A minha bipolaridade antes e depois de ver o trailer de "Bohemian Rhapsody"
Antes de ver o trailer (texto escrito na noite de 14 de Maio):Vem aí "Bohemian Rhapsody", o filme que promete trazer a história não contada de Freddie Mercury e da música dos Queen. Ora, sendo eu um fã irremediável dos Queen e sendo o Freddie — em quem se centra a história do filme — o meu herói de sempre, só posso estar a vibrar de excitação. Certo? Certo?! Errado.
Por mais que eu devesse estar entusiasmado com um filme sobre a vida do meu herói, não consigo deixar de pensar que vai ser um desastre de proporções épicas. O filme tem tudo para correr mal. Este é, aliás, um desastre anunciado desde há 8 anos. Lembro que foi em 2010 que se deu o início da produção do filme e foi feito o casting de Sacha Baron Cohen. Sacha que, 6 anos depois, se fartou dos Queen e mandou o projecto mais ambicioso da sua vida às malvas. Claro que quando digo "fartou-se dos Queen", quero realmente dizer "fartou-se de Brian May", o verdadeiro (único?) timoneiro do porta-aviões da banda britânica neste momento (o Roger quer é copos, caça e bater em tambores). Adoro o Brian, mas ele é um control freak e os anos infinitos de produção falhada do filme evidenciaram que ele estava a tentar polir ao máximo a imagem do Freddie. O afastamento do Sacha foi provocado por essa mesma diferença criativa .
É isto que me deixa com suores frios. Todos os sinais apontam para uma total higienização de Freddie Mercury em "Bohemian Rhapsody". E o que me chateia mais nem é a possível distorção dos factos da sua vida (que até pode ser compreensível, em função de um enredo mais cinemático), mas sim a higienização da sua personalidade. Temo que o filme pinte Freddie como um herói impoluto que não foi de maneira nenhuma. Temo que a preocupação em preservar a imagem lhe apague todas as nuances, todas as linhas turvas que eram precisamente as que lhe conferiam maior beleza e de onde nasceram as suas melhores obras. Obras como o tema-título do filme, "Bohemian Rhapsody".
Não tenho medo de ver os defeitos nos meus heróis. Pelo contrário. É nos defeitos que eles mostram humanismo. Vejo beleza na sua complexidade e até na sua falência. Sacha Baron Cohen parecia o perfect fit para o personagem — denso, misterioso e personalidade forte. Rami Malek de Mr. Robot? Não tenho tanta certeza. Pelo menos aceitou à partida as condições impostas pela banda. Mas quem sou eu para o criticar? Eu também aceitaria tudo o que me pusessem à frente, só pela oportunidade de ser o Freddie.
A preocupação de Brian May tem algum fundamento. Nesta era em que o politicamente correcto esmaga todas as formas de expressão livre em favor de versões lixiviadas da realidade, é um desafio fazer um filme sobre os insanos anos 70 e loucos 80s que tenha apelo universal. Mas tanto polimento vai inevitavelmente fazer sofrer o produto final. Um filme sobre Freddie Mercury que não é para maiores de 18 anos? Please.
Compreendo que a banda queira centrar o enredo na música, mas para se contar a verdadeira história de Freddie Mercury, é preciso sujar as mãos. E muito. Se queriam um filme fiel à realidade, talvez o melhor realizador para o projecto fosse o infame Gaspar Noé, que acabou de ir a Cannes com mais uma sangria de sexo, música e alienação. E olha, não foi precisamente assim a vida do Freddie?!
O enredo de "Bohemian Rhapsody" não é difícil de adivinhar e pelo que Brian May deixou escapar no Instagram, até já foi ensaiado no documentário "Days of Our Lives". Querem uma aposta? Lembrem-se que leram aqui primeiro:
A história começa com quatro rapazes que se conhecem no Imperial College em Londres e que rapidamente ganham notoriedade às costas do seu extravagante frontman. A banda faz três álbuns sempre em crescendo de popularidade, mas vê-se na bancarrota, apesar do sucesso. É aqui revelado o primeiro vilão da história, o manager dos Queen, que a banda descobre, lhes anda a sugar o dinheiro.
Os Queen são salvos por John Reid, manager de Elton John que, reza a lenda, diz aos Queen para não se preocuparem com mais nada sem ser fazer o melhor álbum de sempre. A banda vai para estúdio gravar "Bohemian Rhapsody", tema que é inicialmente rejeitado pelas rádios, mas mais tarde descoberto por Kenny Everett — DJ da BBC que fica obcecado com a opereta de Freddie — e passa o tema 14 vezes num só dia. Os Queen levantam voo e planam alto sobre os anos 70, chegando ao topo do mundo em 1980, com o sucesso retumbante de "Another One Bites The Dust" nos EUA.
É aqui que entra o segundo vilão da história: Paul Prenter. Freddie nomeia Prenter como o seu assistente pessoal e este dá-lhe a conhecer a louca vida gay de Nova Iorque no início dos anos 80 (vida essa que culminou na doença que o matou). Prenter, que achava que Freddie era maior que os Queen, convence-o que a banda deviam soar como a música que eles ouviam nas discotecas que frequentavam. Isto cria uma clivagem nos Queen, com Brian e Roger de um lado a quererem seguir a sua herança Rock 'n' Roll, Freddie e Prenter do outro a quererem adoptar uma linguagem mais gay e John, fã dos Chic e do movimento Disco, no meio a tentar equilibrar as coisas.
Deste choque resulta o álbum "Hot Space" e a inevitável implosão da banda, que infelizmente nunca chega a um equilíbrio em estúdio. A clivagem é notória e o álbum sofre com a sonoridade de duas bandas diferentes, cada uma a tocar para seu lado. O equilíbrio chegaria mais tarde em palco, quando os rapazes são obrigados a tocar em conjunto e ser uma banda novamente. Os Queen fazem finalmente das canções de "Hot Space", canções dos Queen e embarcam numa das melhores digressões da sua História, que acaba num triunfante concerto em Milton Keynes (mais tarde lançado em DVD como "On Fire At The Bowl"). Esta comunhão não é suficiente para manter os Queen vivos e a banda acaba por se separar, embora tal nunca seja oficialmente admitido.
Freddie vai a solo e recebe mais dinheiro sozinho para "Mr Bad Guy" do que os Queen receberam para "Hot Space", irritando ainda mais a banda. O disco adopta uma sonoridade full on gay club e, como se pode adivinhar pelo facto de ninguém se lembrar dele nos dias de hoje, é um espectacular falhanço. A banda reforma-se para "The Works", um álbum muito mais sóbrio que é bem recebido pelo público.
Mas como um mal nunca vem só e não há duas sem três, o terceiro naufrágio dos Queen acontece quando a banda tem a infeliz ideia de fazer uma residência em Sun City, terra do Apartheid, no Outono de 1984. A crescente consciencialização social dos anos 80 não perdoa os Queen pela ofensa e a banda cai em desgraça. E é aqui que, caído do céu, surge o Live Aid. Os Queen vêem no evento uma oportunidade de redenção e contra todas as expectativas e uma doença de Freddie cuja gravidade ainda não era bem entendida, fazem a melhor actuação da história da humanidade. O filme termina com Freddie e os Queen em glória.
E aí têm, a história dos Queen e o mais-que-provável plot do filme em apenas sete parágrafos. Já foi contada em "Days Of Our Lives" e não vejo a necessidade de voltar a fazê-lo neste filme. Os Queen estão a andar sobre gelo muito fino e qualquer passo em falso será fatal. Posso estar redondamente enganado acerca de "Bohemian Rhapsody", mas os sinais não são nada animadores. Atentem só no cartaz do filme:
O mau gosto deste cartaz é de uma atrocidade indizível. Começando pela cor azeiteira, passando pelo reflexo do grafismo dos Queen nos óculos e terminando no lema do filme, que inexplicavelmente não é uma linha escrita por Freddie Mercury. E tanto que havia por onde escolher. "Anyway the wind blows" teria sido perfeito, ainda mais sendo do tema-título do filme.
Obviamente que vou ver "Bohemian Rhapsody", mas levo poucas ou nenhumas expectativas. O último pedido de Freddie a Jim Beach (manager dos Queen desde 1978) foi "façam o que quiserem com a minha música, mas por favor nunca me tornem aborrecido." Espero que Brian May se tenha lembrado disso a fazer este filme.
Depois de ver o trailer (texto escrito na noite de 15 de Maio):
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