O cronista musical da NiT e fanático dos Pink Floyd reflecte sobre o regresso da banda, em missão de ajuda ao povo ucraniano, e a desilusão que Roger Waters se revelou.
E eis que do nada, surge um novo tema dos Pink Floyd. O primeiro desde 2014, e a primeira gravação nova desde o maravilhoso "The Division Bell", de 1994. Dito assim, parece uma ficha pesada a cair; altíssima responsabilidade para com um legado de seis décadas, que produz novos fãs todos os anos e é hoje tão ou ainda mais forte do que quando a banda estava activa. Na verdade, foram apenas dois músicos que se juntaram para ajudar uma causa que merece toda a nossa atenção.
David Gilmour estava a gravar o seu novo álbum a solo quando a guerra eclodiu na Ucrânia. Chocado com os acontecimentos, David apressou-se a registar o seu apoio ao povo ucraniano nas redes sociais, e retirou das plataformas de streaming na Rússia a sua música a solo, bem como a discografia pós-Waters dos Pink Floyd. Esta retirada parcial da música dos Pink Floyd, juntamente com o silêncio do sempre activo e muito barulhento Roger, deixou-me logo um amargo na boca. Mas já vamos ao Roger.
Avô de dois netos meio-ucranianos, David está mais próximo da causa do país invadido. Depois veio a notícia do seu amigo Andriy Khlyvnyuk, vocalista do grupo Boombox que abriu para o David num show de beneficiência em 2015, que fora atingido por um estilhaço em confrontos com o exército russo e estava a recuperar no hospital. Khlyvnyuk tinha abandonado uma digressão americana dos Boombox, para se juntar ao exército ucraniano e defender o seu país. Dias antes do incidente, Andriy gravara um vídeo a cantar a capella o cântico patriótico "Oi u luzi chervona kalyna" nas ruas de Kiev, interrompendo o silêncio perturbador de uma cidade em guerra.
Foi o áudio desse vídeo, gravado num iPhone, que serviu de inspiração para David Gilmour. Sabendo que o nome Pink Floyd ia gerar muito mais atenção, David ligou a Nick Mason e perguntou-lhe se estava a fim de gravar um tema, como Pink Floyd, para ajudar a Ucrânia. Recordo que Nick rejeitou todos os convites de David para colaborações nos seus discos a solo, respondendo sempre: "só estou disponível para os Pink Floyd". Assim foi.
"Hey, Hey, Rise Up!" foi lançado de surpresa na sexta-feira e, se já ouviram, perceberam rapidamente que não se trata de um tema "normal" dos Pink Floyd. Se é que existe tal coisa, entre o espólio de "Piper", "Ummagumma" e "The Final Cut". A única voz que ouvem é a de Andriy Khlyvnyuk, a cantar nas ruas de Kiev. De resto, temos de volta os solos da guitarra de David (a Telecaster 'Workmate', que sobrou do leilão de há 3 anos), e há espaço os drum fills de Nick respirarem na mix. É Pink Floyd. E tem mais edge do que tudo o que ouvimos no insípido "The Endless River".
Não é um "Echoes", um "High Hopes", ou um "Comfortably Numb". Mas não precisa. O que interessa é a mensagem e a mensagem é que já chega desta merda. Esta guerra à nossa porta tem que acabar e é reconfortante ver os meus heróis do lado certo da história. Enche-me o coração ver o David utilizar a arma poderosíssima que tem nas suas mãos (a marca dos Pink Floyd) para fazer o bem. Em sentido contrário, parte-me o coração ver o meu outro herói tornar-se num daqueles “tu não percebes, pá”, que me dão a volta ao estômago.
Permitam-me desabafar um pouco sobre o Roger Waters. O Roger é um dos meus heróis. Sou tão apaixonado pela paixão que imprime em tudo o que faz, seja a expelir a sua arte, ou a defender as suas causas, que dei o nome dele ao meu pastor alemão — e talvez por isso, o universo quis que ele tivesse uma personalidade irascível, como quem o baptizou.
Para além de amar a música, sempre defendi o Roger nas suas causas. Concorde-se ou não com as suas posições políticas socialistas (semelhantes às do David) mais polémicas, na Venezuela, ou na Palestina, tudo o que o Roger sempre fez foi pôr-se ao lado dos mais fracos. Ao lado dos venezuelanos, contra as sanções do gigante norte-americano. Ao lado do povo palestiniano, contra o massacre do poder israelita. Dar força aos fracos contra os fortes, sempre foi este o diapasão de Roger. Por isso é uma mágoa tão grande vê-lo tão tímido contra esta guerra. Roger fala em "nuances" na análise deste conflito, quando o próprio Roger é o homem menos nuanceado que já existiu. Tudo o que ele diz e faz é exposto em ecrãs gigantes, letras garrafais e gritos ao microfone em estádios. E é assim que gostamos dele. Mas o Roger precisa de acertar o seu compasso moral e o seu sentido básico de decência.
Mais: acredito que se o Roger não se tivesse tornado num "tu não andas a ler as notícias certas, pá", estaríamos agora a falar de uma reunião muito mais abrangente dos Pink Floyd. Partilho o sentimento do David quando disse que a posição do Roger "é uma enorme desilusão". Para todos os que perguntam se isto é Pink Floyd sem o Roger Waters, eu lembro que o Roger está há mais tempo fora dos Pink Floyd do que eu estou fora do útero da minha mãe.
Para além da ajuda ao povo ucraniano, há um outro lado, muito inteligente, no uso do nome Pink Floyd neste tema. Para quem não sabe, os Pink Floyd são mais populares na Rússia que o próprio Putin. Nos anos 70 e 80, quando os seus discos eram proibidos, criou-se um mercado negro massivo de produção de discos piratas dos Pink Floyd — sei bem disto porque tenho estas prensagens. Por isso não será a melhor maneira de chegar a um povo que não tem acesso a notícias fidedignas, e mudar umas quantas mentalidades, através da música? Putin só cairá quando os russos quiserem e o David está a tentar fazer a sua parte com as armas que tem. A isto chama-se estar do lado certo da história.
O novo tema dos Pink Floyd está aí e todos os lucros reverterão para Ucrânia por isso, comprem. É música, é Pink Floyd, é para ajudar, é um no brainer.
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