quarta-feira, 30 de maio de 2018

A noite de libertação de Nick Mason


"Welcome to what's apparently the saucer of my secrets. Or my saucers and my secrets, I don't know. The band was unsure of what to call ourselveswe thought about Australian Roger Waters but decided at last minute to change it.
I'm not quite sure if this one is better."
Nick Mason, ao apresentar os Nick Mason's Saucerful Of Secrets no Half Moon, em Londres

Há um nítido sentimento de libertação nesta noite do inesperado regresso de Nick Mason aos palcos. Tenho o privilégio de estar aqui, no Half Moon, um pequeno e claustrofóbico bar em Putney que aparenta levar não mais que 50 pessoas, para esta inusitada ocasião. Olho à volta e lembro-me que foi precisamente para isto que eu me mudei para Londres. O ambiente fervia e todos comentavam entredentes: seria Nick capaz de dar conta do recado? Feitas as contas, ele já não tocava sozinho em palco desde a digressão de "Animals" em 1977, já lá iam mais de 40 anos. Toda a gente levava grande curiosidade, mas a verdade é que ninguém esperava grande coisa.

Desde que Nick Mason começou a ter ajuda nas suas partes de bateria em 1980, na The Wall Tour, que se estabeleceu a ideia generalizada que Nick é um baterista tecnicamente pouco hábil. Houve até alguma surpresa quando ele fez questão de aparecer sozinho no Live 8, em 2005, na famosa reunião dos Floyd. Acontece que já aí o Nick nos estava a tentar dizer alguma coisa.

E disse mais nos últimos anos, quando foi várias vezes convidado por David Gilmour para aparecer nos seus shows a solo e recusou repetidamente. Mason cansou-se de ser tratado como um napron de mesa e deu a saber a David que não estava mais disponível para enfeite, estava apenas e só disponível para os PINK FLOYD. Até porque depois da morte de Richard Wright e da saída de Roger Waters em 1985, Nick + David = Pink Floyd.

Mas David nunca o chamou para os Pink Floyd.

E por isso, farto de ser refém da vontade de Roger e David para poder sair de casa e fazer o que gosta, Nick (que é, note-se, o único músico presente em TODOS os álbuns dos Floyd) resolveu pôr mãos à obra, formar uma banda e provar a todos o quanto estávamos errados sobre a sua aptidão para a bateria.

E eis que chegamos aqui, ao Half Moon, um bar tão recôndito que mais parece um regresso aos longínquos tempos do UFO. É a noite de libertação de Nick Mason e dos seus Saucerful Of Secrets, o supergrupo menos super da História. O centro do palco é tomado por Guy Pratt, carismático baixista de estrada dos Pink Floyd e de David Gilmour desde 1987 (e genro de Richard Wright); nos flancos temos as guitarras de Gary Kemp dos Spandau Ballet (que agora vivem sem Tony Hadley) e de Lee Harris, guitarrista e manager dos The Blockheads pós-Ian Dury (no Técnico chamavam a isto de segunda derivada). Lá atrás, nas teclas, o produtor e mago de estúdio Dom Beken e lá muito ao fundo, demasiado ao fundo para quem é o cabeça de cartaz da noite e o homem que todos vieram ver, Nick Mason — esse mesmo, o baterista proscrito, alegadamente inábil e supostamente reformado dos Pink Floyd. É a noite de redenção deste suspeito grupo de músicos renegados, órfãos de banda e ratos de estúdio que, quais Rocky contra Apollo Creed, tiveram finalmente o seu shot at the title. E boy se o aproveitaram.


""The Nile Song" was actually the first Pink Floyd song I learned how to play when I was a kid. When I was with David, rehearsing for his On An Island tour in 2006, we were suggesting songs and I suggested to play this. And then David suggested that I should play in another band! And so I did!"
Guy Pratt, na introdução de "The Nile Song", tema nunca tocado pelos Pink Floyd

No passado presos à marca dos Pink Floyd, hoje Nick Mason e Guy Pratt foram livres e tocaram a música que conheciam e amavam fora das amarras dos líderes da banda, das telas gigantes e dos porcos a voar. O foco foi a música e exclusivamente o reportório que os Floyd fizeram antes do game-changer "The Dark Side Of The Moon", normalmente e infelizmente esquecido. Em suma, um sonho para qualquer fã dos Floyd. Ora atentem na insana setlist da noite:


A noite foi de glória total. Nick esteve imaculado e provou ser mil vezes o baterista que todos pensavam que ele era. Eu incluído. Impressionante a forma como o velhote varreu o dificílimo crescendo de "Set The Controls For The Heart Of The Sun". Um misto de felicidade e perpelexidade encheu a sala, como se de um sucesso de um velho amigo se tratasse.

Notava-se o nervoso miudinho no palco, mas salvo alguns excessos do teclista e algumas insuficiências nas guitarras (deuses há muitos, mas David Gilmour só há um), a banda esteve no ponto. Curiosamente, as grandes gafes da noite vieram dos membros com maior experiência de palco, com Guy Pratt a não acertar o baixo no crescendo de "A Saucerful Of Secrets" e Gary Kemp a esquecer-se de chegar ao microfone para cantar por diversas vezes, tal era a concentração no seu instrumento. A grande revelação foi Lee Harris, que se encarregou de levantar os pesos mais pesados de David e deu show no solo de "One Of These Days". Só tive pena que Nick não tivesse "cantado" ao vivo a sua famosa linha "one of these days I'm gonna cut you into little pieces".

Nick Mason era o Floyd que me faltava ver ao vivo e nunca pensei que tal se concretizasse nestes moldes. A minha vénia àquele que daqui para a frente terá que ser reconhecido como um fantástico baterista. Poucos dias depois de ter ver o Roger no Atlântico, é o culminar de uma semana maravilhosa para ser um fã dos Pink Floyd.

Saí do Half Moon de coração cheio e com o bónus de levar a setlist do palco na mão. Pensava que a noite não poderia ter corrido melhor. Até que olho para o lado e vejo o homem da noite, ele mesmo, Nick Mason. Depois de andar um dia atrás do Roger para um autógrafo sem sucesso, apanho o Nick assim, casualmente, à saída de um bar. E nisto lembrei-me do que dizia o John Lennon no seu tema "Beautiful Boy": a vida é o que acontece quando estamos ocupados a fazer outros planos. Nem mais.



quarta-feira, 23 de maio de 2018

Roger Waters em Lisboa — Um ataque bombástico aos sentidos

Bem-vindos à máquina — crónica da noite em que Roger nos submeteu à sua centrifugadora sensorial


Antes de falar no concerto de Roger Waters no Atlântico (eu sei, agora é Altice Arena, mas como não sei como se chamará daqui a um ano, fica Atlântico), deixem-me falar-vos primeiro do que significa para mim o Roger.

Vi o Roger pela primeira vez em 2002. Foi o meu primeiro grande concerto e a experiência marcou-me de tal forma que nunca mais quis outra coisa. Passei a minha vida em busca de voltar a agarrar aquele momento efémero de puro êxtase que só é possível obter num concerto, um bingo dos sentidos que nenhum outro evento na vida é capaz de dar. Voltei a apanhá-lo diversas vezes ao longo dos anos e foi no Atlântico que vi o maior espectáculo visual da minha vida, quando cumpri o sonho de ver ao vivo o show do The Wall em 2011.

Embora nunca tenha estado com o Roger pessoalmente, na minha mente a nossa relação é estreita. Foi ele quem me guiou durante a adolescência, trancado no bunker do meu quarto. Para além do meu Pai, nenhum homem me influenciou tanto e marcou tanto a minha vida como o Roger. É um herói, um ídolo. Amo-o. Amo-o com tanta força que o queria beijar na boca. E talvez por isso mesmo ainda bem que nunca tenhamos estado juntos.

Mas já chega de mim, vamos ao Roger. Como todas as mais interessantes personalidades da História da Humanidade (onde ele a seu tempo terá o seu espaço), o Roger é uma figura altamente polarizante. Basta escavar em qualquer caixa de comentários para percebermos que as opiniões se dividem em dois grandes campos: Roger é um génio e Roger é uma besta. E ambos poderão ter absoluta razão.

É compreensível a reacção aos seus anticorpos — a personalidade obnóxia, as opiniões vincadas sobre religião e o conflito entre Israel e Palestina, a forma como tratou o David Gilmour e fez implodir os Pink Floyd — não é fácil gostar de Roger Waters. Do outro lado está o seu incomensurável génio. É da cabeça dele que nascem os conceitos de álbuns maiores que a vida como "The Dark Side Of The Moon", "Animals" e "The Wall", obras de um génio louco e perturbado que não podem ser desligadas de uma personalidade irascível. Avé ao Deus David, cheio de graça, que sofreu pelos nossos pecados e aturou o Roger durante tanto tempo — o tempo suficiente para que pudéssemos desfrutar daquelas obras-primas que engrandecem as nossas vidas.

E é dessas obras que sai o núcleo duro da digressão que Roger trouxe a Lisboa. "Us + Them" (sendo "them" os "outros", todos aqueles que não têm a sua visão) serve de promoção ao seu (excelente) último álbum "Is This The Life We Really Want?", mas é dos clássicos que a maioria da audiência espera. E Roger já chegou a uma idade em que (finalmente) quer dar ao público o que o público quer. É um Roger diferente, este que veio a Lisboa. Mais calmo e meloso, com mais vontade de construir pontes em vez de as queimar. Claro que pelo meio destrói meia dúzia de figuras da política sem dó nem piedade (com Trump no olho do furacão), mas é assim o Roger que nós conhecemos e amamos.

Uma das derivas megalómanas de Roger é que foi ele quem inventou o espectáculo Rock. E se esta afirmação pode não ser totalmente consensual (deveria ser), já na questão de quem faz o maior, mais grandioso, mais meticulosamente calculado espectáculo Rock, aí não há espaço para dúvida — Roger é o mestre desta arte. E quem foi ao Atlântico pôde testemunhar isso na primeira pessoa.

Desde logo pela qualidade sónica do espectáculo. Se já assistiram a um concerto no Atlântico, sabem que a acústica da sala pende entre o mau e o aberrante, um problema de fundo que nunca foi resolvido desde a sua inauguração há vinte anos. Ninguém consegue pôr som em condições naquela sala. Ninguém, com uma única excepção: Roger Waters. Sempre. Entenda-se, os técnicos de som do Roger são tão experientes que conseguiriam pôr música em qualquer casa de banho do mundo. Para eles o Atlântico é só uma segunda-feira. O sistema quadrifónico do Roger enche o Atlântico com minúcia e mestria. Explosões, gritos e todo o tipo de efeitos sonoros atacam-nos por todos os lados, ao mesmo tempo que os instrumentos ouvem-se com claridade e separação. Uma maravilha para os sentidos.




Depois há a componente visual e se Roger é Messi no som, na imagem é Jonas e Cristiano Ronaldo e Eusébio e Pelé e Maradona e Poborsky, tudo ao mesmo tempo. Não há nada nem ninguém sequer minimamente comparável. O momento em que o cenário da Battersea Power Station baixa (não consigo fugir do meu local de trabalho) em "Dogs" vale por si só o preço do bilhete. Todos os que ali estiveram vão contar aos filhos e netos da magnificência daquele momento. O início do segundo set é, aliás, o ponto alto de todo o espectáculo, beneficiando do rico imaginário do álbum "Animals". Segue-se "Pigs (3 Different Ones)" e um porco insuflável gigante viaja pelo Atlântico com a mensagem "mantém-te humano", enquanto imagens de guerra são projectadas no cenário da Power Station. Mais uma maravilha para os sentidos.

Para quem ainda não tinha as pupilas cocainamente dilatadas, Roger dá uma última machadada nos sentidos desenhando o prisma da capa de "The Dark Side Of The Moon" sobre a plateia em "Eclipse". Se por esta altura não estão ainda em completo deslumbramento sensorial, então o melhor é irem ver isso a um cardiologista.


O espectáculo de Roger é uma centrifugadora sensorial. Ele trabalha cada um dos nossos sentidos e submete-os a uma lavagem tal que, no fim do programa, eles saem da máquina lavadinhos, prontos para enfrentarem o mundo cão e mau lá fora mais uma vez (como fazia na minha adolescência). Só quem foi ao Atlântico sabe, só quem foi é que viu, só quem foi sentiu. Entrámos no Atlântico com o peso dos nossos problemas, levámos uma tareia emocional lá dentro e saímos leves, limpos e a levitar.

O momento de maior beleza da noite é guardado para o encore. Sem os adereços dos temas dos Pink Floyd, Roger abre-nos o coração na lindíssima sequência "Wait For Her" / "Oceans Apart" / "Part Of Me Died" que fecha o seu último álbum. Revela-nos que está apaixonado, que finalmente encontrou o amor verdadeiro. E de repente aquela noite de explosões, prismas e porcos a voar ganha uma nova dimensão espiritual.

As comparações com David são inevitáveis. Apesar de tocarem a mesma música, os concertos de um e outro são experiências completamente diferentes. Do lado do David, a preocupação é quase exclusivamente pela música na sua vertente melódica, sendo a parte visual apenas um complemento. Um complemento muitíssimo bem executado, diga-se, como se pode atestar pelo magnífico "Live At Pompeii" do ano passado.

Do lado do Roger, a grande preocupação é mexer com as emoções da audiência. O espectáculo é um mastodonte audiovisual, sensorial e emocional sem paralelo, mas fica atrás do David na parte musical. Isto é particularmente perceptível em temas onde o solo de guitarra reina como "Comfortably Numb" e a falta de David se faz verdadeiramente sentir. E pensar que houve um dia que estas duas forças da natureza trabalhavam juntas.

Em suma, "Us + Them" visa fazer um ataque bombástico aos sentidos da audiência. O espectáculo é uma experiência tão emocionalmente pesada, que depois de três horas a chorar e a carpir mágoas imerso na musica e no espectáculo, saí do Atlântico exausto. Queria vê-lo dois dias seguidos, mas não fui capaz. Não me consegui submeter à mesma montanha russa emocional e passar por todo aquele ordálio mais uma vez.

P.S.: Montez, faz um favor à cultura portuguesa e contrata os técnicos de som do Roger Waters para resolverem a acústica do Atlântico. Eles fazem milagres.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Temam o pior — O filme dos Queen que tem tudo para correr mal

A minha bipolaridade antes e depois de ver o trailer de "Bohemian Rhapsody"

Antes de ver o trailer (texto escrito na noite de 14 de Maio):
Vem aí "Bohemian Rhapsody", o filme que promete trazer a história não contada de Freddie Mercury e da música dos Queen. Ora, sendo eu um fã irremediável dos Queen e sendo o Freddie — em quem se centra a história do filme — o meu herói de sempre, só posso estar a vibrar de excitação. Certo? Certo?! Errado.

Por mais que eu devesse estar entusiasmado com um filme sobre a vida do meu herói, não consigo deixar de pensar que vai ser um desastre de proporções épicas. O filme tem tudo para correr mal. Este é, aliás, um desastre anunciado desde há 8 anos. Lembro que foi em 2010 que se deu o início da produção do filme e foi feito o casting de Sacha Baron Cohen. Sacha que, 6 anos depois, se fartou dos Queen e mandou o projecto mais ambicioso da sua vida às malvas. Claro que quando digo "fartou-se dos Queen", quero realmente dizer "fartou-se de Brian May", o verdadeiro (único?) timoneiro do porta-aviões da banda britânica neste momento (o Roger quer é copos, caça e bater em tambores). Adoro o Brian, mas ele é um control freak e os anos infinitos de produção falhada do filme evidenciaram que ele estava a tentar polir ao máximo a imagem do Freddie. O afastamento do Sacha foi provocado por essa mesma diferença criativa .

É isto que me deixa com suores frios. Todos os sinais apontam para uma total higienização de Freddie Mercury em "Bohemian Rhapsody". E o que me chateia mais nem é a possível distorção dos factos da sua vida (que até pode ser compreensível, em função de um enredo mais cinemático), mas sim a higienização da sua personalidade. Temo que o filme pinte Freddie como um herói impoluto que não foi de maneira nenhuma. Temo que a preocupação em preservar a imagem lhe apague todas as nuances, todas as linhas turvas que eram precisamente as que lhe conferiam maior beleza e de onde nasceram as suas melhores obras. Obras como o tema-título do filme, "Bohemian Rhapsody".

Não tenho medo de ver os defeitos nos meus heróis. Pelo contrário. É nos defeitos que eles mostram humanismo. Vejo beleza na sua complexidade e até na sua falência. Sacha Baron Cohen parecia o perfect fit para o personagem — denso, misterioso e personalidade forte. Rami Malek de Mr. Robot? Não tenho tanta certeza. Pelo menos aceitou à partida as condições impostas pela banda. Mas quem sou eu para o criticar? Eu também aceitaria tudo o que me pusessem à frente, só pela oportunidade de ser o Freddie.

A preocupação de Brian May tem algum fundamento. Nesta era em que o politicamente correcto esmaga todas as formas de expressão livre em favor de versões lixiviadas da realidade, é um desafio fazer um filme sobre os insanos anos 70 e loucos 80s que tenha apelo universal. Mas tanto polimento vai inevitavelmente fazer sofrer o produto final. Um filme sobre Freddie Mercury que não é para maiores de 18 anos? Please.

Compreendo que a banda queira centrar o enredo na música, mas para se contar a verdadeira história de Freddie Mercury, é preciso sujar as mãos. E muito. Se queriam um filme fiel à realidade, talvez o melhor realizador para o projecto fosse o infame Gaspar Noé, que acabou de ir a Cannes com mais uma sangria de sexo, música e alienação. E olha, não foi precisamente assim a vida do Freddie?!



O enredo de "Bohemian Rhapsody" não é difícil de adivinhar e pelo que Brian May deixou escapar no Instagram, até já foi ensaiado no documentário "Days of Our Lives". Querem uma aposta? Lembrem-se que leram aqui primeiro:

A história começa com quatro rapazes que se conhecem no Imperial College em Londres e que rapidamente ganham notoriedade às costas do seu extravagante frontman. A banda faz três álbuns sempre em crescendo de popularidade, mas vê-se na bancarrota, apesar do sucesso. É aqui revelado o primeiro vilão da história, o manager dos Queen, que a banda descobre, lhes anda a sugar o dinheiro.
Os Queen são salvos por John Reid, manager de Elton John que, reza a lenda, diz aos Queen para não se preocuparem com mais nada sem ser fazer o melhor álbum de sempre. A banda vai para estúdio gravar "Bohemian Rhapsody", tema que é inicialmente rejeitado pelas rádios, mas mais tarde descoberto por Kenny Everett — DJ da BBC que fica obcecado com a opereta de Freddie — e passa o tema 14 vezes num só dia. Os Queen levantam voo e planam alto sobre os anos 70, chegando ao topo do mundo em 1980, com o sucesso retumbante de "Another One Bites The Dust" nos EUA.
É aqui que entra o segundo vilão da história: Paul Prenter. Freddie nomeia Prenter como o seu assistente pessoal e este dá-lhe a conhecer a louca vida gay de Nova Iorque no início dos anos 80 (vida essa que culminou na doença que o matou). Prenter, que achava que Freddie era maior que os Queen, convence-o que a banda deviam soar como a música que eles ouviam nas discotecas que frequentavam. Isto cria uma clivagem nos Queen, com Brian e Roger de um lado a quererem seguir a sua herança Rock 'n' Roll, Freddie e Prenter do outro a quererem adoptar uma linguagem mais gay e John, fã dos Chic e do movimento Disco, no meio a tentar equilibrar as coisas.
Deste choque resulta o álbum "Hot Space" e a inevitável implosão da banda, que infelizmente nunca chega a um equilíbrio em estúdio. A clivagem é notória e o álbum sofre com a sonoridade de duas bandas diferentes, cada uma a tocar para seu lado. O equilíbrio chegaria mais tarde em palco, quando os rapazes são obrigados a tocar em conjunto e ser uma banda novamente. Os Queen fazem finalmente das canções de "Hot Space", canções dos Queen e embarcam numa das melhores digressões da sua História, que acaba num triunfante concerto em Milton Keynes (mais tarde lançado em DVD como "On Fire At The Bowl"). Esta comunhão não é suficiente para manter os Queen vivos e a banda acaba por se separar, embora tal nunca seja oficialmente admitido.
Freddie vai a solo e recebe mais dinheiro sozinho para "Mr Bad Guy" do que os Queen receberam para "Hot Space", irritando ainda mais a banda. O disco adopta uma sonoridade full on gay club e, como se pode adivinhar pelo facto de ninguém se lembrar dele nos dias de hoje, é um espectacular falhanço. A banda reforma-se para "The Works", um álbum muito mais sóbrio que é bem recebido pelo público.
Mas como um mal nunca vem só e não há duas sem três, o terceiro naufrágio dos Queen acontece quando a banda tem a infeliz ideia de fazer uma residência em Sun City, terra do Apartheid, no Outono de 1984. A crescente consciencialização social dos anos 80 não perdoa os Queen pela ofensa e a banda cai em desgraça. E é aqui que, caído do céu, surge o Live Aid. Os Queen vêem no evento uma oportunidade de redenção e contra todas as expectativas e uma doença de Freddie cuja gravidade ainda não era bem entendida, fazem a melhor actuação da história da humanidade. O filme termina com Freddie e os Queen em glória.



E aí têm, a história dos Queen e o mais-que-provável plot do filme em apenas sete parágrafos. Já foi contada em "Days Of Our Lives" e não vejo a necessidade de voltar a fazê-lo neste filme. Os Queen estão a andar sobre gelo muito fino e qualquer passo em falso será fatal. Posso estar redondamente enganado acerca de "Bohemian Rhapsody", mas os sinais não são nada animadores. Atentem só no cartaz do filme:


O mau gosto deste cartaz é de uma atrocidade indizível. Começando pela cor azeiteira, passando pelo reflexo do grafismo dos Queen nos óculos e terminando no lema do filme, que inexplicavelmente não é uma linha escrita por Freddie Mercury. E tanto que havia por onde escolher. "Anyway the wind blows" teria sido perfeito, ainda mais sendo do tema-título do filme.

Obviamente que vou ver "Bohemian Rhapsody", mas levo poucas ou nenhumas expectativas. O último pedido de Freddie a Jim Beach (manager dos Queen desde 1978) foi "façam o que quiserem com a minha música, mas por favor nunca me tornem aborrecido." Espero que Brian May se tenha lembrado disso a fazer este filme.

Depois de ver o trailer (texto escrito na noite de 15 de Maio):


Vem aí "Bohemian Rhapsody", o filme que vai contar a história dos Queen, a minha banda preferida e de Freddie Mercury, o meu herói de sempre! WE WILL, WE WILL ROCK YOU! (bate três vezes na mesa) WE WILL, WE WILL ROCK YOU! (bate mais três vezes na mesa). Nunca mais chega Novembro.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Apetite por dinheiro - Quando as edições de luxo caem no ridículo

Os Guns N' Roses passaram de Apetite por Destruição para apetite por dinheiro na reedição de "Appetite For Destruction"

Vem aí a reedição de "Appetite For Destruction", o primeiro álbum dos Guns N' Roses e muito mais que o melhor álbum da banda de Hollywood, um fortíssimo candidato para melhor álbum Rock de sempre. "Ei, lá está este gajo com os exageros do costume", já vos estou a ouvir. Nada disso, meus amigos. Todos os superlativos são parcos para traçar "Apetite For Destruction" como a besta destrutiva sem paralelo que é. Aqui não há Hakuna Matata para ninguém. Isto é o manual de sobrevivência para a selva urbana. Appetite entra a matar com "Welcome To the Jungle" e fixa à cabeça uma bitola altíssima de onde não mais sai. E daí advém o único senão do disco: é que é, de facto, um álbum cansativo.

Desde que se ouvem os primeiros acordes em eco de Slash e rebenta o grito maníaco de Axl, que "Appetite For Destruction" nos agarra pelo pescoço e nos sujeita a uma tareia emocional de tal ordem, que quando chegamos ao fim de "Paradise City", já estamos fisicamente de rastos. O problema é que ao contrário dos concertos dos Guns, aqui ainda só vamos a meio do álbum! Hora, pois, de levantar a agulha, mudar o disco de lado e levar com mais uma torrente visceral de riffs sujos, solos maiores que a vida e gemidos de orgasmos (sim, é "isso" mesmo que ouvem em "Rocket Queen"). O resto do álbum é passado num estado de transe, como um cavalo que continua a levar pauladas quando já morto no chão.

Quando os oceanos secarem, o céu ficar vermelho e o apocalipse das máquinas se bater sobre nós (como bem ilustrado na capa original censurada em 1987 e obviamente censurada neste mundo de coninhas de 2018), algures num gira-discos ainda tocará "Appetite For Destruction" e aí sim, será dado o cenário perfeito para se ouvir o melhor e mais mau álbum Rock de sempre.



Mas voltemos à Terra.

Somado a tudo o que exponho em cima, está o facto de "Appetite For Destruction" ser, a nível pessoal, um dos álbuns da minha vida. Um disco que nos meus dezoito anos revolucionou a maneira como me vestia, como me expressava e como me relacionava com o mundo. O sol brilha quando ouço Appetite. Até em Londres. Por isso imaginam o entusiasmo com que fui tomado quando ouvi o anúncio da reedição deste álbum. E a desilusão que se seguiu. Pior que desilusão, um sentimento de traição, a roçar a ofensa. Os Guns passaram de apetite por destruição para apetite por dinheiro.

Atenção. Notem que este não é um artigo a acusar os Guns de quererem ganhar dinheiro — quem faz uma obra-prima daquelas, tem direito a todo o dinheiro do banco. Muito menos é um artigo sobre como as edições de luxo são a nova forma de extorsão das editoras — eu ADORO ser extorquido com edições de luxo dos meus álbuns preferidos e estou sempre preparado para largar grandes quantias pela música que eu amo. E nem sequer é um artigo de revolta pelo preço da edição "Locked N' Loaded" , uma caixa surreal que custa a módica quantia de 1000 euros — o colecionador obsessivo que há em mim (e que vence invariavelmente o bom-senso) quer sempre a opção mais alta e em condições normais, eu iria acabar por vergar à caixa de luxo. Mas não me posso sentir estúpido. Se querem o meu dinheiro, têm que me dar conteúdo. É só disso que se trata.


https://www.youtube.com/watch?v=CpVrCQv3m7c

Como alguém que compra praticamente todas as edições de luxo das suas bandas preferidas — e acreditem, são muitas — por mais extravagantes e caras que sejam e que tem uma casa que parece um museu da secção de boxed sets da Fnac (se a loja já existisse nos anos 70), acho que tenho alguma autoridade na matéria.
Mais que isso, para alguém que sabe um pouco do que foi a história fascinante e improvável (quase do campo da fantasia) daquela que era à data a banda mais perigosa do mundo, não posso deixar de me senti traído pela minha banda preferida dos meus anos de faculdade.

"If you got the money, honey, we got your disease"

A magia que acontecia quando aqueles 5 ex-delinquentes (agora milionários) começavam a gravar é inapelável. Aconteceu naquele tempo (1985-1987), naquele lugar (Hollywood), naquele clima (a ferver) e com os AppetiteFive (Axl, Slash, Izzy, Duff, Steven). Tudo o que eles fizeram é documento histórico e deve ser tratado como tal. Não me importo (mesmo) de inchar com os 1000 euros, mas para isso têm que me dar tudo na caixa. TUDO. Mas já lá vamos.

Para começar, é absolutamente ofensivo deixar de fora da caixa a gravação original de "Don't Cry", uma das melhores de sempre dos Guns, que só ficou de fora de "Appetite For Destruction" porque — e estou a citar o Axl — já havia uma balada no álbum ("Sweet Child O' Mine"). A decisão, se tinha que ser feita entre os dois, foi a correcta. Mas que explicação é há para ficar de fora outra vez? Guardar para a caixa dos "Use Your Illusion"? Não faz sentido. 1985 é 1985 e 1991 é 1991. Anos diferentes, gravações diferentes. As versões dos Illusions são boas, mas o cheiro a látex já lá não está. Ouçam a gravação original dos Mystic Studios em 1985 (em baixo) e digam-me se não sentem o cheiro a sexo, suor e látex a sair pelas colunas.


https://www.youtube.com/watch?v=JPS2NQyz7Js

Depois há a (tão aplaudida) decisão de deixar de fora "One In A Million", ao mesmo tempo que inclui os restantes temas de "G N' R Lies". O tema é ofensivo, sim. É de mau gosto, é. Mas porra, e depois? Se existe, se foi escrito nos anos de Appetite na casa de West Arkeen, gravado nesta altura e representa um determinado tempo, então porquê ficar de fora da caixa? Está tudo tranquilo com o facto de começarmos a apagar a história?

Mas o pior é a quantidade de lixo que está presente na caixa e que só serve para encarecer o preço. Caveiras? Bandanas? Posters? Mas isto é uma caixa para miúdos de 16 anos ou para miúdos que tiveram 16 anos há 30? E quem é que com 16 anos tem mesadas de 1000 euros?

O potencial para esta caixa era enorme. A ainda existirem, não há qualquer razão para as sessões de gravação dos AppetiteFive não aparecerem aqui na sua totalidade. E já nem estou a contar com os home demos de West Arkeen (por exemplo) que existem, andam por aí em circulação, mas não têm aquela magia dos AppetiteFive. Sem contar com documentos ao vivo (completamente ausentes da caixa, salvo uns B-Sides), era assim que devia ser a edição "Locked N' Loaded":

CD 1 + LP 1-2 (45rpm): Appetite For Destruction
1. Welcome To The Jungle
2. It's So Easy
3. Nightrain
4. Out Ta Get Me
5. Mr. Brownstone
6. Paradise City
7. My Michelle
8. Think About You
9. Sweet Child O' Mine
10. You're Crazy
11. Anything Goes
12. Rocket Queen

CD 2 + LP 3-4: B-Sides N’ EPs
Live ?!*@ Like a Suicide
1. Reckless Life
2. Nice Boys
3. Move To The City
4. Mama Kin
Live From The Jungle
5. Shadow Of Your Love (Live)
6. It’s So Easy (Live at The Marquee 28 June 1987)
7. Knockin’ On Heaven’s Door (Live at The Marquee 28 June 1987)
8. Whole Lotta Rosie (Live at The Marquee 28 June 1987)
Sweet Child O' Mine 7"
9. Sweet Child O' Mine (Edit/Remix)
Welcome To The Jungle 12"
10. You’re Crazy (Acoustic Version)
G N' R Lies
11. Patience
12. Used To Love Her
13. You’re Crazy
14. One In A Million
Patience 12"
15. Interview With W. Axl Rose

CD 3 + LP 5-6: Appetite Sessions Part 1
Mystic Studios (August 1985)
1. Welcome to the Jungle (5:00)
2. Anything Goes (5:11)
3. Don’t Cry (4:42)
4. Back Off Bitch (4:57)
5. Heartbreak Hotel
Sound City (June 2-4, 1986) Part 1
6. Nightrain (4:54)
7. Rocket Queen take 1 (6:13)
8. Out Ta Get Me (4:02)
9. Think About You (3:54)
10. My Michelle (4:23)
11. You’re Crazy (3:24)
12. Paradise City (5:40)
13. Move to the City take 1 (3:15)
14. Jumpin’ Jack Flash (3:26)
15. Shadow of Your Love (2:43)
16. November Rain piano (9:44)
(77 min)

CD 4 + LP 7-8: Appetite Sessions Part 2
Sound City (June 2-4, 1986) Part 2
1. Welcome to the Jungle (4:59)
2. Don’t Cry (5:19)
3. Nice Boys (2:59)
4. Back Off Bitch (4:41)
5. Anything Goes (4:33)
6. Rocket Queen take 2 (6:07)
7. Reckless Life (2:47)
8. Move to the City take 2
9. Mama Kin (3:29)
10. Heartbreak Hotel (4:41)
11. November Rain acoustic (4:54)
12. Ain’t Goin’ Down No More (instrumental) (3:33)
13. Jumpin’ Jack Flash acoustic (3:53)
14. Move to the City acoustic (3:48)
15. Untitled song in progress
16. You’re Crazy acoustic
17. The Plague
18. Cornshucker Stomp
19. New Work Tune
(78 min)

CD 5 + LP 9: Appetite Sessions Part 3
Pasha Studios (August 1986)
1. Sweet Child O’ Mine (6:29)
2. Nightrain (5:14)
3. Jumpin’ Jack Flash (3:31)
4. You’re Crazy (3:35)
5. Reckless Life (3:11)
6. Heartbreak Hotel (4:15)
7. Shadow of Your Love (2:59)
8. Welcome to the Jungle (4:59)
9. Don't Cry (5:25)
10. Mr. Brownstone (4:13)
11. Move to the City [clean Live Like a Suicide] (3:27)
12. Mama Kin [clean Live Like a Suicide] (3:41)
13. Nice Boys [clean Live Like a Suicide] (?:??)

CD 6 + LP 10-11: Appetite Sessions Part 4
Rumbo Studios, Take One Studio & Can Am Studio (Fall 1986 | Producer: Mike Clink)
1. Welcome to the Jungle
2. It’s So Easy
3. Nightrain
4. Out Ta Get Me
5. Mr. Brownstone
6. Paradise City
7. My Michelle
8. Think About You
9. Sweet Child O’ Mine
10. You’re Crazy
11. Anything Goes
12. Rocket Queen
Rumbo Studios (1988)
13. Patience (5:56)
14. One in a Million (6:32)
15. You’re Crazy (4:26)
16. Used To Love Her (1:30)
17. Cornshucker (4:20)

Mas calma, que não é tudo. Se a caixa dos Queen com a discografia completa em 15 LPs me custou 400 euros e a caixa "The Early Years" dos Pink Floyd com 27 discos foi 450€, com 11 LPs e 6 CDs ainda estamos muito longe da relação ideal "value for money". Uma vez que as faixas exclusivas aos singles já estão nos discos "B-Sides N' EPs", os 12" que aparecem na caixa tornam-se também redundantes, pelo que não precisamos deles. Falta-nos, obviamente, material ao vivo. Para justificar o preço, tem que ser muito e em boa qualidade. No mínimo, deveríamos ter :

  • CD e LP com concerto completo do Marquee em 1987 (parcialmente lançado em lados B e no EP japonês conhecido como Live In The Jungle);
  • Blu-Ray e LP com concerto completo do Ritz em 1988;
  • Blu-Ray com documentário com entrevistas novas com os AppetiteFive, a Adriana dos gemidos de "Rocket Queen", David Geffen, etc;
  • Blu-Ray com as melhores versões possíveis dos históricos concertos do Roxy, Troubador e Music Machine;
  • Blu-Ray com remistura em surround e álbum em HD (este está na caixa!!!). 

E aí sim, levavam-me os 1000 euros. Desta forma, desculpem lá, mas não vai dar. Simplesmente não consigo justificar a mim mesmo gastar tanto dinheiro por tão pouco. Claro que nem tudo é mau nesta edição. Temos as sessões de "Sound City", ainda que incompletas, e daí já ouvimos o fortíssimo "Shadow Of Your Love", onde podemos imediatamente sentir a importância de Steven Adler na sonoridade da banda — um baterista que dança a tocar. Mas é insuficiente. Por muito que eu ame o "Appetite For Destruction", vou ter que boicotar esta reedição. Tem que ser dado algum tipo de sinal às editoras para que, se nos quiserem extorquir, tenham que incutir valor no seu produto.


https://www.youtube.com/watch?v=aHUmy5PvPjQ

Quem é que estou a enganar? Às tantas não vou de férias este ano. Ou então vendo um rim.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Todas as cores de um Beige Boy — Noel Gallagher ao vivo em Wembley

Noel Gallagher apresentou o seu último álbum em Londres com um concerto colorido e arrojado.

Indiferente ao epíteto de "Beige Boy" que o irmão mais novo lhe colocou, ou talvez até a desafiar essa noção que se tornou um homem insípido com a idade, o sucesso e o status, Noel Gallagher regressou a Wembley munido de um dos light-shows mais impressionantes a que já assisti — a rivalizar com os mestres David Gilmour e Roger Waters — e deu um concerto pleno de cor e personalidade. Já sabia que ia ser bom (é o Noel!), mas não sabia que ia ser TÃO bom. Uma agradável surpresa.

É de facto preciso coragem para descartar o espólio de uma vida de canções (que estão a ser devidamente capitalizadas pelo irmão), em detrimento de um álbum novo muitos furos abaixo da bitola a que o Noel nos habituou. Por esta altura, mesmo imbuído na sua soberba, até o próprio Noel já se terá percebido que este não é o seu melhor trabalho, mas nem por isso deixou de tocar o álbum quase na íntegra (deixando de fora o melhor tema — "The Man Who Built The Moon"). Para o Noel, é este o álbum que temos, é este o álbum que vai e ponto final. Respect por isso.

O preço a pagar é ver os seus espectáculos — outrora instantaneamente esgotados — com dificuldades para encher salas de 10 mil pessoas, enquanto o irmão vende 40 mil bilhetes em minutos para o Finsbury Park. No Wembley Arena porém, não parecia caber mais ninguém. Por entre uns idiotas com t-shirts do Liam — e eu que me dei ao trabalho de ir a casa trocar a parka que tinha vestida por um bomber jacket igual ao do Noel! — havia uma plateia ávida pela música do Noel. Os fiéis.

Depois de uma hora de álbum novo, o Noel lá resolveu dar uns bombons à audiência. O primeiro tema dos Oasis surgiu já na segunda metade do set, mas logo do álbum mais pobre da banda — "Heathen Chemistry". Noel manteve-se sempre em gincana pelo material mais conhecido do grande público e mais à frente tivemos canções de "Don't Believe The Truth" e do meu preferido (mas tão odiado) "Standing On The Shoulder Of Giants". De "Definitely Maybe", só houve um B-side e de "(What's The Story) Morning Glory?", só os obrigatórios "Wonderwall" e "Don't Look Back In Anger".

Mas se era para sermos radicais, eu também me livrava destas duas maçadas e substituía por temas escritos no período criativo dourado de 1998 e 1999 que serviu para alimentar os Oasis e o Noel durante 10 anos. Vamos embora Noel, "Solve My Mystery" e "Idler's Dream", em vez de "Wonderwall" e "Don't Look Back In Anger".

O entusiasmo retraído era tal, que a audiência cantou até as partes de piano de "Wonderwall", num dos momentos de maior euforia colectiva da noite. Para além destes, os mais óbvios, as grandes reacções da noite saldaram-se por insanos mosh pits em "Ballad Of The Mighty I" (grande tema, mas wtf?!) e "Go Let It Out" (perfeitamente justificado, foi o ponto alto do concerto e também eu lá mergulhei) e por singalongs em "If I Had A Gun" (aquele primeiro álbum a solo é uma delicia do princípio ao fim) e "Dead In The Water", que foi aliás o único tema novo a ter uma recepção semelhante aos clássicos.

O que me leva também à conclusão óbvia que, se dúvidas ainda houvesse, as canções do álbum novo não foram adoptadas pelo público. Nem mesmo pelo público do Noel, que é lesto a devorar e a decorar as suas letras. Esta já é a quarta vez que vejo o Noel a solo em Londres e é a primeira que vejo uma audiência a morrer. Mesmo em temas novos, o público do Noel nunca desarma. Basta observar a reacção eufórica que teve "In The Heat Of The Moment" — single do álbum anterior — para perceber que nem só de Oasis vivem os fãs do Noel.

O forte do Noel sempre foram os refrões contagiantes — simples e virais, impossíveis de tirar da cabeça. Ninguém nos últimos 25 anos escreveu tantos e tão orelhudos refrões como ele. Neste capítulo, Noel faz jus à sua alcunha, é ele o Chefe. Se agora decide anular o seu forte e começar a focar apenas nos grooves, deixa de ser o melhor e passa a ser apenas bom. E conhecendo-o como o conheço, o Noel não é menino para se contentar com isso. Muito menos quando vê o irmão passear o seu sucesso (com as canções dele) à sua frente. Esperemos pois pelo álbum de redenção, pleno de refrões contagiantes, e pela digressão de consagração, que deverão estar já aí ao virar da esquina. Para já, se quiserem ver um Noel diferente de tudo o que nos mostrou até hoje (eventualmente até demais), é aproveitar e apanhar a digressão de "Who Built The World?" enquanto é tempo.