Bem-vindos à máquina — crónica da noite em que Roger nos submeteu à sua centrifugadora sensorial
Vi o Roger pela primeira vez em 2002. Foi o meu primeiro grande concerto e a experiência marcou-me de tal forma que nunca mais quis outra coisa. Passei a minha vida em busca de voltar a agarrar aquele momento efémero de puro êxtase que só é possível obter num concerto, um bingo dos sentidos que nenhum outro evento na vida é capaz de dar. Voltei a apanhá-lo diversas vezes ao longo dos anos e foi no Atlântico que vi o maior espectáculo visual da minha vida, quando cumpri o sonho de ver ao vivo o show do The Wall em 2011.
Embora nunca tenha estado com o Roger pessoalmente, na minha mente a nossa relação é estreita. Foi ele quem me guiou durante a adolescência, trancado no bunker do meu quarto. Para além do meu Pai, nenhum homem me influenciou tanto e marcou tanto a minha vida como o Roger. É um herói, um ídolo. Amo-o. Amo-o com tanta força que o queria beijar na boca. E talvez por isso mesmo ainda bem que nunca tenhamos estado juntos.
Mas já chega de mim, vamos ao Roger. Como todas as mais interessantes personalidades da História da Humanidade (onde ele a seu tempo terá o seu espaço), o Roger é uma figura altamente polarizante. Basta escavar em qualquer caixa de comentários para percebermos que as opiniões se dividem em dois grandes campos: Roger é um génio e Roger é uma besta. E ambos poderão ter absoluta razão.
É compreensível a reacção aos seus anticorpos — a personalidade obnóxia, as opiniões vincadas sobre religião e o conflito entre Israel e Palestina, a forma como tratou o David Gilmour e fez implodir os Pink Floyd — não é fácil gostar de Roger Waters. Do outro lado está o seu incomensurável génio. É da cabeça dele que nascem os conceitos de álbuns maiores que a vida como "The Dark Side Of The Moon", "Animals" e "The Wall", obras de um génio louco e perturbado que não podem ser desligadas de uma personalidade irascível. Avé ao Deus David, cheio de graça, que sofreu pelos nossos pecados e aturou o Roger durante tanto tempo — o tempo suficiente para que pudéssemos desfrutar daquelas obras-primas que engrandecem as nossas vidas.
E é dessas obras que sai o núcleo duro da digressão que Roger trouxe a Lisboa. "Us + Them" (sendo "them" os "outros", todos aqueles que não têm a sua visão) serve de promoção ao seu (excelente) último álbum "Is This The Life We Really Want?", mas é dos clássicos que a maioria da audiência espera. E Roger já chegou a uma idade em que (finalmente) quer dar ao público o que o público quer. É um Roger diferente, este que veio a Lisboa. Mais calmo e meloso, com mais vontade de construir pontes em vez de as queimar. Claro que pelo meio destrói meia dúzia de figuras da política sem dó nem piedade (com Trump no olho do furacão), mas é assim o Roger que nós conhecemos e amamos.
Uma das derivas megalómanas de Roger é que foi ele quem inventou o espectáculo Rock. E se esta afirmação pode não ser totalmente consensual (deveria ser), já na questão de quem faz o maior, mais grandioso, mais meticulosamente calculado espectáculo Rock, aí não há espaço para dúvida — Roger é o mestre desta arte. E quem foi ao Atlântico pôde testemunhar isso na primeira pessoa.
Desde logo pela qualidade sónica do espectáculo. Se já assistiram a um concerto no Atlântico, sabem que a acústica da sala pende entre o mau e o aberrante, um problema de fundo que nunca foi resolvido desde a sua inauguração há vinte anos. Ninguém consegue pôr som em condições naquela sala. Ninguém, com uma única excepção: Roger Waters. Sempre. Entenda-se, os técnicos de som do Roger são tão experientes que conseguiriam pôr música em qualquer casa de banho do mundo. Para eles o Atlântico é só uma segunda-feira. O sistema quadrifónico do Roger enche o Atlântico com minúcia e mestria. Explosões, gritos e todo o tipo de efeitos sonoros atacam-nos por todos os lados, ao mesmo tempo que os instrumentos ouvem-se com claridade e separação. Uma maravilha para os sentidos.
Depois há a componente visual e se Roger é Messi no som, na imagem é Jonas e Cristiano Ronaldo e Eusébio e Pelé e Maradona e Poborsky, tudo ao mesmo tempo. Não há nada nem ninguém sequer minimamente comparável. O momento em que o cenário da Battersea Power Station baixa (não consigo fugir do meu local de trabalho) em "Dogs" vale por si só o preço do bilhete. Todos os que ali estiveram vão contar aos filhos e netos da magnificência daquele momento. O início do segundo set é, aliás, o ponto alto de todo o espectáculo, beneficiando do rico imaginário do álbum "Animals". Segue-se "Pigs (3 Different Ones)" e um porco insuflável gigante viaja pelo Atlântico com a mensagem "mantém-te humano", enquanto imagens de guerra são projectadas no cenário da Power Station. Mais uma maravilha para os sentidos.
Para quem ainda não tinha as pupilas cocainamente dilatadas, Roger dá uma última machadada nos sentidos desenhando o prisma da capa de "The Dark Side Of The Moon" sobre a plateia em "Eclipse". Se por esta altura não estão ainda em completo deslumbramento sensorial, então o melhor é irem ver isso a um cardiologista.
O espectáculo de Roger é uma centrifugadora sensorial. Ele trabalha cada um dos nossos sentidos e submete-os a uma lavagem tal que, no fim do programa, eles saem da máquina lavadinhos, prontos para enfrentarem o mundo cão e mau lá fora mais uma vez (como fazia na minha adolescência). Só quem foi ao Atlântico sabe, só quem foi é que viu, só quem foi sentiu. Entrámos no Atlântico com o peso dos nossos problemas, levámos uma tareia emocional lá dentro e saímos leves, limpos e a levitar.
O momento de maior beleza da noite é guardado para o encore. Sem os adereços dos temas dos Pink Floyd, Roger abre-nos o coração na lindíssima sequência "Wait For Her" / "Oceans Apart" / "Part Of Me Died" que fecha o seu último álbum. Revela-nos que está apaixonado, que finalmente encontrou o amor verdadeiro. E de repente aquela noite de explosões, prismas e porcos a voar ganha uma nova dimensão espiritual.
As comparações com David são inevitáveis. Apesar de tocarem a mesma música, os concertos de um e outro são experiências completamente diferentes. Do lado do David, a preocupação é quase exclusivamente pela música na sua vertente melódica, sendo a parte visual apenas um complemento. Um complemento muitíssimo bem executado, diga-se, como se pode atestar pelo magnífico "Live At Pompeii" do ano passado.
Do lado do Roger, a grande preocupação é mexer com as emoções da audiência. O espectáculo é um mastodonte audiovisual, sensorial e emocional sem paralelo, mas fica atrás do David na parte musical. Isto é particularmente perceptível em temas onde o solo de guitarra reina como "Comfortably Numb" e a falta de David se faz verdadeiramente sentir. E pensar que houve um dia que estas duas forças da natureza trabalhavam juntas.
Em suma, "Us + Them" visa fazer um ataque bombástico aos sentidos da audiência. O espectáculo é uma experiência tão emocionalmente pesada, que depois de três horas a chorar e a carpir mágoas imerso na musica e no espectáculo, saí do Atlântico exausto. Queria vê-lo dois dias seguidos, mas não fui capaz. Não me consegui submeter à mesma montanha russa emocional e passar por todo aquele ordálio mais uma vez.
P.S.: Montez, faz um favor à cultura portuguesa e contrata os técnicos de som do Roger Waters para resolverem a acústica do Atlântico. Eles fazem milagres.
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