death" (1992). Infelizmente, ambos os números foram abrandados, e perderam a combustão que os caracterizavam. Mas o público queria ouvir os hits e Roger anuiu, tocando trechos substanciais dos Big 4 — "The Dark Side Of The Moon", "Wish You Were Here", "Animals" e "The Wall", os quatro discos que perfazem os "anos dourados dos Pink Floyd", como ele diz agora —, incluindo os Lados B na íntegra de "Dark Side" e (quase) de "Wish You Were Here".
Musicalmente, estas sequências proporcionaram os pontos mais altos, e também alguns dos pontos mais baixos do show. No melhor, esteve "Shine On You Crazy Diamond Parts VI-VIII" (as melhores deste épico multi-parte), com uma fenomenal reprodução do solo de guitarra de Gilmour na slide guitar, por parte do ex-teclista de David, Jon Carin (também ele às avessas com David nos dias de hoje). No pior do show, esteve "Have A Cigar", um tema que se quer sujo, com guitarras cortantes; mas que aqui teve na frente da mistura os sintetizadores de Carin, afogando as guitarras numa paisagem tépida e monótona, sem chama e sem tesão.
Waters parece estar numa missão para reescrever a história dos Pink Floyd sem guitarras. Para além do já conhecido projecto de regravação de "Dark Side", Roger suprimiu David Gilmour de todas as fotos dos Pink Floyd que projetou. Mas o pior pecado foi ter começado o espectáculo com a versão vasectomizada de "Comfortably Numb", sem os solos de guitarra que marcavam o clímax do tema. Ao intervalo, na fila para o bar, não se falava noutra coisa — como é que Roger Waters fora capaz de um pecado destes?
"The Bar" que, curiosamente, é o nome do novo tema que Roger apresentou no Atlântico e é surpreendentemente comovente. O bar é um conceito que ele idealizou como o lugar onde podemos falar de tudo, com todos, de forma civilizada, "incluindo, e especialmente, da Ucrânia", referiu. Felizmente, Roger não elaborou o assunto da Ucrânia, para o bem de todos os presentes no pavilhão, incluindo, e especialmente, para ele — digo eu. Não creio que o público estivesse preparado para uma palestra sobre as virtudes e a bonomia de Putin.
À saída do pavilhão, todos concordaram que tinha sido um grande concerto, mas eu, que assisto ao declínio de Roger desde 2011, pergunto se não está na hora de revolucionar tudo, ou pendurar as botas. Será que foi a última tour do Roger? Para onde é que ele pode ir a partir daqui? 3D, realidade virtual, inteligência artificial? Quem sabe? Se alguém nos pode surpreender, é Roger Waters. Da cabeça deste génio louco, pode sair literalmente de tudo um pouco.
P.S.: Quando fui ao concerto de 2002 com o meu Pai, comprei uma t-shirt do Roger Waters que levei para a escola todos os dias até romper de uso. Na fila para o bar este fim-de-semana, vi um rapaz que parecia ter os mesmos 16 anos que eu tinha na altura, com a mesma t-shirt que eu comprei naquele dia. É o ciclo geracional dos Floyd — fechou-se um, passa-se o testemunho e outro se abre.
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