A censura volta a atacar. Chico Buarque é o novo alvo
É a segunda crónica consecutiva que escrevo sobre censura. Espero que a actualidade me permita mudar de assunto no próximo texto, mas torna-se difícil quando em pleno 2017 surge à vista de todos uma nova Ordem de Inquisição a querer impor a censura como algo de socialmente aceitável. E tenham lá paciência, mas se há coisa para a qual eu não tenho paciência nenhuma é para a censura.
Esta nova inquisição moral ignora o princípio básico de que não há boa nem má censura, há apenas censura; a mesma do lápis azul que há 5 décadas proibiu as cantigas do Zeca Afonso que entoam nos comícios; a mesma que há uma semana proibiu ("aconselhou" a retirada) livros infantis à custa de duas páginas aleatórias, sem sequer se darem ao trabalho de analisar as obras em questão, num dos maiores atentados à liberdade de expressão desde os saudosos tempos do Cavaquistão (estou a lembrar-me do programa do Herman).
Esta censura não é melhor porque é nova e muito menos porque é apoiada por um órgão governamental (a 'Comissão para a Igualdade de Género', que nos deixou aqui um belo cartão de visita). Pelo contrário. O facto de decisões perigosas — como a retirada de um livro do mercado —
estarem apoiadas por um órgão do Estado que age de forma imprudente, nervosa e coarcível só dão a este fenómeno proporções muito mais assustadoras. Eu estou à vontade para falar nisto, uma vez que votei numa das forças que apoia o partido que está no Governo, mas estamos a dar passos firmes em direcção a uma nova censura e se ninguém é Capaz de pôr mão nisto, honestamente, não sei onde vamos parar.
A normalização da censura chegou a tal ponto que esta semana li uma notícia que dava conta da retirada dos livros da Anita do mercado (sim, essa Anita) devido a uma recomendação da CIG, a qual apontava o facto da maioria das actividades levadas a cabo pela heroína da série "transmitirem mensagens que possam ser promotoras de uma diferenciação e desvalorização do papel das raparigas no espaço público e dos rapazes no espaço privado". Fiquei de tal forma nauseado ao ler isto, que fui logo tentar confirmar a veracidade da notícia. Uma vez que não vi nada nesse sentido (o que até é de estranhar, dada a facilidade com que se agora se espalham boatos como factos), presumo que tenha sido só uma brincadeira de Facebook. O problema é que este é um sinal dos tempos em que vivemos onde uma aberração deste tipo passa por verosímil. Não é verdade, mas podia ter sido.
São sinais de tempos esquizofrénicos e paranóicos. Paranóicos, porque querem analisar tudo ao milímetro, julgar sumariamente e linchar em praça pública. Esquizofrénicos porque fazem tudo em nome da liberdade, sem se aperceberem do paradoxo que encerra a censura que promovem, num auto-de-fé só comparável aos gloriosos tempos da Inquisição Medieval.
O alvo desta nova inquisição volta a ser a música, desta vez Chico Buarque (esse machista) que, depois de décadas de fitas gravadas, querem higienizar em 2017. Logo ele, que tem uma história de combate à censura. O tema no pelourinho é "Tua Cantiga" e fala de um homem que promete à amante "Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir". Alegadamente, isto coloca a mulher num papel secundário, indexado aos anos 70. A traição é uma coisa démodé, hoje a mulher é independente e por isso não sofre de amor. Porque é isso mesmo que a nova mulher deve ser — um autómato. Porque qualquer tipo de sentimento mais visceral deve ser reprimido em nome dos paradoxos do politicamente correcto defendidos pela Nova Ordem da Inquisição. E porque a nova mulher livre, só é livre segundo as condições estabelecidas pelas Capazes. Nojo.
A música é sentimento e é suposto que assim seja. Por isso é um meio de comunicação tão massivo e poderoso. Se não se identificam com as palavras do Chico, sigam para o próximo artista. É simples. Ou então façam como nos anos 60, quando acusaram os Beatles de anticristos e fizeram fogueiras com os seus discos. Uma vez que hoje já ninguém compra discos, podem fazer uma fogueira com os scrobbles do Chico Buarque no Spotify (para os non-Millennials que me estejam a ler, scrobbles = nº de audições). É que a média de scrobbles dos temas do último álbum é de cerca de 100 mil por canção, exceptuando o "Tua Cantiga", que já foi ouvido mais de 700 mil vezes. Têm muito para queimar.
Atentem bem: não vão conseguir censurar a música. Tal como não conseguiram calar o Zeca, não vão ser Capazes de calar o Chico (até me admiro como ainda não pegaram no assunto) e jamais vão calar alguém que queira enterrar o coração numa fita. Ontem, hoje e amanhã, a música será sempre livre. E não há nada que possam fazer acerca disso.
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