A Academia está de parabéns. Foi uma bela cerimónia dos Óscares, desta vez sem bofetadas, que mais uma vez premiou a inclusão em Hollywood. “Everything, Everywhere, All At Once” (EEAAO) arrecadou 7 estatuetas, mas não é um filme para todos — uma salganhada que cruza a exploração de multiversos, com teletubbies e kung fu que, de certa forma, é um espelho para a fragmentação cultural da sociedade de hoje. No melhor, é original; no pior, é um nada que quer ser tudo. Aquilo que eu realmente não gostei foi ver a Michelle Yeoh desfraldar a bandeira da inclusão, como argumento para ganhar o Óscar de Melhor Atriz em detrimento de Cate Blanchett, pelo meio violando as regras dos Óscares. Foi feio.
Que não restem dúvidas — Michelle Yeoh é uma atriz fantástica em absoluto. É pena que tenha alavancado a relativização a uma minoria em Hollywood, para finalmente ganhar o Óscar que a sua carreira e este papel faziam por merecer. A estatueta está bem entregue à malaia, mas isso não significa que a melhor performance deste ano seja dela. Não foi. O Óscar de Melhor Atriz, este ano, merecia ser entregue a Cate Blanchett, pela sua performance avassaladora em "Tár". Foi o pior roubo nesta categoria, desde que Emily Watson não arrecadou a estatueta em 1997, pela sua performance em "Breaking The Waves" de Lars Von Trier.
Cate Blanchett interpreta Lydia Tár, um maestro — que recusa o uso do equivalente feminino, no caso português maestrina — brilhante em cima do púlpito, mas conflituada fora dele. Uma série de más decisões atiram a sua vida para uma espiral auto-destrutiva que, em última instância, põe em causa toda uma carreira irrepreensível e o seu próprio legado como artista. O guião de "Tár" é tão superlativo (perdeu também nesta categoria para EEAAO) que, no final dos primeiros 20 minutos, ficamos na dúvida se Lydia Tár existe mesmo. Para isso, muito contribui a performance da atriz. A personagem de Lydia Tár é tão densa, detalhada e rica em nuance e dicotomia, é uma absoluta masterclass de Cate Blanchett.
Acaba por ser uma ironia perversa que "Tár" tenha saído dos Óscares de mãos a abanar, quando o peso filosófico do filme é apoiado precisamente na subversão da sociedade atual, em que o mérito artístico é qualificado, ou validado, por critérios de identificação em género ou etnia. Não vou fazer spoilers, mas tenho que falar na cena chave no início do filme, em que Lydia, lésbica assumida que triunfou no competitivo mundo da música clássica, discute com um aluno seu, que sente o dever de se identificar como BIPOC pangénero (Googlem) e, como tal, recusa Bach pelo seu passado sexual "problemático". Lydia responde com uma linha pivotal, que resume na perfeição a cultura de cancelamento que vivemos, que confunde de forma recorrente a arte com o artista: “Não sei o que é que os hábitos do Bach na sua cama têm a ver com o seu mérito musical”.
O âmago do filme é precisamente esse. Lydia Tár é tão perfeita no púlpito e tão imperfeita pessoalmente, tal como Bach, Beethoven e tantos outros génios antes dela e no entanto, devido à época em que ela vive, é julgada sumariamente pelos seus erros, enquanto eles são lembrados pela sua glória. Não preciso de apontar o óbvio, em como Bach é apenas a ponta do icebergue. Se recusarmos Bach, temos que riscar Beethoven, Mozart, Lennon, Elvis, Miles, Brown, Page e todos os músicos que viveram vidas perversas. No fim, só ficamos com a Celine Dion, o Ed Sheeran e os Coldplay. É esse o mundo higienizado onde querem viver? Eu também não. Já escrevi aqui várias vezes e "Tár" deixa o mesmo recado — confiem sempre na arte, nunca no artista. "Tár" é a obra-prima secreta que têm que ver este ano.
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