O cronista da NiT e fanático dos Queen foi à estreia mundial em Londres e traz a review do filme que chega para a semana a Portugal
"Bohemian Rhapsody" foi exactamente o desastre olímpico que eu esperava que fosse. O filme é uma espécie de versão Disney da história dos Queen: limpinho, lavadinho, uma visão higienizada de Freddie Mercury que se pode mostrar às crianças e imprimir em livros de colorir. Em Maio escrevi aqui que com os dados que estavam lançados, só podíamos temer o pior e as expectativas confirmaram-se. O Dr. Brian May é um homem de muitos talentos — um dos mais inventivos, melódicos e singulares guitarristas da história da música; um astrofísico brilhante; um protector felino do seu legado — mas infelizmente, a produção de filmes não é um desses talentos. Foi exactamente por isso que Sacha Baron Cohen abandonou o projecto, quando percebeu que o instinto protector de Brian não iria permitir o filme ganhar as asas que merecia.
Antes de mais, deixem-me desmontar um mito que se criou quando começaram a sair as primeiras fotos e os primeiros trailers do filme: Rami Malek não é um bom Freddie Mercury. Ele imita-lhe os movimentos, sim, mas não conseguiu capturá-lo. Para se ser Freddie, não basta imitar-lhe as poses; não basta arranjar um treinador de movimentos para copiar exactamente como Freddie se movia do Ponto A para o Ponto B. Não chega. Para se ser Freddie, é preciso entender Freddie. É preciso fazer os mesmos movimentos, mas com a mesma força, a mesma confiança e a mesma autoridade. É preciso perceber que este era um homem extremamente inseguro que, quando lhe davam um microfone para a mão, era o Rei do Mundo e não tinha dúvidas disso (e não estou a ser metafórico).
Atente-se por exemplo na célebre performance do Live Aid: reparem como Freddie comanda uma audiência de 80 mil pessoas no Wembley e 2 mil milhões de pessoas em casa como se de um exército se tratasse; como ele ordena o público a segui-lo — "I like it, SING IT AGAIN!" — e todos o fazem com um sorriso nos lábios, como quem está a carpir mágoas numa experiência metasensorial. Não se sente nada deste poder em Rami Malek. Tudo é mecânico, forçado e sem vida, como se estivesse a reproduzir uma coreografia num musical. Há muito pouco de Freddie em Rami. Lamento, mas meter uma dentadura não chega.
Em defesa de Rami Malek, devo dizer que a tarefa que tinha entre mãos era extraordinariamente difícil. Mas temo que na preparação do filme, ele nunca tenha percebido isso. Eu entendo que Rami não tenha tempo para perder em tamanha dedicação. Afinal, há mais filmes e séries para gravar. E não há problema nenhum com isso, entenda-se. Rami Malek é um bom actor, mas não é o actor que Freddie precisava. É muito poucochinho. Era preciso estudar, ver horas, dias, semanas, meses de vídeos de concertos, entrevistas e filmagens do "boring Freddie" para se perceber a extrema riqueza, profundidade e complexidade deste homem tão brilhante e perturbado. Era preciso tempo e dedicação. Era o papel de uma vida. Era preciso um method actor. Como por exemplo, se bem se lembram, Sacha Baron Cohen.
Dito isto, a performance de Rami Malek está longe de ser o pior de "Bohemian Rhapsody". É apenas aquilo que salta mais à vista para um fã dos Queen mais atento. Isso e as inúmeras imprecisões históricas, que vão muito para além do moustachegate de que falei na semana passada (os Queen a gravarem "We Will Rock You" com Freddie Mercury de bigode). A banda sonora já tinha dado a dica, com um alinhamento cronologicamente todo trocado, mas que é exactamente aquilo que vemos no verdadeiro caos factual que é "Bohemian Rhapsody".
As coisas começam logo mal quando vemos os Queen numa digressão americana em 1974-1975 ao som de "Fat Bottomed Girls", escrito em 1978 (altura em que Freddie já tinha cabelo curto e se vestia em cabedal integral). Mais à frente, vemos Freddie a explicar a Mary Austin que "Love Of My Life" foi escrito para ela, enquanto lhe mostra imagens (reais) de um concerto no Rio de Janeiro que na realidade ocorreu 10 anos mais tarde (1985), mas com Freddie a utilizar um stage costume de 1976. No filme, "We Will Rock You" (1977) é composto em 1980 e "Another One Bites The Dust" (1980) é escrito em 1982 para terminar uma discussão do grupo na gravação do álbum "Hot Space". Para quem conhece a história dos Queen, tudo isto é no mínimo bizarro.
Daqui para a frente, a História como-realmente-aconteceu é completamente deitada pela janela fora. O caos é total, com o filme a contar uma narrativa dos Queen nos anos 80 que simplesmente não aconteceu, muitas vezes através de cenas parodicamente dramatizadas, que mais parecem saídas de uma telenovela mexicana. E tudo culmina no bizarro dia do Live Aid em que, no mesmo dia, Freddie consegue encontrar o homem que tinha tomado o seu coração 5 anos antes (Jim Hutton), leva-o a tomar chá a casa dos pais, reconcilia-se com Mary Austin e ainda faz o Live Aid. Há dias que têm 5 anos, de facto.
Mas não pensem que o pior do filme é esta embrulhada temporal. O filme trata a maiorias dos episódios da História dos Queen pela rama, preocupando-se em demasia em enunciar o maior número de factos, sem lhes dar o devido contexto. Porque é que as coisas aconteceram como aconteceram? Não interessa, é preciso andar mais uns anos, que o filme não pode ser muito longo. E isto reflecte-se na profundidade das próprias personagens. Na verdade, à excepção de Freddie, Mary Austin e Paul Prenter (o grande vilão da história), nenhum dos personagens do filme têm personalidade própria. Todos se limitam a deixar-se levar mecanicamente de episódio em episódio, como se fossem props do filme, para relatar vagamente e em ordem caótica factos que se passaram na história dos Queen.
Dos personagens, sabemos que o Brian é um astrofísico, que o Roger gosta de gajas e que o John não tem interesse nenhum. E sabemos disto porque o Freddie o diz numa das muitas cenas interrompidas por "momentos informativos" em que se sente o evidente toque do Dr. Brian May, que quer deixar bem claro quem-disse-o-quê e assim esclarecer a audiência sobre quem estava do lado certo da história (entenda-se: Brian e Roger estavam certos, contra Freddie e John).
"Bohemian Rhapsody" vale por ser uma (sempre pertinente) celebração dos Queen. Nem tudo é mau. Em primeiro lugar, a música. Aqui, não havia que enganar. A utilização de gravações originais dos Queen no filme foi uma decisão acertada e se aqueles ensaios para o Live Aid são gravações genuínas do Freddie a desafinar e a perder a voz, então tiro o meu chapéu ao Dr. Brian May, porque temos ali um tesouro.
O ponto alto do filme é a composição do tema "Bohemian Rhapsody" nos Rockfield Studios (uma quinta no Sul de Gales) . Aqui sim, é deixado o espaço e o tempo suficiente para a acção respirar e o filme se desenrolar. É precioso ver o método criativo de Freddie a compor a letra da canção, numa altura que se apercebia da sua sexualidade. É maravilhoso ver o Freddie obsessivo a puxar a voz de Roger Taylor aos limites para só mais um Galileo. É magnífico ver Freddie picar Brian para melhorar o seu solo de guitarra: "Está bom, mas agora toca como se a canção fosse tua!". É uma cena que vale o preço do bilhete do filme. Essa e o impressionante CGI que recriou o (entretanto demolido) Estádio do Wembley para a cena do Live Aid. O filme utiliza o áudio original dos Queen no Live Aid e se a performance de Rami Malek é demasiado mecânica, toda a caracterização que rodeia a cena é absolutamente irrepreensível.
A escolha dos restantes actores também foi na generalidade feliz. O actor que faz de Brian May é mais parecido com o Brian May que o próprio Brian May. O actor de John Deacon também é inacreditavelmente igual. Já para Roger Taylor, não conseguiram encontrar um actor que ficasse tão bem vestido de mulher como o Roger (não era fácil). Bob Geldof também está brilhantemente representado, assim como Jim Hutton e Bono Vox, que faz uma aparição relâmpago no início do filme no backstage do Live Aid. Se a preocupação com a caracterização foi evidente, que dizer do guarda-roupa, que é simplesmente fenomenal. Todos os fatos de Freddie estão lá e toda a gente parece saída da década de 70 e 80. Quando não está tudo trocado, claro.
Tenho que vos confessar: é muito difícil para mim escrever uma review de "Bohemian Rhapsody" nestes termos. Durante toda a carreira dos Queen, eles sempre foram arrasados pela crítica, que nunca compreendeu o apelo marginal da banda. Hoje, parece que sou eu que estou a tomar esse lugar. Mas não é assim. Há poucas coisas que eu ame tanto na vida como os Queen (a minha família e pouco mais). Mas por isso mesmo tenho a certeza que os Queen mereciam mais que este filme tão pobrezinho. O último desejo de Freddie ao seu manager Jim "Miami" Beach foi "Faz o que quiseres com a minha música; só nunca me faças parecer aborrecido". "Bohemian Rhapsody" não faz propriamente Freddie parecer aborrecido, mas fá-lo parecer infinitamente menos interessante do que realmente foi. É pena.
A história dos Queen merece de facto ser contada. O problema é que é demasiado ultrajante para ser contada num filme para crianças. Que é exactamente o que "Bohemian Rhapsody" é: uma introdução aos Queen para crianças, um "Queen for dummies", visualmente acurado, mas sem nenhuma profundidade. Ou então sou eu que sou demasiado exigente com a banda que me fez apaixonar pela música.
P.S.: Se quiserem saber a verdadeira História dos Queen, como ela aconteceu, na correcta ordem cronológica e com o foco naquilo que realmente interessa — a música — então é ouvirem o especial "Queen: A Concert Through Time And Space" na NiTfm, com a primeira parte dedicada aos anos 70 e a segunda parte dedicada aos anos 80. Tudo livre de qualquer higienização e brutalmente honesto.
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