Reflexão sobre heróis e vilões na semana da reedição do álbum "Imagine"
"Ou morres como um herói, ou vives tempo suficiente para te veres transformado num vilão", já dizia Harvey Dent, o ficcional-mas-tão-real-personagem da série Batman, prevendo inadvertidamente a sua transformação de herói como chefe da polícia de Gotham City para o vilão Two-Face. John Lennon morreu cedo e ficou assim gravado na história como um herói. Ainda bem para a sua memória. Tivesse ele vivido até aos tempos da devassa da vida privada e julgamento público sumário pela brigada de novos puritanos dos dias hoje, e as coisas seriam bem diferentes.
Vem esta reflexão a propósito da reedição do álbum mais popular da carreira a solo de John nesta semana. "Imagine" foi lançado em 1971, sucedendo ao catártico "Plastic Ono Band" do ano anterior e congrega mais um lote de temas viscerais e confessionais. Um álbum à John, portanto.
"Imagine" contém o maior número de faixas reconhecíveis pelo grande público: "Jealous Guy", popularizado pelos Roxy Music em 1981; "Oh Yoko!", que aparece no filme "Rushmore", de Wes Anderson (1998); e obviamente, o tema-título "Imagine", que aparece em todo o santo lado desde o seu lançamento em 1971, tornando-se na canção mais conhecida (e overplayed) dos catálogos dos Beatles a solo.
Mas a beleza de "Imagine" (o álbum) vai muito para além dos três temas de maior nomeada. O tema mais bonito do álbum é o confessional "How", onde John despeja todas as suas inseguranças: "How can I have feeling when I don't know if it's a feeling?" / "How can I give love when love is something I ain't never had?". Lindo, lindo, lindo. E isto com o background da finíssima produção wall-of-sound de Phil Spector, que no ano anterior já tinha ornamentado o melhor álbum de sempre dos Beatles a solo — falo obviamente do majestoso "All Things Must Pass", de George.
https://www.youtube.com/watch?v=Li7xH_E9w58
Mas há mais.
Falta-me falar do melhor de tudo. Em 1971, John Lennon e Paul McCartney viviam em guerra, fruto da amargura post-break-up dos Beatles. Depois de ver o primeiro álbum de Paul — "McCartney", de 1970 — ser arrasado pela crítica, John aproveitou o momento menos feliz que Paul vivia para dizer que sentia pena dele e que este andava perdido sem os Beatles. A resposta de Paul veio no tema de abertura do seu álbum seguinte — "Ram", de 1971 —, "Too Many People", onde Paul refere que há demasiada gente preocupada com o que os outros andam a fazer e a dizer-nos o que temos que fazer das nossas vidas, numa referência quase óbvia ao activismo agressivo de John e Yoko. Foi um ataque da parte de Paul, é certo, mas também foi um ataque "à Paul", uma palmada quase inofensiva. Mas John não estava para palmadinhas.
"How do You Sleep?" é de uma selvajaria sem paralelo. John descarrega toda a sua ira em cima de Paul e cada linha é uma entrada a pés juntos, com referências específicas a assuntos mal resolvidos e ataques pessoais do mais alto nível de ressabiamento: "Those freaks was right when they said you was dead" (referência à teoria da conspiração que Paul tinha morrido em 1966) / "The only thing you done was Yesterday" (referência ao single dos Beatles) / "And since you've gone you're just Another Day" (referência ao single mais recente de Paul à data). Quem toca guitarra no tema é George, esse mesmo, que na altura também em conflito com o Paul. Ringo também estava no estúdio, mas não quis gravar "How Do You Sleep?", tendo até gritado "That's enough, John", antes de se ir embora frustrado com o ponto a que as relações entre os velhos amigos tinham chegado.
Adoro o Paul e a verdade é que a História provaria que era ele quem estava certo na maioria dos diferendos com John (caso do manager Alan Klein, que também contribuiu para a letra deste tema), mas a verdade é que "How do You Sleep?" confirma a teoria que John estava no seu melhor quando estava no seu pior. John podia não estar certo, mas as emoções que ele deixa gravadas em fita são verdadeiras. São puras, cruas, sem filtro. São a verdade para ele, naquele momento. E é precisamente isso que faz dele um dos maiores artistas da música popular da História. Não importa se ele está correcto. Não importa se ele é um herói, ou um vilão, ou ambos. Importa apenas que ele foi verdadeiro consigo e com a sua arte e por isso o que ele deixou gravado foi a (sua) verdade.
Anos mais tarde, John confessou que se arrependera da canção, não pela canção em si, mas porque era tão directamente sobre o Paul, o que acabou por desviar a atenção do tema em si, que é um excelente tema. Para mim, é "só" o melhor da discografia a solo de John.
Os discos a solo de John são como que actas de sessões de terapia psicanalítica. Talvez por isso sejam tão inconsistentes e talvez por isso a sua carreira a solo seja tão ignorada. Ninguém quer olhar para John como ele é, preferimos manter a imagem estereotipada de um puto rebelde, de um excêntrico a lutar pela paz numa cama com uma chinesa, ou de um mártir que caiu aos pés de um louco. Mas John é muitíssimo mais complexo que isso. John está longe de ser perfeito, mas não é por isso que não o devemos amar por aquilo que ele é. Quem de nós é perfeito, anyway? Que direito temos de julgar quem se deu todo à sua arte e fez tudo o que podia para mudar o mundo
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