terça-feira, 26 de abril de 2022

"Another World": quando Brian May casou os sonhos da música e das estrelas

O cronista da NiT e fanático dos Queen, Nuno Bento, voltou a estar com o guitarrista da banda



Um ano depois de acompanhar Brian May na reedição do seu primeiro disco a solo, "Back To The Light", voltei a encontrar o meu herói para o lançamento do segundo volume da sua Gold Series, que revisita a sua discografia a solo — o álbum "Another World", de 1998.

"Another World" nasceu de uma amálgama de projectos meio acabados nos mid-90s. Depois de fechar o capítulo final da discografia dos Queen — o álbum "Made In Heaven", de 1995 —, Brian começou o projecto de um disco de homenagem aos seus heróis— ao qual chamou de "Heroes Album", em alusão ao tema de David Bowie. Este conceito misturava covers de canções dos seus heróis e canções originais escritas para os seus heróis. Era o caso de "No-One But You", que Brian escreveu para Freddie Mercury, e ia originalmente figurar neste disco, mas que Roger Taylor "roubou" para a compilação "Queen Rocks", quando ouviu a demo e convenceu Brian a gravar o tema como Queen.

Ao mesmo tempo que este projecto prosseguia a sua difícil gestação, Brian era requisitado para produzir uma série de bandas sonoras para a televisão, filmes, e até videojogos. Para a série britânica "Frank Stubbs Promotes", que passou na ITV em 1994, Brian escreveu "Business" e "On My Way Up". O experimentalista "Cyborg" foi composto para o jogo da PlayStation "Rise Of The Robots and Rise 2: Resurrection" de 1996. E em 1997, o realizador Peter Howitt, amigo de Brian, pediu-lhe um tema para usar no seu filme "Sliding Doors", uma comédia romântica com Gwyneth Paltrow, que sairia em Janeiro de 1998; nasceu assim "Another World", naquele que era suposto ser o big break de Brian em Hollywood. O guitarrista contou que Howitt adorou o tema, mas por razões de conflitos entre editoras, não o pôde usar no seu filme. Brian ficou devastado.

O falhanço de Hollywood, a perda de "No-One But You" para os Queen e todas estas peças de músicas espalhadas, levaram Brian May a repensar a ideia original para o seu segundo álbum a solo. Brian decidiu abandonar o conceito do "Heroes album" e começou a pensar noutro fio condutor para ligar todos estes retalhos. A resposta estava na sua outra paixão de sempre, a par da música — o Espaço.

Não é por isso ao acaso que estamos no Royal Observatory de Greenwich para o lançamento da reissue de "Another World". Em vez do ecrã de um cinema, os novos vídeos de promoção do disco passam na cúpula do Peter Harrison Planetarium. É sem dúvida a coisa mais Brian May que o Brian May já fez — pôr os seus fãs a olhar para as estrelas ao ouvir a sua música.

São apresentados no planetário os novos vídeos de "On My Way Up", "Maybe Baby", "Another World" e "Otro Lugar" (versão espanhola de "Another World") — estes dois últimos mostrados ainda em exclusiva, uma vez que ainda não estão disponíveis no Youtube. Para gravar estes clipes, Brian regressou às Ilhas Canárias, onde tirou a foto original da capa do disco e onde, anos mais tarde, fez a sua tese de doutoramento em astrofísica. O nosso cientista rock star favorito não conteve as lágrimas, ao ver as imagens do seu regresso ao lugar preferido, onde, revela, que quer as suas cinzas espalhadas um dia. Eu não sou o maior fã de astrofísica (não digam ao Brian), mas ficava aqui a noite toda a ouvi-lo falar das estrelas.

E a primeira surpresa da noite foi precisamente uma apresentação do céu estrelado no planetário, com a narração de um Brian May com... 12 anos! Brian fez esta gravação incrível com a ténue esperança que um dia pudesse ser usada num planetário e aos 74 anos, o sonho foi finalmente cumprido. Brian falou em como uma das grandes frustrações da sua juventude foi a "quadradice" do ensino britânico, que o obrigava a escolher entre a astrofísica e as artes. "Porque é que não posso ter os dois?", suspirou. Brian escolheu a guitarra, e ainda bem que o fez, porque já sabemos o resto da história, e admitiu que só pôde regressar ao sonho da astronomia uma vez que "a coisa dos Queen correu relativamente bem" (risos na sala). Foi por esta altura que Brian começou a sua deriva estrelar e o renovado conceito do álbum "Another World" reflecte precisamente isso. 

Com o novo conceito do Espaço como fio condutor, Brian começou 1998 a juntar as peças para "Another World". Da ideia original do "Heroes album", foi resgatada a homenagem a Jeff Beck, "The Guv'nor" (onde tocou o próprio Beck), bem como os covers "Slow Down" de Larry Williams, "One Rainy Wish" de Jimi Hendrix,  e "All the Way From Memphis" dos Mott The Hoople, banda para quem os Queen abriram nas suas primeiras digressões. Os outros covers que Brian gravou — "Maybe Baby" (Buddy Holly), "F.B.I" (Hank Marvin), "Hot Patootie" (Richard O'Brien) e "Only Make Believe" (Conway Twitty) — foram remetidos para B-Sides dos singles da época, e estão agora todos reunidos nesta nova reedição de "Another World".

Também recuperados, foram os temas das bandas sonoras referidos em cima: "Another World", "On My Way Up" e "Business" — o tema mais forte do álbum, que prova que Brian May pode não ser o rocker mais convincente, mas é certamente um dos mais efectivos. "Why Don’t We Try Again" saiu do baú dos tempos dos Queen, outrora rejeitado por ser demasiado pessoal. A faixa de introdução do álbum nasce também nesta altura, apropriadamente baptizada de "Space". "Wilderness" e um tema sobre as mulheres da Mongólia, "China Belle", aparecem igualmente na recta final das sessões de gravação, para fechar o disco. 

E quando tudo parecia estar encaminhado, eis que a tragédia volta a bater à porta de Brian May — Cozy Powell, amigo de longa data e baterista da sua banda, morre num acidente de viação, a poucas semanas do lançamento do álbum. Brian deixou escapar mais uma lágrima a falar desta "tragédia inacreditável", poucos anos depois do desaparecimento de Freddie. Para substituir Powell em estúdio, foi chamado um jovem baterista, que na altura tinha acabado de se juntar aos Foo Fighters. Esse mesmo que estão a pensar, Taylor Hawkins — "the ultimate Queen fan", diz o Brian, "sabia mais sobre os Queen do que eu". Foi Taylor quem gravou a bateria na versão do álbum de "Cyborg". E como sabemos, também ele desapareceu recentemente. "Ainda não acredito, não consigo fazer paz com estas coisas", confessou o nosso cientista favorito, de olhos fixados no chão.

O evento também trouxe algumas revelações relativamente ao futuro próximo de Brian May. Começando pelo próximo volume da sua Gold Series, que será a tão aguardada expansão do projecto "Star Fleet", um EP de 1983, que contou com o saudoso Eddie Van Halen. Mas há mais boas notícias: Brian abriu a porta para um novo álbum a solo, "de inspiração orquestral e sinfónica, como o que eu ouvia na rádio quando era novo". É uma viragem positiva no discurso de há um ano, quando rejeitou liminarmente esta hipótese, por querer ser "apenas" o guitarrista. Sabemos como Brian May gosta de ter o controlo artístico total dos seus trabalhos, por isso, a não ser que haja um Freddie Mercury do outro lado em quem ele confie, será sempre um conflito de difícil resolução.

A noite terminou com mais duas surpresas. Primeiro, a recuperação de mais uma narração estrelar de Brian May, desta feita para o planetário de Estugarda, remontando ao ano 2000. Brian revela aqui que o seu tema favorito de sempre dos Queen é... "Made In Heaven"! Wow. É o tema preferido do meu Pai (que me introduziu aos Queen) e também está firme no meu Top 10, mas não esperava que o Brian partilhasse desta opinião. Por fim, a inesperada revelação de uma música nova — "Floating In Space", uma colaboração com Graham Gouldman, que escreveu vários hits para os 10CC, os Yardbirds e os The Hollies. Em mais um alinhamento perfeito de estrelas (pun intended), o novo tema é sobre o telescópio espacial James Webb, que se espera trazer já  em Julho informação preciosa sobre a formação do Universo. Saio daqui fã de astronomia.

O meu momento fā aconteceu ainda antes do evento, no cocktail de recepção, quando o Brian apareceu de surpresa na sala onde eu estava tranquilamente a beber um copo de vinho. Depois de uma conversa com o staff, scanou a sala com os olhos e, quando os nossos olhares fizeram bingo, reconheceu-me, e dirigiu-se direito a mim. Agora imaginem as minhas pernas a tremer quando vejo o Brian May a sorrir enquanto vem na minha direcção. O que aconteceu nos segundos seguintes foi a conversa possível com um fã a tentar processar a informação que foi reconhecido pelo seu herói:

    Brian: Hi, nice to see you again, it’s been a long time!

    Nuno: I know, one year since Back To The Light!

    Brian: We need to do this more often!

    Nuno: Agree. Same time next week?

Antes da foto da praxe, ainda tive tempo de arrancar mais uma gargalhada e um high-five ao Brian quando lhe resumi "Another World" em três palavras: it fucking rocks. O que não lhe disse é que ele é o exemplo vivo, para todos vermos, que é possível cumprirmos os nossos sonhos. Mesmo se eles forem desenhados aos 12 anos e em direcções tão opostas como a guitarra e as estrelas.

sábado, 9 de abril de 2022

Os Pink Floyd do lado certo da história

O cronista musical da NiT e fanático dos Pink Floyd reflecte sobre o regresso da banda, em missão de ajuda ao povo ucraniano, e a desilusão que Roger Waters se revelou.


E eis que do nada, surge um novo tema dos Pink Floyd. O primeiro desde 2014, e a primeira gravação nova desde o maravilhoso "The Division Bell", de 1994. Dito assim, parece uma ficha pesada a cair; altíssima responsabilidade para com um legado de seis décadas, que produz novos fãs todos os anos e é hoje tão ou ainda mais forte do que quando a banda estava activa. Na verdade, foram apenas dois músicos que se juntaram para ajudar uma causa que merece toda a nossa atenção.

David Gilmour estava a gravar o seu novo álbum a solo quando a guerra eclodiu na Ucrânia. Chocado com os acontecimentos, David apressou-se a registar o seu apoio ao povo ucraniano nas redes sociais, e retirou das plataformas de streaming na Rússia a sua música a solo, bem como a discografia pós-Waters dos Pink Floyd. Esta retirada parcial da música dos Pink Floyd, juntamente com o silêncio do sempre activo e muito barulhento Roger, deixou-me logo um amargo na boca. Mas já vamos ao Roger.

Avô de dois netos meio-ucranianos, David está mais próximo da causa do país invadido. Depois veio a notícia do seu amigo Andriy Khlyvnyuk, vocalista do grupo Boombox que abriu para o David num show de beneficiência em 2015, que fora atingido por um estilhaço em confrontos com o exército russo e estava a recuperar no hospital. Khlyvnyuk tinha abandonado uma digressão americana dos Boombox, para se juntar ao exército ucraniano e defender o seu país. Dias antes do incidente, Andriy gravara um vídeo a cantar a capella o cântico patriótico "Oi u luzi chervona kalyna" nas ruas de Kiev, interrompendo o silêncio perturbador de uma cidade em guerra. 

Foi o áudio desse vídeo, gravado num iPhone, que serviu de inspiração para David Gilmour. Sabendo que o nome Pink Floyd ia gerar muito mais atenção, David ligou a Nick Mason e perguntou-lhe se estava a fim de gravar um tema, como Pink Floyd, para ajudar a Ucrânia. Recordo que Nick rejeitou todos os convites de David para colaborações nos seus discos a solo, respondendo sempre: "só estou disponível para os Pink Floyd". Assim foi.

"Hey, Hey, Rise Up!" foi lançado de surpresa na sexta-feira e, se já ouviram, perceberam rapidamente que não se trata de um tema "normal" dos Pink Floyd. Se é que existe tal coisa, entre o espólio de "Piper", "Ummagumma" e "The Final Cut". A única voz que ouvem é a de Andriy Khlyvnyuk, a cantar nas ruas de Kiev. De resto, temos de volta os solos da guitarra de David (a Telecaster 'Workmate', que sobrou do leilão de há 3 anos), e há espaço os drum fills de Nick respirarem na mix. É Pink Floyd. E tem mais edge do que tudo o que ouvimos no insípido "The Endless River".

Não é um "Echoes", um "High Hopes", ou um "Comfortably Numb". Mas não precisa. O que interessa é a mensagem e a mensagem é que já chega desta merda. Esta guerra à nossa porta tem que acabar e é reconfortante ver os meus heróis do lado certo da história. Enche-me o coração ver o David utilizar a arma poderosíssima que tem nas suas mãos (a marca dos Pink Floyd) para fazer o bem. Em sentido contrário, parte-me o coração ver o meu outro herói tornar-se num daqueles “tu não percebes, pá”, que me dão a volta ao estômago.

Permitam-me desabafar um pouco sobre o Roger Waters. O Roger é um dos meus heróis. Sou tão apaixonado pela paixão que imprime em tudo o que faz, seja a expelir a sua arte, ou a defender as suas causas, que dei o nome dele ao meu pastor alemão — e talvez por isso, o universo quis que ele tivesse uma personalidade irascível, como quem o baptizou.

Para além de amar a música, sempre defendi o Roger nas suas causas. Concorde-se ou não com as suas posições políticas socialistas (semelhantes às do David) mais polémicas, na Venezuela, ou na Palestina, tudo o que o Roger sempre fez foi pôr-se ao lado dos mais fracos. Ao lado dos venezuelanos, contra as sanções do gigante norte-americano. Ao lado do povo palestiniano, contra o massacre do poder israelita. Dar força aos fracos contra os fortes, sempre foi este o diapasão de Roger. Por isso é uma mágoa tão grande vê-lo tão tímido contra esta guerra. Roger fala em "nuances" na análise deste conflito, quando o próprio Roger é o homem menos nuanceado que já existiu. Tudo o que ele diz e faz é exposto em ecrãs gigantes, letras garrafais e gritos ao microfone em estádios. E é assim que gostamos dele. Mas o Roger precisa de acertar o seu compasso moral e o seu sentido básico de decência.

Mais: acredito que se o Roger não se tivesse tornado num "tu não andas a ler as notícias certas, pá", estaríamos agora a falar de uma reunião muito mais abrangente dos Pink Floyd. Partilho o sentimento do David quando disse que a posição do Roger "é uma enorme desilusão". Para todos os que perguntam se isto é Pink Floyd sem o Roger Waters, eu lembro que o Roger está há mais tempo fora dos Pink Floyd do que eu estou fora do útero da minha mãe.

Para além da ajuda ao povo ucraniano, há um outro lado, muito inteligente, no uso do nome Pink Floyd neste tema. Para quem não sabe, os Pink Floyd são mais populares na Rússia que o próprio Putin. Nos anos 70 e 80, quando os seus discos eram proibidos, criou-se um mercado negro massivo de produção de discos piratas dos Pink Floyd — sei bem disto porque tenho estas prensagens. Por isso não será a melhor maneira de chegar a um povo que não tem acesso a notícias fidedignas, e mudar umas quantas mentalidades, através da música? Putin só cairá quando os russos quiserem e o David está a tentar fazer a sua parte com as armas que tem. A isto chama-se estar do lado certo da história.

O novo tema dos Pink Floyd está aí e todos os lucros reverterão para Ucrânia por isso, comprem. É música, é Pink Floyd, é para ajudar, é um no brainer.

domingo, 3 de abril de 2022

Os Red Hot Chilli Peppers regressam a casa com "Unlimited Love", só que já lá não vive ninguém

"Unlimited Love" tem todos os elementos de um disco clássico dos Red Hot Chilli Peppers, mas onde está a faísca?

A notícia incendiou as redes sociais em Dezembro de 2019 — o mago da guitarra John Frusciante estava de volta aos Red Hot Chilli Peppers. "De onde nunca deveria ter saído", pensámos todos. Sacrificado foi Josh Klinghoffer, o guitarrista que substituiu Frusciante em 2009, quando este abandonou a banda pela segunda vez, repetindo a rebelião pós "Blood Sugas Sex Magik". Neste período com Josh, os Red Hot lançaram dois discos — "I'm With You" (2011) e "The Getaway" (2016), ambos desesperadamente insípidos, sem a chama que era tão característica da banda californiana.

O regresso de John antecipava mais uma nova era para os Red Hot Chilli Peppers, uma sexta vida para o gato que teima em ressuscitar. Sexta vida? Sim. A história dos Red Hot é uma história de tragédia e sobrevivência e pode ser capitulada com a presença, ou ausência, de Frusciante. Começando com os early years, do funk testosteronado com Hilel Slovak ao leme das guitarras e o sucesso morno de uma banda de culto. A banda perdeu Slovak para as drogas em 1988 e depois veio John, um miúdo fanático pelos primeiros discos da banda, mas também de Elton John, Kraftwerk e The Velvet Underground, a trazer uma renovada palete sónica que catapultou os Red Hot para a estratosfera — o álbum "Blood Sugar Sex Magik", um dos mais importantes dos anos 90, vendeu mais de 13 milhões de cópias. Na ressaca do sucesso, sem saber lidar com a fama e a braços com um problema de heroína, Frusciante saiu em 1992. 

Começa a terceira fase dos Red Hot, meio perdida, com várias experiências até chegar a Dave Navarro na guitarra e um disco mais dark — "One Hot Minute" — que hoje, em retrospectiva, podemos dizer que não foi assim tão mau quanto isso. Mas a banda estava à espera de John para voar novamente e o seu regresso em 1999 trouxe a segunda obra-prima da banda — "Californication". Foi "o" disco do meu liceu. Canções como o tema-título, "Scar Tissue", "Otherside", "Around The World", ou "Road Trippin," coloriram o único disco que juntava todos, sublinho TODOS no pátio, em unanimidade. A banda seguiu nesta quarta fase em ombros, com "By The Way" e "Stadium Arcadium" e os hits que não paravam de sair. Mas John saiu mais uma vez 2009, para explorar outros territórios musicais e os Red Hot voltaram a mergulhar na escuridão. Josh Klinghoffer era um guitarrista mais do que competente para disfarçar a ausência de John em palco, mas em estúdio a história é diferente. Compreende-se, pois, o entusiasmo do público, quando John regressou em 2019. Só que depois, já sabem, veio o Covid. 

Como quase todas as bandas de nomeada, sem poder levar a sua valiosíssima marca de estádio em estádio, a máquina dos Red Hot entrou em modo pausa. Nos bastidores, nascia o entusiasmante novo álbum da banda reunida com o seu talismã John Frusciante e o público ficou à espera de notícias do novo disco. Até este ano. "Unlimited Love" foi anunciado em Fevereiro, e chegou-nos na sua (longa) totalidade na última sexta-feira. É o primeiro disco da formação clássica dos Red Hot Chilli Peppers desde "Stadium Arcadium" em 2006 e confortavelmente o melhor desde então. Mas será que isso chega para pôr o disco na mesma prateleira dos astros do panteão discográfico dos Red Hot? Temo que não.

"Unlimited Love" é um disco tão fácil de ouvir, que quase se configura na categoria de easy-listening. Especialmente para os fãs veteranos de Red Hot. Nós, que andámos com a banda de mão dada através das suas várias vidas, conseguimos reconhecer todos os elementos familiares, que nos transportam para sons e tempos do passado — a entrega rap de Kiedis, o baixo pulsante de Flea, a batida potente de Chad e, claro, a guitarra melódica de John Frusciante, de que tantas saudades tínhamos. Mas onde está a chama? Onde está a faísca? Onde estão as melodias memoráveis e os solos de guitarra arrebatadores, que nos compelem a repetidas audições? Pomos o disco a tocar e, apesar da sua ultra-longa duração — 17 canções e 1 hora e 13 minutos — chegamos ao fim com relativa facilidade, como se de um disco de ambient music se tratasse. Essa é a parte boa. A parte menos boa é que num disco tão longo e tão igual, teremos dificuldade em relembrar quais foram os pontos altos. 

O meu ponto alto foi "The Heavy Wing", talvez a melhor possibilidade dos RHCP para um hit single. O álbum brilha mais intensamente quando Frusciante rasga um solo na sua Stratocaster, como no referido "The Heavy Wing", "The Great Apes" e "Watchu Thinkin'". São esses os momentos que nos fazem parar para ouvir, como antigamente.

Se há elogio que deve ser dado aos Red Hot, é à sua indelével capacidade de reinvenção, renascendo uma e outra vez para atrair novos públicos, regenerando a sua audiência como poucas bandas se podem orgulhar. Entre as várias fases da banda, estão pelo menos 3 ou 4 gerações diferentes de fãs e só a última era com Josh pode ser apontada como um falhanço em atrair novos seguidores. Infelizmente, também não será nesta sexta fase, com "Unlimited Love", que esse regeneração voltará a ter lugar.

"Unlimited Love" é um disco de regresso a casa para os Red Hot Chilli Peppers. Só que já lá não vive ninguém. A verdade, dura e crua, é que não há hits em "Unlimited Love". E isso pode ser doloroso para quem queria ver a sua banda favorita de volta às rádios generalistas com a mesma força que 1992, 1999, e 2006. Não vai acontecer. O sucesso mainstream de outros tempos já lá vai. 

A culpa não é só dos Red Hot e não só da relativa "mesmidez" de "Unlimited Love", vezes a mais em piloto automático. Há 20 anos, este álbum duplo teria sido recebido com o martelo da MTV a tocar os vídeos em loop e o disco, mesmo se fosse recebido tepidamente pela crítica, seria sempre um enorme sucesso. Mas estamos em 2022 e o Rock está maioritariamente moribundo, pelo menos para o mainstream. Os Red Hot Chilli Peppers são hoje uma relíquia do passado e teriam que ter na manga um disco extraordinário para repetir o milagre da ressurreição de 1999. O veredicto de "Unlimited Love" fica assim entregue aos ouvidos do tipo de ouvinte. Os fãs antigos da banda vão adorar o regresso a casa da banda da Califórnia. Todos os outros vão passar ao lado do disco.