quarta-feira, 17 de maio de 2017

As três vitórias de Salvador Sobral, ou como maçar a malta da massa

O que espera a Salvador Sobral no panorama musical português? 


O meu Pai já mal abria os olhos e as minhas capacidades de focagem também não eram as melhores. Sentados à mesa de um restaurante, em pleno auge dos inebriados festejos do Tetra, tive que pedir à minha Mãe para ir junto à televisão verificar se eu estava a ver bem, ou se os 3 litros de cerveja já estavam a bater. Era verdade, o Salvador estava mesmo 100 pontos à frente do segundo lugar e preparava-se para trazer para Portugal o aparentemente inatingível caneco da Eurovisão. Primeira vitória.

A apoteótica chegada ao aeroporto no dia seguinte completou a mais épica jornada da História de Portugal desde que Vasco da Gama chegou a Belém com as caravelas carregadas de especiarias de Calecute. Aquela recepção é algo que, no plano musical, só tem paralelo com a aterragem dos Beatles na América. Era o dado que faltava para perfilar Salvador como o novo herói nacional; um palco que, tenho a certeza, o Ronaldo não se importará de dividir. Mas findos os festejos, fica a pergunta: e agora, que futuro está reservado para Salvador no panorama musical português?

Em primeiro lugar, faço votos para que o Salvador goze esse futuro com saúde. Também sou fã dos Queen (gostei de o ver com o "Crazy Little Thing Called Love" nos Ídolos), mas não quero que ele siga os passos do Freddie e nos deixe antes do tempo. Cuida-te, rapaz. Mas voltemos ao panorama musical português.

Olhemos para exemplos como Dulce Pontes, Anabela, Lúcia Moniz, ou José Cid – alguns dos seus mais bem sucedidos antecessores no euro-festival –, para ter uma ideia melhor do que espera a Salvador. Dulce Pontes esteve consistentemente no topo das tabelas nacionais ao longo dos anos 90 (e chegou a mercados tão longínquos como o Japão), mas foi perdendo fulgor comercial e é hoje praticamente uma figura de culto. A Anabela (por quem eu me apaixonei quando tinha 7 aninhos) não teve muito sucesso nos discos, mas tornou-se na "menina do La Féria" e estrela maior do teatro musical português. A Lúcia Moniz teve um grande êxito em inglês com o Nuno Bettencourt ("Try Again"), mas é mais conhecida pela sua carreira na representação. O José Cid é talvez o exemplo de carreira comercial mais longa e consistente, ainda assim não se livrando de períodos de ocaso e de um ou outro backlash causado pela sua língua afiada. Nenhum deles é um artista que possa ir ao palco principal de um grande festival em Portugal, muito menos ser headliner.

Da mesma forma, não é líquido que seja dado ao novo herói nacional o espaço no mainstream que a sua voz merece, dado o baixo teor em kizomba da sua música. Salvador sabe disto e o seu discurso de vitória levanta a questão de forma não muito subtil: "que esta seja uma vitória da música com conteúdo; música não é fogo-de-artifício, música é sentimento". Um "discurso polémico", dizem. Polémico, porque é verdade e dizer a verdade nestes dias do politicamente correcto é uma grande maçada, porque maça a malta da massa. Segunda vitória.

Ouvimos sempre que "as pessoas gostam do que gostam" e que se deve "dar ao público o que ele quer". O tanas. É tudo uma grande treta que inventaram para justificar o esgoto que nos querem escoar pela garganta a fundo. Normalmente a equação funciona ao contrário: o público gosta daquilo que lhes é dado e quanto mais lhes dão disso, mais eles querem. É como no livro do Astérix em que os romanos queriam vender menires e com a devida publicidade conseguiram convencer todas as famílias da Gália que ter um menir em casa é que era. As pessoas gostam de kizomba porque lhes é atirada kizomba aos baldes. Ponto.

Como em todas as áreas, é preciso educar para colher frutos. É preciso educar o hábito de procurar música (e arte no geral) e não se limitar a comer o que é posto no prato. Nem todos gostamos do mesmo e ainda bem, mas deve ser incutida a vontade da pesquisa e da descoberta. Se educarem os miúdos com caca, eles vão ouvir caca. E caca sai muito mais barato à malta da massa. Já aqui o escrevi antes: há demasiadas coisas medíocres na nossa vida, a música não pode ser uma delas. Não espero que Salvador revolucione o panorama musical português, mas pelo menos abriu o debate para que possamos começar a pensar nele. Terceira vitória.

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