Olhando para o caso do rapper catalão, urge discutir a liberdade de expressão em Portugal
Antes de mais, o contexto – Pablo Hasél, rapper catalão, foi condenado a nove meses de prisão efectiva por crimes de “ofensa à coroa” e “apologia do terrorismo”, devido ao que escreveu nas suas músicas e na sua conta de Twitter. Sim, os tweets foram a julgamento. Parece pueril, mas foi precisamente isto que aconteceu. Segundo o Guardian, a ofensa à coroa valeu-lhe uma elevada multa e a apologia do terrorismo, a pena de prisão efectiva. Como eu gosto de saber exactamente do que estamos a falar, fui à procura das famigeradas rimas que atiraram Pablo para a prisão. Créditos ao El Mundo pela antologia (fica aqui o link, onde também podem encontrar os tweets pelos quais ele foi julgado) e ao Google Translate pelas traduções do Catalão, depois adaptadas por mim (estou aberto a correcções):
- "¡Merece que explote el coche de
Patxi López!" – "O carro de Patxi López
devia explodir!"
- "No me da pena tu tiro en la
nuca, pepero. Me da pena el que muere en una patera. No me da pena tu tiro
en la nuca, socialisto" – "Não me importo que leves um tiro na
nuca, pepero [membro do PP]. Sinto muito por quem morre numa patera [barcaça
de emigrantes ilegais]. Não tenho pena de levares um tiro na nuca,
socialista."
- "Que alguien clave un piolet en
la cabeza de José Bono" – "Que alguém enfie um machado na cabeça
de José Bono."
- "Pena de muerte ya a las
Infantas patéticas, por gastarse nuestra pasta en operaciones de
estética" – "Pena de morte já para as infantas patéticas, por
gastarem o nosso dinheiro em operações de cosmética."
- "En mi escuela pública había
violencia y no era etarra sino de retratos de la monarquía encima de la
pizarra" – "Na minha escola pública havia violência e não era da
ETA, mas sim de retratos da monarquia no quadro."
- "Prefiero grapos que guapos. Mi
hermano entra en la sede del PP gritando ¡Gora ETA! A mí no me venden el
cuento de quiénes son los malos, sólo pienso en matarlos" – "Prefiro
grapos
a meninos bonitos. O meu irmão entra na sede do PP e grita “Gora
ETA!”. Eles não me vendem a história de quem são os bandidos, só penso
em matá-los."
- "Merece también un navajazo en
el abdomen y colgarlo en una plaza" – "Merece também uma facada no
abdómen e ser pendurado numa praça."
- "Que li fotin una bomba, que
revienten sus sesos y que sus cenizas las pongan en la puerta de la
Paeria" – "Que lhe atirem uma bomba, expludam os seus miolos e
coloquem as suas cinzas na porta da Paeria”
Então o que é que temos aqui? Rimas desagradáveis? Check. Conteúdo ofensivo? Check. Ofensas à família real? Check. Referências abonatórias a terroristas? Check. Ameaças concretas à integridade física de alguém? Não me parece. Razão para prender um homem? De maneira nenhuma. Mas isso digo eu. Já a lei espanhola diz outra coisa.
Em Espanha, ofender a coroa é crime. É uma daquelas regalias centenárias da monarquia, um regime que, não se achando suficientemente ancorado no século XIX devido ao nepotismo, consegue superar-se com uma lei tão retrógrada que desafia a segunda emenda americana relativa às armas. A somar a isso, o passado traumático com a ETA ditou que a lei espanhola fizesse da humilhação de vítimas de terrorismo – um conceito tão perigosamente subjectivo –, uma apologia ao terrorismo e como tal, um crime punível com pena de prisão. Para o juíz que dissecou as letras das músicas e os tweets de Pablo Hasél, foi Checkmate.
Agora que já vimos que a liberdade de expressão está seriamente comprometida em Espanha, vamos ao caso português. Pedir a intervenção do Estado Português, como faz a petição referida em cima, quando a justiça do nosso país é ainda mais useira e vezeira neste tipo de sentenças, é risível. O Código Penal prevê um Capítulo inteiro de regime jurídico de crimes contra a honra, entre os artigos 180º e 189º, compreendendo as figuras de Difamação, Injúria e Calúnia. A somar, temos a cereja no topo do bolo que é o artigo 328º, que diz que "quem injuriar o Presidente da República (…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa". Um artigo que o inenarrável Cavaco adorava. Ou seja, andamos a aqui a maldizer a justiça espanhola e nós temos uma lei que é em tudo equivalente. A grande diferença entre Portugal e Espanha? É que os rappers daqui, pelo menos os que têm mais visibilidade, têm mais decoro. Mas mesmo esses são “capazes” (pun intended) de levar por tabela. Basta nos lembrarmos da estúpida polémica do videoclipe do Valete para o tema “BFF”.
Não tenho formação em Direito para vos explicar ao certo a abrangência legal das figuras jurídicas que elenquei em cima, mas elas estão no Código Penal para serem aplicadas e são-no com bastante frequência. Prova disso é que o Estado Português é um dos recordistas europeus no número de condenações por violação da liberdade de expressão no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Confusos? Eu explico. Enquanto o Código Penal português tem, como já vimos, um capítulo inteiro dedicado à defesa da honra individual, o TEDH toma esse direito como secundário em virtude da liberdade de expressão. Por isso sucede que muitos do que são condenados por estes crimes em Portugal recorrem para o tribunal europeu, que neste enquadramento jurídico anula as sentenças nacionais e obriga o Estado a indemnizar o condenado.
Portanto, temos aqui um caso interessante, em que a Europa evoluiu em direcção à liberdade de expressão, em contraciclo relativamente a alguns dos seus países membros, que por sua vez são obrigados a pagar somas substanciais a quem é condenado por crimes desta índole. E não sairemos disto enquanto os países se adaptarem. Ou em alternativa, saírem da União como o Reino Unido, e assim verem os seus tribunais soberanos novamente. Recordo que este foi um dos argumentos de quem defendia o Brexit. Se Portugal está no pelotão da frente da lista das indemnizações compensatórias, podemos concluir que temos também um longo caminho em direcção à liberdade de expressão.
E é por isso que, mais do que defender Pablo Hasél, me interessa fomentar esta discussão. Se chegaram até aqui, perceberam que a questão de fundo sobre a liberdade de expressão, mais do que de opinião, é de legislação, que me parece demasiado ancorada em conceitos de séculos passados. É urgente discutir este assunto à luz do século XXI e é urgente mudar a lei. A interpretação da lei é vaga, mas só deve limitar a nossa liberdade de expressão na estrita necessidade de defender valores inalienáveis. A violência que temos assistido nas ruas espanholas não devia estar associada a esta causa, uma vez que isso é, e deve continuar a ser, crime. Mas temo que os protestos nas ruas serão porventura a única maneira de chamar a atenção do país para esta discussão. “O respeitinho é muito bonito”, sim, mas a sociedade deveria ter mecanismos próprios – começando pela educação, que não me canso de referir ser o maior pilar da sociedade –, para se regular contra imbecis, sem ser preciso metê-los na cadeia por delito de opinião.
Bem sei que Hasél não é santinho nenhum. Para além da condenação por injúria à coroa, o rapper também levou uma sentença de dois anos e meia por ameaçar matar um homem num bar e outra de seis meses por atacar um jornalista em 2016. Relativamente a isto, não há nada a dizer. Não posso gritar “Libertem Pablo Hasél” ao som do “Soltem os Prisioneiros” dos Delfins, porque ele vai ter sempre que cumprir pena por estes crimes. Mas os nove meses de pena que levou por músicas que escreveu e tweets que publicou são absolutamente abomináveis para o senso comum e para a justiça também o deveriam ser. É nisto que assino o meu nome em defesa de Pablo Hasél. Pablo não levou estes nove meses por algo que fez; levou pelo que escreveu, cantou e tweetou. E se olham para as letras com nojo (o que é legítimo), convido-vos a olharem para o vosso histórico nas redes sociais; podem ter uma surpresa. Dir-me-ão que, ao defender Hasél, estou a dar voz a um imbecil. Ainda por cima a um imbecil que faz má música. Talvez. Mas que eu saiba, a imbecilidade não é crime. E a música má também não. Nada na música de Pablo Hasél me move em sua defesa, a não ser o seu direito em fazê-la. Esse, sim, é inalienável.
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