Um desejo especial para a produtora do Rock in Rio Lisboa
Querida Roberta. E aí? Tudo bom? Tudo na maior energia? Legal. Desculpa lá mas não me posso alongar nos coloquialismos do português brasileiro, que tudo o que sei aprendi-o na "Pedra Sobre Pedra" ("Hilda, minha filha!") e já lá vão 25 anos. Vamos lá então falar do teu (e nosso) Rock In Rio.
Antes de mais, parabéns pelo sucesso retumbante do Rock In Rio deste ano na sua cidade natal. Aquele cartaz do segundo fim-de-semana foi absolutamente insano. Imagino que tenha custado para cima de um dinheirão, mas conseguiu fazer justiça ao prestígio histórico do festival e, quanto muito, só ficou atrás das duas edições originais. Não te vou mentir, como é óbvio adorava ver aquele alinhamento no Rock In Rio Lisboa 2018, mas sei que é difícil. Sei que o nosso país é um mercado mais pequeno, por muito que eu desejasse ver Guns N' Roses e The Who na mesma noite. Por isso só tenho um pedido para a edição do próximo ano — os Tears For Fears.
A imprensa brasileira foi praticamente unânime: os Tears For Fears foram a grande revelação do Rock In Rio deste ano. O concerto foi um sucesso estrondoso, de tal forma que o Curt Smith até anuiu em alterar o nome da banda para a sua alcunha brasileira de "Tias Fofinhas". De todas as críticas do concerto na imprensa, tenho que destacar a certeira e deliciosa descrição de Sílvio Essinger n'O Globo:
"No pop, releva-se de tudo por causa do saudosismo: o mau estado das vozes, a barriga de chope do cantor, os péssimos novos arranjos, a falta daqueles cabelos... No caso dos ingleses Tears For Fears, nenhuma condescendência foi necessária. Banda com um caminhão de hits (todos eles, canções sofisticadas) e ainda em ótima forma vocal e instrumental, ela fez um show no Rock in Rio que foi como uma lufada de ar fresco para a noite de um dia ruim no Rio de Janeiro. Sem qualquer super aparato visual ou recursos bombásticos, Roland Orzabal e Curt Smith deitaram e rolaram em seu império de clássicos das rádios FM."
É imensamente gratificante ver que os Tears For Fears começam a ser finalmente reconhecidos como a banda superlativa e sofisticada que são e não como uns meros two-hit wonders. Já não era sem tempo. Era uma tremenda injustiça vê-los no mesmo saco de uns Culture Club, quando os TFF têm muito mais de Bowie e Byrne do que de Boy George. Sempre foi um cavalo de batalha para mim e uma luta que eu trouxe à NiT há um ano, naquele que se tornou — de muito longe — o post mais visto de sempre do meu blog.
À custa desta injusta percepção, os Tears For Fears não tocam na Europa com regularidade há mais de 10 anos. É o próprio Curt que admite que se eles não vêem ao velho continente mais vezes, é porque não lhes pagam para isso. Não terem um álbum novo desde 2005 também não ajuda, mas pela nova imagem do site da banda, isso parece estar prestes a mudar. É por isso que tu, Roberta, és a única pessoa que pode ajudar os fãs dos Tears For Fears que estão por todo o lado neste lado do Atlântico e a pouco e pouco começam a sair da toca.Como ajudaste o Marcos no Brasil, que estava assim poucos minutos antes do início do concerto dos TFF:
Enquanto escrevo isto, os Tears For Fears anunciam uma aparição especial no Royal Albert Hall, num concerto único (olha a surpresa) em Outubro deste ano.
Tendo em conta a raridade das suas aparições na Europa, o concerto dos Tears For Fears no Rock In Rio Lisboa seria um evento de interesse para gente de muitos outros países. Seria um concerto histórico e o cumprimento do sonho de milhares de fãs espalhados por toda a Europa. Sei bem do que falo porque sou um deles. Vá lá, Roberta. Chuta, que a bola é tua.
A banda irlandesa entrou numprocesso agressivo de banalização e é cada vez mais uma força inofensiva
Já todos terão ouvido que vem aí um álbum novo dos U2. O que há uns anos era motivo de festejo e expectativa generalizada, hoje é olhado com um bocejo ou, pior ainda, com total indiferença. "Songs Of Experience" tem lançamento marcado para dia 1 de Dezembro, mas a julgar pela primeira amostra, não há muitas razões para entusiasmo.
"You’re The Best Thing About Me" tenta somar uma série de clichés dos U2 a um tema banal e desprovido de qualquer edge (pun intended), cujo único objectivo parece ser soar igual a tudo o que ouvimos nas rádios generalistas. É uma canção aguada que tenta ser uma série de coisas ao mesmo tempo e não consegue ser nenhuma; que quer encaixar perfeitamente na paisagem como um caçador furtivo e assim tentar devolver aos U2 uma relevância que lhes escapa há décadas. Este é um processo pelo qual já vimos os Coldplay passar há 10 anos (ler aqui sobre esse flagelo), mas não é assim que o quarteto irlandês lá vai.
O problema de aguagem da música dos U2 não vem de agora. Se recuarmos um pouco na História da banda, tudo terá começado com o falhanço comercial do arrojado álbum "Pop" em 1997, que à data vendeu menos que qualquer disco desde "October" em 1981 e até menos que qualquer álbum lançado depois, até "Songs Of Innocence" em 2014 (já lá vamos). Em "Pop", os U2 continuaram a fazer o caminho corajoso de experimentação que começaram em "Achtung Baby", embora com resultados bem mais decepcionantes. A banda apareceu irreconhecível em "Pop", mas se isso alienou grande parte da audiência, tal não era necessariamente negativo. Foi uma experiência menos conseguida, mas outras poderiam vir a seguir. Faltou esse discernimento à banda na altura.
Em vez disso, soaram os alarmes financeiros e a banda percebeu que para manter o nível de sucesso e de receitas, tinha que voltar a soar a algo que o público reconhecesse imediatamente na rádio – a sonoridade dos U2, cuja impressão digital remonta a "The Electric Co.". E foi aí que os U2 se tornaram numa banda de auto-revivalismo. "All That You Can't Leave Behind" seguiu-se em 2000 e restaurou aos U2 o título de "Maior banda Rock do mundo" (e mais bem sucedida financeiramente) durante mais alguns anos. Este poderia ter sido apenas um álbum de regresso às raízes, um throwback antes de voltar a olhar para o futuro. Mas não.
A banda seguiu o mesmo rasto de regresso ao passado em "How To Dismantle An Atomic Bomb" que, apesar do título bombástico, se revelou completamente inofensivo. Manteve-se o sucesso, sim, mas à custa da crescente banalização do produto da banda. Os U2 inauguraram aqui uma nova fase da banda: os U2 em auto-piloto.
U2 em auto-piloto é um conceito que tentar somar múltiplos clichés da banda à sua música (quantos mais, melhor), de forma a que ela seja sucessivamente mais reconhecível e, claro está, comercial. Note-se que este não é um conceito nefasto em si mesmo. O pior é quando ele é aplicado a temas banais e desinspirados, produzindo resultados pouco acima do medíocre.
Para o álbum seguinte, os U2 tentaram – com sucesso – inverter esta tendência. A banda voltou à experimentação em (metade de) "No Line On the Horizon" em 2009. Pela primeira vez em mais de 10 anos, os U2 voltaram a correr riscos e a esticar as fronteiras da sua sonoridade, naquele que foi o álbum mais ambicioso desde "Pop". Mesmo sem escapar a uma mediocridade latente a partir do quarto tema do álbum, o início de "No Line" bateu forte com o tema-título, o belíssimo single "Magnificent" e o épico "Moment Of Surrender" – um dos mais intensos temas dos U2 de todo o sempre. A digressão 360º (que passou em Coimbra para dois concertos superlativos e muito molhados) também foi um sucesso global e devolveu aos U2 aquele edge que lhes escapava há uma década. O pior veio depois.
Tudo correu mal com "Songs Of Innocence". Começando com o lançamento intrusivo, pago a peso de ouro pela Apple e que (talvez por isso) acabou com o álbum nas contas de todos os utilizadores do iTunes, mesmo aqueles que não podem ver os U2 à frente (que é algo que eu não compreendo, mas isso é assunto para outro tópico, já discutido aqui). Pior foi ouvir Bono a desculpar-se por esta iniciativa arriscada, naquele que terá sido o momento mais anti-punk da História de uma banda que começou com raízes punk. Uma miséria.
Pior ainda que todo o backlash gerado pela estratégia de lançamento de "Songs Of Innocence", só mesmo o conteúdo do álbum. Se pelo menos fosse alguma coisa que se aproveitasse, com certeza que as pessoas não se queixariam tanto em ter música de borla na sua conta. O álbum mandou à fava a experimentação em toda a linha (excepção talvez a "Sleep Like A Baby Tonight") e limitou-se a somar clichés, numa hipérbole de U2 em auto-piloto sem qualquer história para contar. Salvou-se o belo single "Every Breaking Wave", "California" e pouco mais. O desinteresse reflectiu-se nas vendas (abaixo ainda de "Pop") e eu pensei que, tal como na ressaca deste, os alarmes voltassem a soar no campo dos U2. Mas não.
"You’re The Best Thing About Me" chegou e volta a mostrar a mesma lástima de clichés sem conteúdo que pejaram "Songs Of Innocence". Nunca os U2 soaram tão beige. Para um fã como eu, esta banalização dos U2 começa a tornar-se exasperante. Talvez o problema seja meu e esta seja apenas uma questão de gestão de expectativas. Fui habituado a esperar grandes feitos dos U2. Fui habituado a uma banda sempre a tentar novas coisas, sempre a esticar os limites da sua sonoridade. A mesma sonoridade que rasgou fronteiras nos anos 90 e que agora parece estar confinada a um quadrado. Talvez tenha sido mal habituado e agora tenha que me convencer que a banda é uma força esgotada, beige e inofensiva.
Desejo fortemente estar enganado e que "Songs Of Experience" me surpreenda positivamente. Mas a avaliar pela primeira amostra, a coldplayzação dos U2 segue dentro de momentos.
O melhor filme do ano esteve nos cinemas esta semana. E eu entro nele.
Foi como a passagem de um cometa – efémera e espectacular. O melhor filme do ano esteve nos cinemas esta semana e quem não estava avisado, nem deu por ele. Como um cometa fulgurante, "David Gilmour Live at Pompeii" também foi visto apenas por uma só noite, numa única exibição nos cinemas um pouco por todo o mundo. Quem viu, saiu da sala deslumbrado; quem não viu, tem que esperar pelo DVD/Blu-Ray. Mas já não vai ser a mesma coisa.
Ver o "David Gilmour Live at Pompeii" no cinema, imerso num sistema de som pomposamente baptizado de 'Dolby Atmos' (um sem-número de colunas espalhadas por toda a sala), sentiu-se como um privilégio. Um espectáculo para os sentidos e uma experiência quasi-religiosa. Foi certamente o mais próximo que poderia estar de regressar àquela noite mágica em Pompeia. Não me odeiem, mas sim, eu estive "lá" há um ano e foi "só" a melhor noite da minha vida. Na altura, contei aqui na NiT a história da minha imensa expectativa para o concerto e, na ressaca, o sentimento que depois daquilo não havia mais nada para ver. Sorte a minha que o David decidiu gravar aquela noite para a eternidade.
O filme começa com um pequeno documentário a contar a história de como David chegou a Pompeia e conseguiu autorização para o primeiro espectáculo com público no anfiteatro romano desde o tempo dos gladiadores (79 d.C., para ser mais preciso). David já ali tinha actuado com os Pink Floyd em Outubro de 1971, mas sem público, para a gravação do filme "Pink Floyd Live At Pompeii" de Adrien Maben. No seu regresso, David tocou para uma audiência de apenas duas mil pessoas em duas noites, com o filme a documentar quase exclusivamente a segunda noite (a melhor das duas, mas sou suspeito – foi a minha!). Das imagens dos ensaios em Brighton com a nova banda – devidamente vigiados pelo lindíssimo Kahn (o pastor-alemão do David) – saltamos para Pompeia e para a recepção heróica de David por parte do presidente da cidade, que o distinguiu como cidadão honorário. E assim chegamos à noite do concerto e ao prato principal do filme.
O concerto abre com o instrumental "5 A.M." (que também dá início ao último álbum "Rattle That Lock"), num magnífico plano de um drone a cobrir o anfiteatro em ruínas, sob o olhar ameaçador do Vesúvio ao fundo. O vulcão esteve tranquilo nessa noite e não se importou de assumir os papéis de cenário e personagem-chave no filme; também ele queria ver o David, aposto.
É muito difícil apontar momentos altos no orgasmo contínuo de duas horas que se seguiu. Talvez "High Hopes", porque é só a melhor música de sempre; talvez "Sorrow", porque estremeceu todo o complexo do Almada Fórum (a única sala na zona de Lisboa com o sistema 'Dolby Atmos'); talvez "One Of These Days", porque foi o único tema repetido de 1971 e o momento mais puro Floyd da noite; talvez "Comfortably Numb", porque tem o melhor solo de guitarra do universo e mais além.
Mas houve muito mais para além do já esperado brilhantismo da épica música dos Floyd (e do David a solo). Perdidas no filme, houve diversas pequenas pérolas que fizeram brilhar o filme-concerto: por exemplo, o momento em que David é surpreendido pelo arsenal descarregado no fogo-de-artifício em "Run Like Hell" e tem uma visível reacção de "qué esta merda?"a olhar para o céu (acreditem, eu também fiquei estúpido a ver aquilo); quando Roger Waters faz uma aparição especial neste tema, com o seu grito maníaco a rebentar nas colunas traseiras da sala; ou quando David abre o coração e fala sobre "fantasmas do passado" em Pompeia, referindo-se a Richard Wright, seu amigo e colega dos Floyd, falecido em 2008.
Senãos? Houve poucos. O maior terá sido a realização demasiadamente esquizofrénica, sinal dos tempos que correm. Não há tempo para apreciar um plano, porque o realizador salta logo para o seguinte. Saudades dos planos longos e contemplativos da guitarra de David no filme original dos Floyd. Aqui cada plano não dura mais que 3 a 4 segundos, o que não casa muito bem com o tom melancólico de grande parte da música ali tocada. Materializar um momento tão superlativo numa fita de filme não era tarefa fácil, admito-o. Gavin Elder – o realizador – fê-lo de forma fenomenal, mas entusiasmou-se um bocadinho demais. Não o condeno.
A nível sonoro, para quem está a obsessivamente ouvir o bootleg do concerto desde há um ano, também tenho umas coisas a dizer: de positivo, a pós-produção de bom gosto a que certos temas foram sujeitos, com a introdução de alguns efeitos sonoros que ouvimos nos álbuns, nomeadamente o já referido grito do Roger no "Run Like Hell", o rádio em "Wish You Were Here", ou os relógios em "Time"; de negativo, o inexplicável afogamento das partes do baixista Guy Pratt na mistura. Guy é uma besta do baixo e gosta de introduzir aqui e ali várias licks de improviso que dão um toque de imprevisibilidade aos espectáculos de David; é um espectáculo dentro do espectáculo. Foi uma pena perceber que as suas licks foram suprimidas, ou ficaram indissociavelmente perdidas na mistura.
Note-se que o concerto foi fortemente editado para a versão de cinema. Tive pena, porque a sala anunciava um filme de 180 minutos e a sessão acabou por durar pouco mais de duas horas, já contando com o documentário. Mas compreendo que nem todo o público tenha estômago para uma sessão de 3 horas e meia. Os temas cortados na versão de cinema foram: "Faces Of Stone", "The Blue", "Money", "Fat Old Sun", "Coming Back to Life", "On An Island", "The Girl In The Yellow Dress" (esta felizmente nem no DVD estará) e "Today". Aproximadamente uma hora de concerto que fica em exclusivo para o lançamento DVD / Blu-Ray do filme do ano (que me perdoe o Bruno Vaz, mas este tópico não merece discussão). Já estou em pulgas para ver tudo em casa novamente.
P.S.: Se quiserem ler mais sobre a minha aventura a seguir o David Gilmour nos últimos 2 anos (7 concertos em 4 países: Croácia, Itália, Estados Unidos e Inglaterra), podem consultar os seguintes tópicos publicados ao longo deste período aqui na NiT e no meu blog – a menina dos meus olhos – o Escolha Musical do Dia:
O maior dos Maiores, o rei dos Reis (e acho que já esgotei as hipérboles e os superlativos) fez anos
O dia em que o Rei faz anos. Foi ontem. Como todos os dias são bons para festejar o aniversário do Rei, eis uma pequena lista com as suas 10 melhores performances ao vivo. E um pouco de História também. Parabéns, amigo Farrokh.
10. "It's In Everyone Of Us" – Dominion Theatre, London (1988/04/14)
Quando se pensa na última actuação ao vivo de Freddie Mercury, quase sempre se fala no concerto de Knebworth Park em 1986. Mal. Knebworth foi de facto o último concerto de Freddie com os Queen, mas a sua última actuação ao vivo seria em 1988 no Dominion Theatre, por honras do musical "Time", para o qual Freddie contribuiu com dois temas: "Time" e "In My Defence". Ambos maravilhosos, diga-se (se não ouviram ainda, é carregar nos links).
Freddie fez uma aparição especial no Dominion para a caridade e teve um dueto inesperado com Cliff Richard no seu tema "It's In Everyone Of Us". A voz de Freddie está impecável (já não andava em tour há quase 2 anos) e a performance é irrepreensível. Ouçam só o entusiasmo na plateia; todos sabiam que estavam a assistir a um momento único, mas ninguém imaginava que seria a última actuação ao vivo do Rei.
Curiosamente, o Dominion Theatre alojaria entre 2002 a 2014 o musical "We Will Rock You" dos Queen e como tal teve durante 12 anos uma mega-estátua de 8 metros de altura (!!!) de Freddie à porta.
Se quiserem ver o Freddie Mercury 'going nuts' em palco, é pesquisarem qualquer performance de "Sheer Heart Attack". O tema remonta às sessões do álbum de 1973 com o mesmo nome, mas só foi terminado em 1977 para "News Of The World", mesmo a tempo da revolução Punk que pretendia destruir as bandas da realeza do Rock, bandas precisamente como os Queen. Era a anarquia contra a monarquia.
Sempre que os Queen tocavam "Sheer Heart Attack", normalmente no encore, Freddie entrava em modo vendaval e levava tudo à frente — amplificadores, microfones, o Brian May —, injectado a entusiasmo e muita cocaín... Entusiasmo, era isso.
Freddie podia querer levar o ballet às massas, mas não se deixem enganar pelas poses — Freddie era um bad boy. Se têm dúvidas, aproveito para recordar o episódio em que Sid Vicious dos Sex Pistols tentou intimidar Freddie nos Wessex Studios em Londres e saiu de lá com o rabinho entre as pernas. Freddie não estava para aturar as merdas de Sid e depois de gozar com ele (chamando-o de Simon Ferocious), pegou-lhe nos colarinhos e empurrou-o para fora do estúdio. Freddie era ballet, punk, ópera, rock, o que quer que ele quisesse ser, a qualquer momento. Bom em tudo. Como se comprova pelo vídeo em cima no lendário concerto em Houston (vejam aqui outro ponto alto do concerto – "My Melancholy Blues"), na légua americana da News Of The World Tour em 1977. Punk de lantejoulas? Siga.
P.S.: Na verdade o vídeo em cima é uma compilação de várias performances de "Sheer Heart Attack" (em Houston, o tema corta para "Jailhouse Rock"). Se quiserem ver o Freddie a destruir mais cenas, podem ver as performances completas de Houston em 1977, Hammersmith em 1979, Paris em 1979 e Buenos Aires em 1981.
8. "Another One Bites The Dust" – Estadio Vélez Sarsfield, Buenos Aires (1981/03/01-08)
Na ressaca da conquista dos Estados Unidos com o (algo inesperado) sucesso do álbum "The Game", os Queen quiseram dar novos mundos ao mundo e decidiram ir à conquista de mercados nunca antes navegados. Ao saber que tinham uma grande legião de fãs na América do Sul, os Queen embarcaram rumo ao hemisfério sul, na que terá sido provavelmente a maior aventura da sua história – a South America Bites The Dust Tour.
Entenda-se que o Brasil e a Argentina viviam ditaduras militares, por isso fazer um concerto num destes países era algo impensável para quem queria um controlo rígido de massas. As peripécias foram muitas; começando logo pela recepção na Argentina, onde os Queen foram escoltados pelo exército que os conduziu em contramão na autoestrada, enquanto militares disparavam as metralhadoras para o ar para desviar o trânsito. Assustador? O Freddie tinha um guarda-costas cujo cartão de visita era ter assassinado 212 pessoas. Os fãs perseguiam os Queen para todo o lado, a loucura era total. Na terceira e última data em Buenos Aires (1981/03/08), Freddie apareceu em palco para "Another One Bites The Dust" com a camisola da selecção da Argentina, na companhia de um tal de Maradona. Esse mesmo. Dois deuses no mesmo palco, ao mesmo tempo. Loucura a dobrar.
O vídeo em cima é de "Another One Bites The Dust" na segunda data de Buenos Aires (não há vídeo da terceira noite), com Brian May a usar uma cartola irresistível, que se tornaria a imagem de marca de um outro guitarrista que apareceu uns anos mais tarde. Mas o ponto alto desta noite veio antes, na indizível comunhão de Freddie com a audiência argentina. Quem me dera estar ali no meio:
Volvido apenas um ano da loucura da América do Sul e em 1982, os Queen já eram alvo de fuzilamento em praça pública. A banda constou o interesse gerado por temas dançáveis como "Another One Bites The Dust" (principalmente nos Estados Unidos) e resolveu entrar em modo full (gay) disco no Lado A do controverso "Hot Space" (álbum que alegadamente terá influenciado Michael Jackson para o seu "Thriller"). Inovação e reinvenção, dizem uns; sell-outs, acusam outros.
Dentro da banda, nem todos concordaram com esta nova direcção: Freddie Mercury (e o seu tão odiado assistente Paul Prenter, que não gostava de guitarras) foram os maiores impulsionadores da nova sonoridade; John Deacon sempre foi fã dos Chic e adepto do funk, por isso também estava em casa; no pólo oposto, Roger Taylor foi (e ainda é) abertamente contra este álbum; Brian May também não achou grande piada ao conceito (que o afastava da frente da sonoridade dos Queen), mas tentou adaptar-se como pôde à nova direcção musical. E que bem que o fez; principalmente quando a banda levou o álbum à estrada e proporcionou uma das melhores digressões da História dos Queen. Os temas cresceram em palco e ali, os Queen voltaram a ser um grupo coeso, com Brian May de regresso ao centro da paisagem sonora.
O concerto de Milton Keynes Bowl em 1982 (lançado em DVD em 2004) é o melhor exemplo da relação de amor-ódio que tanto os fãs como a banda têm com este período acidentado. De um dos álbuns mais odiados dos Queen saiu uma das melhores digressões, com passagens triunfais por Leeds e Edimburgo e uma saída pela porta grande em Milton Keynes. Sabendo da gravação televisiva do espectáculo, Freddie quis deixar algumas palavras sobre a reacção negativa do público e da crítica ao álbum novo da banda:
"Most of you know that we’ve got some new sounds out in the last week. We’re gonna do a few songs in the funk/black category - whatever you call it. That doesn’t mean we’ve lost our rock’n’roll feel, ok? It's only a bloody record! People get so excited about these things... We just wanna try a few new sounds; this is "Staying Power"."
Sorrio sempre com a ingenuidade do Freddie nestas palavras – "é SÓ um disco dos Queen". Como se isso fosse de somenos. Freddie sentia que tinha algo a provar e arrancou para uma performance olímpica de "Staying Power", uma das canções mais difíceis de cantar ao vivo; ou como Freddie disse em Kassel, semanas antes – "a real bitch to sing". O tema era tão difícil que sempre que Freddie não se sentia na sua melhor forma, os Queen não o tocavam; ainda começou por fazer parte da setlist da The Works Tour em 1984, mas foi completamente abandonado depois da débâcle em Milão e nunca mais apareceu. Em Milton Keynes, Freddie vai a todas.
"Hot Space" gerou tensões tão grandes no seio da banda, que só não separou os Queen em definitivo porque os projectos a solo que lhe seguiram foram unanimemente desastrosos. E rapidamente os Queen se aperceberam que a soma das partes valia muito mais que cada uma das rainhas.
6. "Somebody To Love" – Hammersmith Odeon, London (1979/12/26)
Por falar em "real bitches to sing", esta é a maior bitch de todas. Há vídeos no Youtube só dedicados às falhas ao vivo de Freddie (não foram assim tantas) e a maioria deve-se às notas ingratas de "Somebody To Love". Se Freddie estivesse em noite sim, "Somebody To Love" era invariavelmente o ponto alto do espectáculo; se estava em noite não, a canção podia ser um desastre.
A insana agenda dos Queen durante os anos 70 não ajudou em nada a voz de Freddie. Não havia tempo de descanso no meio do infinito ciclo álbum-tour-álbum e as cordas vocais bem precisavam do repouso. Isso torna ainda mais impressionante quando ouvimos a forma soberba que Freddie apresentou durante a Crazy Tour no fim de 1979. A primeira metade do ano fora passada na estrada, na promoção do álbum "Jazz" e gravação do álbum ao vivo "Live Killers"; mal chegaram do Japão, logo os Queen entraram em estúdio para a primeira fase das sessões do álbum "The Game". "Crazy Little Thing Called Love" foi lançado no Outono e, para promover o single, os Queen fizeram-se à estrada novamente para uma curta digressão. No meio, umas semanas de paragem que fizeram milagres.
Depois das merecidas férias, a Crazy Tour apanhou os Queen em modo caviar, com a banda ultra coesa e Freddie em grande forma vocal, talvez mesmo a melhor de sempre. O segundo concerto de Newcastle, em especial, tem a fama de ser a sua melhor performance ao vivo. Pena não haver gravações de qualidade ao nível da performance. Ouçam aqui "Bohemian Rhapsody" de Newcastle, com Freddie a atingir as todas as notas mais altas que normalmente evita. Impressionante.
O vídeo em cima documenta a performance irrepreensível da maior das bitches – "Somebody To Love" – na última noite da Crazy Tour. O concerto completou uma série de 7 espectáculos em Londres, onde em Dezembro de 1979 os Queen bateram consecutivamente uma série de salas icónicas da cidade: Lyceum Ballroom, Rainbow Theatre, Purley Tiffany's, Tottenham Mayfair, Lewisham Odeon, Alexandra Palace e Hammersmith Odeon. O último fez parte da série Concerts for the People of Kampuchea, que reuniu em Hammersmith bandas como os Wings (Paul McCartney), The Who e os The Clash, para a angariação de fundos para o povo do Cambodja.
O concerto de Hammersmith foi gravado em vídeo e é uma das (muitas) pérolas que o Dr. Brian May continua a fazer refém no seu arquivo, ao invés de a lançar para a ávida comunidade de fãs dos Queen, que desesperam por isto há décadas. É um dos pontos altos da banda, particularmente de Freddie que fez aqui a sua última aparição pública antes de deixar crescer o seu icónico bigode.
5. "White Queen (As It Began)" – Rainbow Theatre, London (1974/11/20)
Os Queen são sobejamente conhecidos pela sua imagem dos anos 80, com Freddie Mercury de bigode. O que nem todos sabem, é que houve um tempo em que os membros da banda usavam maquilhagem, pintavam as unhas e vestiam roupas femininas em palco. Foram os early days dos Queen.
No início de 1974, os Queen eram uma banda em ascensão, esfomeada pelo sucesso, com tudo para provar ao público. Ainda a banda andava na estrada com o seu primeiro álbum (lançado em Julho de 1973) e já planeava a estratégia para a promoção do segundo álbum, que fora gravado em Agosto. Sem nenhum hit single, a banda lutava para sobreviver. Naquela altura, parecia uma loucura uma banda como esses tais de "Queen" marcarem um concerto para o Rainbow Theatre – uma das salas mais prestigiadas de Londres. Mas Freddie sabia que ia ser uma estrela e só estava à espera de uma oportunidade para brilhar.
A oportunidade surgiu quando a 21 de Fevereiro, David Bowie (que estava a promover "Rebel Rebel") desistiu da sua aparição no Top Of The Pops da BBC e assim abriu uma vaga no programa musical mais visto do Reino Unido. Não foi Bowie, foram os Queen tocar o seu novíssimo single "Seven Seas Of Rhye", lançado daí a dois dias. De repente, tudo mudou.
"Seven Seas Of Rhye" disparou para o nº 10 da tabela de singles, "Queen II" subiu ao nº 5 dos álbuns e quando os Queen apareceram no Rainbow, esgotaram os mais de 3 mil lugares, provando que eram uma banda que vinha para ficar. Os Queen quiseram documentar a ocasião e foram ao Rainbow gravar o seu terceiro álbum ("Queen III – Live At The Rainbow" soa tão bem...), só que o motor da banda estava em alta rotação e obviamente, esse álbum nunca veria a luz do dia (até 2014). Mesmo depois de Brian May ter caído na cama do hospital por exaustão após 6 concertos consecutivos em Nova York e de lhe ser diagnosticada hepatite, os Queen enfiaram-se em estúdio e escreveram novas canções para um novo álbum de originais. Assim nasceu "Sheer Heart Attack".
Os Queen voltariam ao Rainbow em Novembro de 1974 para promover "Sheer Heart Attack" – um álbum menos polido que "Queen II", mas mais pesado e com mais potencial comercial. Na semana do concerto, o single de promoção ao álbum – o double A-Side "Killer Queen" / "Flick Of The Wrist" –chegou ao nº 2 das tabelas, falhando por uma unha negra o posto mais alto (Brian May faria referência a essa frustração durante o concerto). Mal sabia ele que aquilo seria apenas o início de uma longa caminhada real dos Queen.
O concerto de Novembro foi mais uma vez gravado profissionalmente em áudio e em vídeo, mas igualmente posto na gaveta, até à sua inclusão parcial na (extremamente limitada) caixa "Box Of Tricks" em 1992. O concerto veria apenas o seu lançamento completo, em toda a sua glória, na maravilhosa caixa "Live At The Rainbow" em 2014, a qual agrupou também o concerto de Março.
Tanto no concerto de Março como no de Novembro, podemos ouvir os Queen a darem o litro. Nesta altura, Freddie ainda não tinha as manhas que foi apanhando ao longo da carreira – por vezes "protegendo-se" de algumas notas mais ambiciosas – e dava tudo noite após noite. Por isso não é de admirar que possamos ouvir coisas incríveis nas gravações ao vivo dos early days dos Queen. O tema em cima é um dos melhores exemplos disso – o superlativo "White Queen (As It Began)", uma balada do álbum "Queen II" que ao vivo ganha outra dimensão.
Freddie já se mostrava um predestinado a lidar com a plateia, mas ainda não era o showman que conhecemos dos estádios dos anos 80. Em sua defesa, ele não teve nenhum modelo para se basear; foi ele, em grande parte, que inventou o seu próprio conceito. Freddie Mercury inventou-se a si próprio: inventou o seu nome, inventou a sua persona no palco, inventou a banda que os Queen se tornariam.
4. "Love Of My Life" – Rock In Rio, Rio de Janeiro (1985/01/18)
Quando os Queen regressaram ao Brasil em 1985, para a primeira edição do festival Rock In Rio (que hoje é um franchising milionário), Freddie já era um especialista em audiências sul-americanas. Aliás, de todas as bandas estrangeiras que ali actuaram, os Queen eram provavelmente a mais experiente naquele país, uma vez que já tinha actuado em São Paulo em 1981 para uma audiência de 130 mil pessoas, na altura um recorde do mundo para concertos pagos. Os Queen sempre gostaram de recordes – até porque, como dizia Freddie: "the bigger, the better... in everything" – e voltaram a bater o recorde do mundo no Rock In Rio, quando actuaram duas noites para uma audiência de 250 a 350 mil pessoas.
Freddie já sabia que o público brasileiro tinha um fraquinho por "Love Of My Life" (vejam aqui no concerto de São Paulo em 1981), por isso quando chegou a hora de cantar para o audiência do Rio, Freddie... não cantou. Limitou-se a levantar os braços e a conduzir o público como se de uma orquestra se tratasse. 350 mil pessoas na palma da mão do Rei. Arrepiante.
3. "You Take My Breath Away" – Hyde Park, London (1976/09/18)
Estejam a fazer o que estiverem, parem. Parem e ouçam com atenção o Rei ao piano na melhor balada de todos os tempos. Nesta fase avançada de evolução civilizacional, já deveria ser unânime e axiomaticamente aceite que "You Take My Breath Away" é a melhor canção de amor alguma vez escrita. Quem não corrobora desta doutrina, ou nunca ouviu a canção (façam favor), ou anda com o coração parado e ainda não foi avisado.
“You Take My Breath Away” é Freddie Mercury em todo o seu esplendor. Com exceção de um (majestoso) solo de guitarra de Brian May lá para o fim, aqui só há Freddie: ao piano e na voz; aliás, Freddie em todas as vozes: agudos, médios e graves, layers e layers de Freddie, é tudo dele. E há o silêncio, elemento fulcral neste tema. Sozinho, Freddie vê-se obrigado a um dueto com o silêncio, amiúde interrompido pela rede de harmonias que mostram um Freddie perdido, atormentado pelas vozes do seu subconsciente. “You Take My Breath Away” é sombrio; é a declaração de amor mais visceral e incondicional, quase ameaçadora; um amor como uma força bruta que lavra tudo à sua passagem e nem o próprio Freddie consegue deter.
Muito se fala em “Bohemian Rhapsody” como a grande obra-prima de Freddie Mercury e em termos de grandeza, é um ponto de vista difícil de refutar. Mas se olharmos atentamente, qual obra-prima de menor porte mas mais polida e refinada, é “You Take My Breath Away” o momento de maior beleza da carreira de Freddie. E por que não? De toda a História da música Pop.
2. "Crazy Little Thing Called Love" – Wembley Stadium, London (1986/07/12)
Se o Live Aid foi a noite triunfal de Freddie Mercury (já lá vamos), a aparição dos Queen no Wembley um ano mais tarde, para dois concertos esgotados, foi o seu coroamento. O "Live At Wembley '86" (ou mais tarde "Live At Wembley Stadium" é não só o concerto mais famoso dos Queen, como também uma das gravações ao vivo mais célebres de qualquer banda Rock. Não há ninguém que não identifique de imediato o casaco amarelo ou a icónica pose de Freddie (que anos mais tarde daria um meme para assinalar qualquer triunfo).
Na Magic Tour em 1986 (digressão de promoção ao álbum "A Kind Of Magic"), já todo o concerto dos Queen era milimetricamente pensado. O climax surgia perto do fim, na eufórica sequência "Bohemian Rhapsody" / "Hammer To Fall" / "Crazy Little Thing Called Love", todos com performances estratosféricas na épica noite do segundo concerto de Wembley. O melhor momento da História da Humanidade – há quem diga. Eu, por exemplo.
Era muito novo para me lembrar, mas o meu Pai conta-me que eu "nasci para a música" quando o concerto de Wembley passou na RTP no Verão de 1988, tinha eu dois anos. Durante aquelas duas horas em que olhei hipnotizado para a televisão, fui feliz como nunca e daí para a frente, a minha vida mudou. Se eu sou como sou, se hoje estou aqui a escrever isto, é tudo por causa deste concerto.
1. "We Will Rock You" - Live Aid, Wembley Stadium, London (1985/07/13)
A noite de Freddie Mercury. Quando Freddie conduzia a audiência em "We Will Rock You" com um grito de "I like it, sing it again!", milhares de milhões de espectadores em todo o Mundo já moravam na palma da sua mão. O Wembley, esse era seu desde que "Radio Ga Ga" pusera as 74 mil pessoas que enchiam o estádio a bater palmas com a coordenação de um comício nazi. Mas naquela noite, Freddie queria mais que o Wembley; queria o Mundo. E agarrou-o, ao dançar com o cameraman em "Hammer To Fall", como se desse a mão às 1.9 mil milhões de pessoas (um terço da humanidade) que o viam em casa. Arrepiante.
E foi assim que na noite de 13 de Julho de 1985, o planeta acordou para um facto que estivera o tempo todo à sua frente: não havia um showman como Freddie Mercury. Não havia e não voltou a haver alguém com aquela capacidade para captar e entreter a audiência. O Wembley parecia uma pequena chávena para o brilho da estrela que explodia em palco. Assim foi a vida de Freddie Mercury: como uma estrela que brilhou muito, muito rápido, muito intensamente e explodiu, porque o universo não aguentava com tanto brilho. Parabéns, Rei.
A censura volta a atacar. Chico Buarque é o novo alvo
É a segunda crónica consecutiva que escrevo sobre censura. Espero que a actualidade me permita mudar de assunto no próximo texto, mas torna-se difícil quando em pleno 2017 surge à vista de todos uma nova Ordem de Inquisição a querer impor a censura como algo de socialmente aceitável. E tenham lá paciência, mas se há coisa para a qual eu não tenho paciência nenhuma é para a censura.
Esta nova inquisição moral ignora o princípio básico de que não há boa nem má censura, há apenas censura; a mesma do lápis azul que há 5 décadas proibiu as cantigas do Zeca Afonso que entoam nos comícios; a mesma que há uma semana proibiu ("aconselhou" a retirada) livros infantis à custa de duas páginas aleatórias, sem sequer se darem ao trabalho de analisar as obras em questão, num dos maiores atentados à liberdade de expressão desde os saudosos tempos do Cavaquistão (estou a lembrar-me do programa do Herman).
Esta censura não é melhor porque é nova e muito menos porque é apoiada por um órgão governamental (a 'Comissão para a Igualdade de Género', que nos deixou aqui um belo cartão de visita). Pelo contrário. O facto de decisões perigosas — como a retirada de um livro do mercado —
estarem apoiadas por um órgão do Estado que age de forma imprudente, nervosa e coarcível só dão a este fenómeno proporções muito mais assustadoras. Eu estou à vontade para falar nisto, uma vez que votei numa das forças que apoia o partido que está no Governo, mas estamos a dar passos firmes em direcção a uma nova censura e se ninguém é Capaz de pôr mão nisto, honestamente, não sei onde vamos parar.
A normalização da censura chegou a tal ponto que esta semana li uma notícia que dava conta da retirada dos livros da Anita do mercado (sim, essa Anita) devido a uma recomendação da CIG, a qual apontava o facto da maioria das actividades levadas a cabo pela heroína da série "transmitirem mensagens que possam ser promotoras de uma diferenciação e desvalorização do papel das raparigas no espaço público e dos rapazes no espaço privado". Fiquei de tal forma nauseado ao ler isto, que fui logo tentar confirmar a veracidade da notícia. Uma vez que não vi nada nesse sentido (o que até é de estranhar, dada a facilidade com que se agora se espalham boatos como factos), presumo que tenha sido só uma brincadeira de Facebook. O problema é que este é um sinal dos tempos em que vivemos onde uma aberração deste tipo passa por verosímil. Não é verdade, mas podia ter sido.
São sinais de tempos esquizofrénicos e paranóicos. Paranóicos, porque querem analisar tudo ao milímetro, julgar sumariamente e linchar em praça pública. Esquizofrénicos porque fazem tudo em nome da liberdade, sem se aperceberem do paradoxo que encerra a censura que promovem, num auto-de-fé só comparável aos gloriosos tempos da Inquisição Medieval.
O alvo desta nova inquisição volta a ser a música, desta vez Chico Buarque (esse machista) que, depois de décadas de fitas gravadas, querem higienizar em 2017. Logo ele, que tem uma história de combate à censura. O tema no pelourinho é "Tua Cantiga" e fala de um homem que promete à amante "Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir". Alegadamente, isto coloca a mulher num papel secundário, indexado aos anos 70. A traição é uma coisa démodé, hoje a mulher é independente e por isso não sofre de amor. Porque é isso mesmo que a nova mulher deve ser — um autómato. Porque qualquer tipo de sentimento mais visceral deve ser reprimido em nome dos paradoxos do politicamente correcto defendidos pela Nova Ordem da Inquisição. E porque a nova mulher livre, só é livre segundo as condições estabelecidas pelas Capazes. Nojo.
A música é sentimento e é suposto que assim seja. Por isso é um meio de comunicação tão massivo e poderoso. Se não se identificam com as palavras do Chico, sigam para o próximo artista. É simples. Ou então façam como nos anos 60, quando acusaram os Beatles de anticristos e fizeram fogueiras com os seus discos. Uma vez que hoje já ninguém compra discos, podem fazer uma fogueira com os scrobbles do Chico Buarque no Spotify (para os non-Millennials que me estejam a ler, scrobbles = nº de audições). É que a média de scrobbles dos temas do último álbum é de cerca de 100 mil por canção, exceptuando o "Tua Cantiga", que já foi ouvido mais de 700 mil vezes. Têm muito para queimar.
Atentem bem: não vão conseguir censurar a música. Tal como não conseguiram calar o Zeca, não vão ser Capazes de calar o Chico (até me admiro como ainda não pegaram no assunto) e jamais vão calar alguém que queira enterrar o coração numa fita. Ontem, hoje e amanhã, a música será sempre livre. E não há nada que possam fazer acerca disso.