quinta-feira, 20 de julho de 2017

Os Pretenders recusaram-se a dar um concerto sénior e 'suddenly thunder showered everywhere'

A banda de Chrissie Hynde levantou o pó da carpete que cobria o campo dos Parque dos Poetas

São duas e meia da manhã e estou a escrever isto na esperança que finalmente me dê o sono. Não consigo dormir e a culpa é dos Pretenders. Foi uma maravilhosa surpresa. Sabem quando vão a um concerto sem grandes expectativas na ressaca de um dia de trabalho extenuante, mas aquilo acaba por ser tão empolgante que depois nem conseguem pregar olho, tal é a adrenalina a bater no vermelho? Foi isso que aconteceu hoje com o concerto dos Pretenders no Parque dos Poetas.

Mas a coisa não esteve fácil para a banda de Chrissie Hynde. Os Pretenders foram contratados para um festival tranquilo de plateia sentada (chama-se Cool Jazz por alguma coisa) que, numa noite fria como a de ontem (a Rita Redshoes já se tinha queixado quando abriu), previa um concerto morninho, calminho e outros adjectivos cinzentos de grau diminutivo. Mas os Pretenders são uma banda de Rock 'n' Roll e não vieram a Portugal preparados para dar um concerto sénior. E por isso cedo começaram a levantar o pó da carpete que cobria o campo do Parque dos Poetas.

Depois de abrirem o set com uma sequência do novo álbum e o deep cut "Message Of Love", a Chrissie (que não está com merdas) mostrou-se desagradada com a falta de gente a dançar e chamou toda a gente para a frente do palco (lá fui eu a correr). Sacou de "Don't Get Me Wrong" e "suddenly thunder showers everywhere". Chrissie deu um pontapé na letargia do público e de repente, a temperatura disparou. Já não fazia mais frio em Oeiras. "Who can explain the thunder and rain, but there's something in the air". O que havia no ar era Rock 'n' Roll.



Mas desenganem-se se pensam que foi um set apoiado nos êxitos. Os Pretenders têm uma carreira muito longa, mas não têm tantos como isso. O último grande hit já remonta aos mid-90s ("I'll Stand By You") e foi introduzido com um "let's get this out of the way". O que transcendeu o concerto de ontem foi algo muito simples: foi puro Rock 'n' Roll. Solos de guitarra, solos de bateria e canções entregues furiosamente, uma em cima da outra, sempre a abrir. Velhos? Velhos são os que ficam sentados.

O baterista Martin Chambers já leva 66 anos  e não é por isso que denota a idade; está na banda com Christie há 35 anos – "Se tivéssemos feito sexo teríamos durado 6 meses; é o meu máximo", disse Chrissie; acrescentando depois "Too much information, sorry". Martin é um espectáculo dentro do espectáculo. Baquetas ao ar, baquetas para o chão, cuspo para o ar, cuspo para o chão e carregar na bateria como se a vida dependesse disso.

Por falar em espectáculos à parte, o guitarrista James Walbourne está na banda desde 2008, mas parece que nasceu para aquele lugar. Foi ele quem mais brilhou no eléctrico "Thumbalina", um dos pontos altos do concerto, com um riff a fazer lembrar Johnny Marr dos The Smiths. Que besta de guitarrista.

Num set de 18 temas disparados em hora e meia, houve obviamente espaço para os maiores hits. "Don't Get Me Wrong", "Brass In Pocket" e "I'll Stand By You" foram chegando sempre que era preciso arrebitar as linhas mais duras da audiência. Chrissie prestou ainda homenagem a Ray Davies dos The Kinks –  "talvez o melhor compositor de sempre" e "quem começou tudo para mim", confessou –, relembrando o clássico "Stop Your Sobbing".

O meu único senão da noite foi a falta de temas de "Viva El Amor!" – álbum que teve muita tracção em Portugal e que me deu a conhecer os Pretenders em 1999 – , especialmente o single "Popstar", que é uma deliciosa 'revenge song' contra Jim Kerr dos Simple Minds. Jim era casado com Chrissie (8 anos mais velha que ele), mas trocou-a por uma wannabe da Kylie Minogue – a quase actriz / quase cantora Patsy Kensit (que mais tarde também andou com o Liam Gallagher) – e que tinha menos 9 anos que ele. Que idiota, este Jim.
A Chrisssie continua impecável. Aos 65 anos, aquele lendário eyeliner ainda mexe; a voz está igualzinha, uma autêntica powerhouse; e continua a ser a miúda mais cool com uma guitarra na mão. Também confirmou a minha teoria de que a história de que o melhor do mundo são as crianças é uma grande mentira. O melhor do mundo são as roqueiras. Nem que tenham 65 anos.

Grande concerto, a surpresa do ano. Os Pretenders ganharam ontem um fã.


domingo, 16 de julho de 2017

Deftones criaram a sua república e Seu Jorge levou-nos às estrelas

A crónica do último e mais esquizofrénico dia do Super Bock Super Rock

O Super Bock Super Rock 2017 terminou com o mais esquizofrénico dos cartazes deste ano. No palco principal, juntou-se Indie Pop, Nu Metal e Electronica; isto enquanto se ouvia Stoner cá fora e Bossa Nova no Pavilhão de Portugal (quando o público deixava). Eu percebo, há muita gente para agradar. É muito bonito querer juntar tudo e dizer que vivemos todos em harmonia, mas no mundo real a maioria das pessoas que vai a um festival, vai à procura de um destes estilos; ou dois, três no máximo. O melhor dos festivais é poder descobrir bandas novas, mas isso é mais complicado quando saltamos sucessivamente para pontos opostos do espectro musical.

O resultado disto é que o público junto aos palcos se desinteressa pela música que não é a "sua" e aí começa a conversa que, quando multiplicada por milhares, resulta num ruído que muitas vezes se sobrepõe à própria música. Como se esperaria num cenário que quer agradar a toda gente, quem lá foi pode ter ficado com a sensação que soube a pouco. Mas já chega de preliminares, vamos ao que se passou nos concertos.

Foster The People (Palco Super Bock Super Rock, 20h20)

Os Foster The People abriram o palco principal para um Meo Arena ainda a meio gás. A colocação da banda de Indie Pop californiana antes de Deftones é difícil de entender, mas felizmente o público português já não é tão impaciente como o de há 15 anos (que o digam os Nickelback) e o concerto correu sem problemas. Também ajudou o facto de terem trazido muitos fãs.

A banda de Mark Foster apresentou um set enérgico e positivista, carregado com os seus êxitos mais catchy como "Don't Stop (Color On The Walls)", "Coming Of Age" e "Pumped Up Kicks", alinhados para fazer o público cantar e saltar. Cumpriram o que se propuseram. Música fácil de ouvir, sem esconder alguma juvenilidade e superficialidade, mesmo quando Foster tentou puxar por um lado mais denso, afirmando (e muito bem) que "what makes the world great is our differences not our similarities". A verdade é que todos os presentes aceitaram os Foster The People, mesmo tendo em conta que a maioria estava ali para a banda que ia tocar a seguir.

Black Bombaim (Palco LG/SBSR.fm, 20h55)


À saída de Foster The People, ainda consegui apanhar o fim de Black Bombaim no palco LG e tenho que lhes fazer referência. Outra loiça. A música fácil de ouvir ficou obviamente dentro do Meo Arena e cá fora mergulhamos nos longos instrumentais psicadélicos dos rapazes de Barcelos, entre o pôr do sol e o cheiro a erva. É como se de outra dimensão se tratasse.

Deftones (Palco Super Bock Super Rock, 22h)

Se já esperava a meia casa em Foster The People, fiquei mais surpreendido com a não enchente em Deftones. O tempo áureo do Nu Metal já lá vai e o cartaz heterogéneo não ajudou a cativar mais público desta franja. E se soubessem que o concerto duraria pouco mais de uma hora, menos teriam comparecido. Só vieram os fiéis, mas estes ocuparam a primeira metade do recinto num imenso mosh pit, onde se fundou uma república metaleira para quem o concerto não tinha como dar errado.

Aqui tenho desde já que apresentar o meu acto de contrição. Ao contrário do que é hábito, não fui para o mosh pit (comecei a ter mais cuidado desde que parti quatro dedos do pé direito há dois anos em The Prodigy) e sinto que por isso perdi o algum do mojo do concerto. Deftones não é a mesma coisa se não se estiver lá em baixo a sujar os pés. Vi o concerto da bancada e lá em baixo, o ambiente pegou fogo por diversas vezes. A loucura explodiu em "Change (In The House Of Flies)", altura em que se provou que é possível música pesada no Atlântico sem violar os tímpanos da audiência.


O concerto de Deftones proporcionou também o momento de maior beleza de todo o festival, quando Chino Moreno se chegou perto das grades e um fã abraçou-o a chorar compulsivamente, como se naquele momento estivesse ali a expelir todos os seus demónios. E não é para isso que serve a música?

Seu Jorge (Palco EDP, 22h50)


O Palco EDP teve a sua maior enchente ao longo de todo o festival ontem em Seu Jorge, que (em boa hora) trouxe ao SBSR o seu tributo a David Bowie. Este tributo consiste na apresentação integral da banda sonora de "The Life Aquatic with Steve Zissou" de Wes Anderson (que já remonta a 2004) e que é composta por covers de David Bowie com "tradução livre" em português. "Tradução livre" porque Seu Jorge não percebe muito da língua (ou pelo menos na altura não percebia) e como tal, quando Wes lhe apresentou o desafio de fazer as covers de Bowie, ele limitou-se a inventar a letra que melhor lhe soava naquela música. Os resultados foram interessantes, tão interessantes que mais de 10 anos depois, o brasileiro ainda anda aqui a cantar esses temas.

Seu Jorge chegou 10 minutos atrasado e ainda bem, porque me permitiu ver um dos melhores concertos do Super Bock Super Rock na íntegra. Um gajo e uma guitarra. Só. Às vezes não é preciso mais nada. O silêncio era (devia ser) um elemento essencial do espectáculo, mas eu cedo me apercebi que ia ser muito difícil respeitá-lo. Aparentemente, este era 'the place to be' na noite de sábado —tranquilo, música baixinha, à beira rio, ambiente perfeito para conversar. Até porque os Deftones fazem muito barulho, um horror, e não dá para falar em condições. Está explicada a enchente. Mas voltemos à música que é o que importa e foi tão, tão boa.

O concerto começou com o inconfundível "Ziggy Stardust" e o mais difícil foi resistir ao ímpeto de gritar "SO WHERE WERE THE SPIDERS" no refrão, que aqui foi substituído por "meu instinto não falha!". Nada a ver, mas é bonito ver que a barreira da língua não impediu Seu Jorge de fazer a sua interpretação. Depois contou a história do telefonema de Wes Anderson que começou tudo e que ele não quis atender porque estava num dia de folga, em casa a jogar FIFA. Seu Jorge foi apanhado desprevenido uma vez que os únicos temas que conhecia de Bowie eram "Let's Dance" e "This Is Not America" — "menino preto da favela não ouve Rock 'n' Roll" justificou, tocando a seguir "O Samba Da Minha Terra" como um exemplo do que ouvia. 

Ao longo do concerto, o carioca foi contando as histórias da génese de cada uma das suas covers. Como "Rebel Rebel", que foi escrita em 15 minutos na caravana do set do filme, porque se tinha esquecido de ouvir este tema. Seu Jorge estabeleceu uma ponte com quem o queria ouvir (e foram muitos que o respeitaram) e abriu portas para uma visão ainda mais profunda da música que tocava. Ficámos por exemplo a saber que esta digressão se deve à morte do seu pai, dois dias depois da morte de David Bowie que alinhou as estrelas para este tributo a Bowie. "Acredito que eles estão os dois a viver em Marte", atirou.

Os clássicos foram desfilando sem parar ao longo de uma hora, mas o público só ficou totalmente rendido quando chegou o cover de "Life On Mars?" (terá entrado nalguma novela?) e enfim cantou, aplaudiu e fez tudo o que se pede num espectáculo ao vivo. Pela minha parte, fiquei rendido logo de início à simpatia, honestidade e simplicidade de Seu Jorge. Um gajo, uma guitarra e as estrelas. Melhor concerto do dia, quiçá do festival.

Fatboy Slim (Palco Super Bock Super Rock, 23h50)

O Super Bock Super Rock fechou o palco principal com um DJ set, sublinhando ainda mais a heterogeneidade do cartaz deste ano. Não foi a primeira vez que vi Fatboy Slim ao vivo, mas admito desta vez estava com um problema de enquadramento que me impediu de melhor curtir o DJ britânico — estava sóbrio.

Fatboy Slim começou forte, a tentar captar o público com cânticos de "hey ho, let's go!" roubados aos Ramones, mas depressa começou a ficar muito repetitivo. Num set pejado de diversos samples de outros artistas ("Radio Ga Ga" dos Queen teve especial ênfase), esperava-se que Norman Cook deixasse os seu próprios hits para o fim, até porque êxitos são coisa que não lhe falta. Mas eles nunca vieram. Só teasers de poucos segundos para deixar água na boca, mas dos singles que todos conhecem e amam, nada. No fim de contas, acabou por ser um DJ set um tom acima da média, mas pouco mais que isso. Gostei muito mais do concerto de Fatboy Slim no Sudoeste 2005. Mas admito que aí estava bastante mais bezano.

Epílogo

O SBSR terminou e o saldo não é especialmente positivo. O festival parece estar com graves problemas de esquizofrenia, na dúvida se é ainda é o Super Rock, se é Super Hip Hop, ou se é o Sudoeste In The City. Para além do problema da aleatoriedade, o cartaz deste ano foi particularmente fraco em comparação com os anos mais recentes. Também é preciso dar mais tempo de palco aos cabeças de cartaz, que são eles quem traz mais gente ao festival. Mas o ponto mais negativo do festival são sem dúvida as obscenas condições acústicas do Meo Arena, um problema antigo para o qual urge encontrar solução, nem que para isso tenhamos que regressar ao místico Meco.

No pólo positivo, tivemos o tão aguardado (ainda que curto) regresso a Portugal dos Red Hot Chili Peppers, a revelação dos The Orwells, a humanidade dos Língua Franca e a pureza de Seu Jorge. As condições de mobilidade do festival também são extraordinárias e o conforto de estar em casa meia hora depois de sair do recinto (para quem mora em Lisboa, obviamente) é um luxo que não tem paralelo nos festivais em Portugal. A ideia dos copos alugados continua a ser ganhadora (mas 2€ por um copo?), mantém o recinto limpo e evita a vergonha alheia que é ver pessoas a vasculharem os caixotes do lixo para conseguirem mais um copo para uma t-shirt. Para o ano há mais.

sábado, 15 de julho de 2017

O Hip Hop tuga dos Língua Franca salvou a noite do pior concerto da minha vida

A crónica de um roqueiro no dia do Super Bock Super Hip Hop

Ao longo da minha vida fui muitas vezes acusado de "não perceber o hip-hop". Todos os que fizeram esta abjecta e caluniosa acusação estavam completamente certos (eventualmente percebi que estavam a citar Sam The Kid). Devo por isso avisar-vos à partida de um pormenor importante: sou um roqueiro. Se já leram qualquer coisa minha já devem ter percebido isso; se não leram, ficam a saber. Porém, sou igualmente um apologista da máxima Salvadoriana de que "música é sentimento" e como tal estou aberto a todo o tipo de música. Pelo menos tento.

Por isso fazer a crónica de um dia dedicado ao Hip Hop no Super Bock Super Rock (pausa para rir no "Super Rock") é um exercício de coragem. Tudo o que vão ler daqui para a frente é a perspectiva de um peixe fora de água. Se querem ler que foi tudo arco-íris e unicórnios, o melhor é fecharem a página e irem a uma daquelas publicações que fazem esse tipo de "críticas". Portanto, se conseguirem lidar com isto, continuem a ler. Se não conseguirem, leiam também. Só não digam que não vos avisei.

Língua Franca (Palco EDP, 22h45)

Para quem não conhece, Língua Franca são os Rio Grande do Hip Hop em língua portuguesa (e digo isto como um elogio) — um supergrupo de rappers que junta nomes fortes de Portugal (Valete e Capicua) e do Brasil (Emicida e Rael). A Capicua disse à Andreia que estava no SBSR para conquistar o público e eu fui de mente aberta para ouvir o que tinham para me mostrar. E fiquei positivamente surpreendido.

Desde logo pela preocupação em mostrar um espectáculo pleno de arte e talento. Para além dos quatro rappers, os Língua Franca apresentaram-se em palco com D-One nos pratos, Fred Ferreira na bateria e, last but definitely not least, o Vítor Ferreira (obrigado Capicua!) a desenhar (excelente) artwork das músicas, a qual era projectada ao fundo do palco ao vivo, isto é, ao mesmo tempo que os MCs actuavam. Impressionante.

Os quatro MCs alternaram na frente do palco, às vezes sozinhos, às vezes em duo ou em trio. Capicua foi quem brilhou mais na primeira parte do set (o nervosismo era injustificado!) e quando chegou Valete que os níveis de entusiasmo do público descarrilaram; primeiro com "Fim Da Ditadura" (pesquisei no Google) e depois com "Rap Consciente" (esta reconheci), denunciando como "emporcalharam o hip-hop" com "alianças com kizombeiros". Impossível não gostar de um gajo com opinião forte e eles no sítio.

A seguir, por volta das 23:30, deu-se uma debandada geral para ver Future no Meo Arena. Não percebi. 'Até se está bem aqui; talvez Future seja melhor', pensei. Mas decidi ficar até ao fim.

"Somos mais iguais que diferentes", atirou Emicida depois. Ele falava das diferenças entre os portugueses e os brasileiros, mas eu ouvi aquilo como uma referência ao rock e ao hip hop. Acho que também serve. "Tudo começa com a porra de um sonho!", acrescentou. Diferentes, sim, mas pelo que eu vi aqui no Palco EDP, a paixão é a mesma. Só por coisas diferentes.

Apesar de me sentir desajustado, os Língua Franca foram para mim uma bela surpresa. Mesmo fora da minha praia, vi um bom espectáculo, onde houve empenho e preocupação com a arte e, mais importante ainda, se sentiu alma de quem estava em palco. É o que se pede quando se vai a um concerto.

Future (Palco Super Bock Super Rock, 00h)

Depois de ter saído satisfeito do espectáculo de Língua Franca, fui para Future a pensar que isto não pode ser assim tão mau. E se houve grande debandada no Palco EDP para guardar lugar em Future no Meo Arena, é porque Future é melhor, certo? God, no. À chegada Palco Super Bock Super Rock, o cenário não estava muito animador; meia casa, se tanto. Uma sombra do dia anterior, onde não cabia uma agulha mais para ver Red Hot Chili Peppers. Pode ser que a organização aprenda a lição. Se a tendência nos próximos anos for esta, o tamanho que podem esperar da audiência está à vista.

Vou ser o mais directo possível. O concerto de Future — aquilo que fui fisicamente capaz de suportar — foi a experiência mais penosa da minha vida. E estou a contar com aquela vez em que vomitei compulsivamente durante duas horas numa viagem de barco em Portimão. Foi absolutamente impossível de estabelecer uma relação de afecto com a música, isto quando se conseguia distinguir do ruído opressivo que vinha das colunas.

Já devem ter adivinhado. O som do concerto de Future estava ao habitual nível a que o Atlântico nos habituou, entre o indecifrável e o puramente doloroso. Aquele dilúvio de baixo de que vos falei em The Weeknd, que assoberba o pavilhão auricular e castiga os ouvidos (e que parece lesar tudo o que seja Hip Hop ao vivo), aqui estava ainda mais proeminente. Mas não eram só os baixos que estavam fora de controlo. Os agudos estavam tão estridentes que picavam os tímpanos. Nunca tinha sentido tal coisa na vida. E, acreditem que já vi muitos concertos com volume tão alto que até arrebitam os pêlos das partes baixas.

Agora imaginem este cenário dantesco naquelas belas condições acústicas do Atlântico. De onde eu estava na bancada, era absolutamente insuportável. Muitas foram as vezes em que fui obrigado a tapar os ouvidos de sofrimento. Ao fim de quase uma hora de concerto, não aguentei mais e tive que sair para espetar uns garfos nos ouvidos e assim aliviar a dor.

Muitos foram o que fizeram o mesmo. À saída, ouvi uma roqueira (denunciada pelo casaco de cabedal) dizer que "Hip hop tuga ainda se aguenta, agora isto... mais vale o Despacito". O que o desespero leva as pessoas a dizer. E mais tarde, passando por uma attendee inglesa "I just cannot believe how shit Future is, this is unbelievable". Não diria melhor. Pior concerto que vi na minha vida.

Agora atentem bem. A ideia que nos querem vender, de que música completamente despida de alma e humanismo como a de Future pode ser o futuro está fundada em duas bases epistemologicamente erradas. A primeira é a de que "este é o futuro, isto vai ser assim e temos que nos habituar". Errado. Isto só vai ser assim se o público assim o quiser e o público de ontem não quis. A segunda falsa premissa é a de que "o espectáculo ao vivo no futuro vai deixar de ter qualquer componente ao vivo" e será apenas um conjunto de autómatos e automatismos que as pessoas pagam para ver. Esta ideia então, à partida paradoxal, não faz sentido rigorosamente nenhum. As pessoas saem de casa e vão a live shows para se conectarem, seja no SBSR, no Alive, no Rock In Rio e até mesmo no Sudoeste; para se conectarem com a música, com o artista que está no palco, com a babe que está ao lado, ou até com "aquela pessoa" que sabem que vai ver a foto nas redes sociais e que depois desesperam que comente ou faça um mero like. Porque no fim de contas, continuamos e continuaremos sempre a ser humanos. Isso é imutável.

Por isso mesmo, podem ter a certeza de uma coisa. Depois desta experiência, passei a valorizar muito mais o hip hop português. Louvados sejam Valete e Capicua. Pela energia que passaram, pela alma, pelo humanismo, pela mensagem, pelo "som" (e aqui uso a palavra no mesmo registo que o Valete), foram os Língua Franca os melhores deste dia do Super Bock Super Hip Hop.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

O regresso ao Liceu que deixou muito a desejar dos Red Hot e o sangue novo dos The Orwells

Os Red Hot Chili Peppers deram um concerto demasiado curto e The Orwells foram a surpresa
O Super Bock Super Rock começou ontem e teve logo no primeiro dia o cartaz mais forte. Com algumas novidades e problemas antigos, estes são os destaques do primeiro dia de festival.

Red Hot Chili Peppers (Palco Super Bock Super Rock, 20h40)


Permitam-me um pequeno enquadramento. O primeiro (e último, até ontem) concerto que os Red Hot Chili Peppers deram no Pavilhão Atlântico, em Janeiro de 2003, foi um dos mais importantes da minha vida. Tinha 17 anos e a morar em Castelo Branco, estava longe de tudo o que me interessava; mas quando os Red Hot anunciaram a sua vinda a Portugal, eu sabia que tinha que lá estar. É preciso recuar no espaço e no tempo para perceber a dimensão deste acontecimento: os Red Hot eram na altura a banda do Liceu; eram eles que mais consistentemente passavam na rádio da Associação de Estudantes e eram a banda mais traficada no auge das cópias de CDs, tanto pelo seu álbum de 1999 "Californication", como o então recém-lançado "By The Way". Para mim, aquele concerto era uma espécie de corolário do Liceu; e foi, de facto, um momento decisivo da minha vida — porque a minha mãe não me deixou ir e com isso desencadeou uma fome de concertos para a vida (se soubesse disto, talvez me tivesse deixado ir).

Importa este enquadramento para perceber a magnitude do concerto de ontem no Super Bock Super Rock —  14 anos depois, pude finalmente estar no Atlântico (agora Meo Arena) para satisfazer a minha fantasia adolescente. Tantos anos esperei e tanto que o concerto deixou a minha fantasia a desejar. Começando logo pela duração do espectáculo, abaixo da hora e meia. Para uma banda que não vinha a Portugal há 11 anos, um set com 15 canções deixa muita água na boca. Para um headliner de um festival, ainda por cima o nome mais forte do cartaz (e de muito longe), torna-se incompreensível.

Claro que se este set de 15 canções fosse um concentrado "sempre a abrir" de êxitos, a história teria sido outra. Mas não foi assim. Foram demais os temas fulcrais da carreira da banda que ficaram de fora. Detesto ser aquele gajo do 'shut up and play the hits', mas dois temas do "Blood Sugar Sex Magik" e um tema do "Californication"? Compreendo que não desse para tocar todos e admito a minha parcialidade emocional em favor do "Californication", mas não houve "Scar Tissue", "Around The World", "Road Trippin'" e nem sequer houve "Otherside", provavelmente o tema de maior tracção dos Red Hot em Portugal (e o maior êxito do Liceu). Até "Under The Bridge" (!!!) ficou de fora. Já nem falo em "Dani California", "Higher Ground" ou "My Friends", porque este não era claramente um set de êxitos. Valeram "Aeroplane" e "Suck My Kiss", dois 'minor hits' que me souberam pela vida, qual sandes após jejum prolongado.

Quem não esteve lá e leu até aqui, poderá pensar que o concerto de ontem foi terrível. Nada disso. Só deixou muito a desejar e não correspondeu às minhas (admito que estratosféricas) expectativas. Os Red Hot Chili Peppers continuam a ser uma banda insanamente boa de palco. Que animais. Dá gosto vê-los tocar, tanto nas canções como nos pequenos (e tasteful) improvisos funk que fazem entre músicas. O Flea é uma verdadeira besta do baixo, sempre imprevisível, volta e meia a deixar Chad Smith aos papéis na bateria para acompanhar as suas mudanças de andamento. Mas o Chad não se vai abaixo e esteve quase sempre irrepreensível (não tinha tanta piada de outra forma). Josh Klinghoffer cumpre como substituto de John Frusciante ao vivo (nos discos a história é diferente) e confesso que não senti a falta de John tanto como temia. E por falar em animais, Anthony Kiedis mantém a mestria na arte de ocupar o palco. Pena que não o pudéssemos ouvir em condições, mas isso não era culpa dele (já lá vamos).

Houve momentos de pura apoteose colectiva no concerto de ontem. Sempre que a banda sacava de um clássico, o pavilhão ia ao rubro com um rugido tão ensurdecedor como eu acho que nunca ali ouvi. Foi assim no início com "Cant' Stop" e a meio do set com "Californication". Mas não me lembro de uma histeria no Atlântico ao nível do "Snow (Hey Oh)" de ontem, altura em que a banda praticamente deixou de se ouvir em favor do público a cantar por cima de um ruído indistinguível. Todos os anos tenho que escrever a mesma coisa: a acústica continua a ser o maior problema do Pavilhão Atlântico. Mas até para os standards (baixíssimos) daquela casa, o som no concerto dos Red Hot foi demasiado mau. E acreditem que houve muitos maus exemplos ao longo dos anos. É uma questão antiga que urge resolver, nem que para isso tenhamos que voltar ao pó do Meco.

A setlist foi algo pesada em temas pós-Frusciante (quase um terço do set), com três temas do novo álbum "The Getaway". Dos temas novos, o óbvio destaque é "Goodbye Angels" — mais recente single da banda —, uma malha que eu poderia imaginar em qualquer um dos álbuns clássicos da banda.

Os Red Hot despediram-se com o clássico "Give It Away" e estranhamente Kiedis foi-se embora sem se despedir da audiência (ou fui eu que perdi alguma coisa?). No fim ficaram Flea para agradecer o apoio do público (que foi em grande número e alto barulho) e Chad Smith para distribuir souvenirs e dizer adeus com um "we'll come back soon". Tendo em conta as recentes notícias da separação da banda, Chad deixou-nos o coração mais descansado.


The Orwells (Palco EDP, 20h)



Se os Red Hot deixaram muito a desejar, as expectativas foram ultrapassadas a alta velocidade pelos The Orwells no Palco EDP. Foram a surpresa da noite. O motim começou, desculpem, o concerto começou às 20:00, ainda sob a luz do dia e foi o perfeito aquecimento para o festival. Num concerto para uma plateia muito jovem (ainda era cedo), houve espaço para mosh, crowdsurfing, tudo.

Independentemente do que possam ter lido nas publicações mais trendy, os Orwells não são apenas mais uma 'guitar band' igual às outra. Em primeiro lugar, porque não soam igual às outras 'guitar bands'. A banda de Chicago tem uma sonoridade distintiva, construída pelas guitarras de Dominic Corso e Matt O'Keefe (a fazer lembrar os primórdios dos Oasis), que as separa das demais bandas de garagem que povoam os palcos secundários dos festivais. Depois, porque isso se sente. A energia no Palco EDP andou em ping-pong entre a banda e o público, ora entusiasmando os miúdos lá à frente para mais um mosh, ora puxando pelo vocalista para mais uma dança. O vocalista Mario Cuomo é um frontman à antiga, não toca nenhum instrumento, só canta e dá show à boa maneira de Jagger, Iggy e, obviamente, Kiedis.

São bandas como os Orwells o sangue novo que vai mantendo a chama do Rock 'n' Roll acesa. Quem lá esteve e sentiu a chama das guitarras, sabe do que estou a falar. Claro que estes concertos também têm os seus senãos, nomeadamente o prejuízo em cerveja. É que é muito difícil manter a cerveja no copo enquanto se está a saltar, ou no meio de um mosh.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Foo Fighters were awesome, but not that awesome

The epic 150 minute concert at NOS Alive that everybody is talking about, seen from a not so overwhelmed portuguese fan

They say anticipation is half the fun, but Portugal waited for 6 long years for the return of the Foo Fighters. No fun in that. Since their last concert in 2011, the Foos visited Europe 3 times during their Sonic Highways World Tour (including that infamous broken-leg Leg of the tour) and not once travelled south to play for their ever growing portuguese fan base. Last Friday, the Foos finally arrived in Lisbon after beating a storm that held them in Madrid for hours, threatening to cancel the show and yet again delay their return to Portugal. Not this time.

After waiting for so long, it was no surprise that the level of excitement prior to the show was particularly intense. Even the opening band The Cult complained that the audience was too static — "are you guys on drugs?" asked Ian Astbury, before telling everybody to "fuck off!" —, falling to frustration as people seemed to be there only for the Foos.

Foo Fighters came and delivered a 150 minute epic concert, showing why they are very probably the biggest rock band in the world at the moment. So let's clear the air right away and say that the Foos were awesome. However, like with every other super hero, with great power comes great responsibility to the boys. And great scrutiny. At this point, it's not enough to be awesome and they know that.

The 'biggest rock band in the world', now that sure is a risky title, right? It was hard-earned. Nowadays, the Foo Fighters are one of the very rare rock 'n' roll bands who are able to produce what I like to call 'The Bruce Springsteen Effect'. For those unaware of 'The Bruce Springsteen Effect', it consists on a rapidly contagious virus which spreads across the audience and leaves everybody with a big grin on their faces after the first half-dozen songs.

It didn't take that long. The audience was immediately set on fire within the gigantic 5 track opening set — “All My Life”, “Times Like These”, “Learn to Fly”, “Something From Nothing” and “The Pretender” —, a non-stop freight train recalling the old raging Foo Fighters from 10-15 years ago. It looked like the night was going to be like Barney's 'Get Psyched' mixtape — always on top — but Dave Grohl soon revealed different plans for us: "Sometimes I have to take you down". And that's exactly what he did.

Part of the audience might have felt the need for a little rest (the band certainly appreciated it) and Dave took the time to introduce the members of the band, who offered the audience a series of little gems of improvisation, such as "Another One Bites The Dust" and "Blitzkrieg Bop". Great stuff, but I was ready to get back on the freight train. What ensued though was a series of deep cuts mostly from the 2011 album "Wasting Light", which I'd be ok with (it's the last great FF album) if they weren't injected with long and pointless extended jams. These dragged the songs for far too long and lowered the temperature of the concert to the point of yawning.

It takes guts to transform a stage in front of 65 thousand people into your own living room, I give them that. It's a sign of confidence that shows the Foo Fighters from 2017 are very different from the band from 10 years ago. They are now sitting at the top of the rock n' roll hierarchy and don't feel the need to prove a thing to anyone. That's great and all, but a little grounding won't hurt. Not everybody got out of the NOS Alive festival feeling it was the best concert ever.

Although I do understand the temptation for this sort of superlatives (I overuse them myself), let's all agree that the Foo Fighters were not that awesome, or at least that they could have been so much better. The band played for 2 hours and 30 minutes and within such a lengthy set, it's a real shame they didn't find the time to play hits like "Breakout", "DOA", "Long Road To Ruin", or even the oldies "Big Me" and "I’ll Stick Around". They all could have easily fitted the set, if the long noodlings were cut. Sadly, the grungey debut album only made an appearance towards the end of the set, igniting the audience with the explosive "This Is A Call". This is where the band shows its mojo, playing these loud raging rock n roll tunes that immediately eject everybody from the ground. They should do more of that.

Afterwards, it was Dave's turn to jump, following the orders from a spontaneous chant from the audience, which eventually lead into an interaction that lasted for more than 10 minutes. The communication between the band and the audience was superb, some of the best I've ever witnessed in my whole life. Easily one of the highlights of night. Foo Fighters are self-confessed Queen fans and they play by the Freddie Mercury book, having in mind how important it is that the audience feels they're part of the show. Taylor Hawkins even emulated Freddie vocal improvisation at Wembley Stadium in 1986.

Overall it was a night of ups and downs that could have (and should have) been more on the upper side. With such a long stage time, the Foo Fighters could have played 5 more songs and done a more compelling show. Obviously, at the end of the day, as the biggest rock 'n' roll band in the world right now, they can do whatever the fuck they want. At least as long as they keep selling the tickets.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Na noite do The Weeknd, foi Ryan Adams quem reinou

O primeiro dia dos NOS Alive também contou com a pujança dos Royal Blood


O primeiro dia do NOS Alive 2017 provou por que todos os anos vemos o festival ganhar tracção internacional. A organização está cada vez melhor e, tirando a cegada que é a saída do recinto (invista num passadiço pedonal, Sr. Covões), o maior defeito está nalgumas escolhas perversas que obrigam o público a fazer. Mas esse é o preço de apresentar um cartaz muito forte. Vamos então ao resumo dos principais concertos do primeiro dia. Começando pelo fim.

The Weeknd (Palco NOS | 00:50)

Abel Tesfaye —  mais conhecido como The Weeknd —  era um dos nomes mais esperados do festival e basta olhar à volta para perceber que é o artista que mais gente trouxe ao primeiro dia do NOS Alive. Quem já ouviu a sua música (e como escapar a isso?), percebe que Abel sabe bem o que é uma música Pop e, mais importante que isso, sabe como criá-la. A expectativa era alta e a hora proibitiva do início do concerto (00:50 num dia de semana?) não demoveu os seus fiéis, que ocuparam uma boa parte do recinto em frente ao Palco NOS.

The Weeknd diz que ouve Michael Jackson antes dos concertos e essa inspiração ouve-se na sua música. Talvez seja por isso que o melhor The Weeknd apareça quando explora as pistas de dança. Como logo no início em "Star Boy", ou na imparável sequência "Secrets" / "Can't Feel My Face" / "I Feel It Coming"  lá mais para o fim, que foi facilmente o ponto alto de ontem no palco principal. Tenho um carinho especial por "Secrets", que cruza dois dos meus temas preferidos dos anos 80 — "Pale Shelter" dos Tears For Fears e "Talking In Your Sleep" dos The Romantics (se não conhecem, não deixem de espreitar) — e resulta num empadão Pop delicioso que revela arte na produção e muito, muito bom gosto.

É isto que acontece quando The Weeknd toma atenção à melodia  e foi esse talento que lhe valeu a fama de segunda vaga do Michael Jackson. Sem surpresa, foram também esses os melhores momentos do concerto de ontem. Pena que ele demasiadas vezes pareça mais apostado em ser a segunda vaga de Kanye West. Vamos então aos senãos.

O problema com The Weeknd ao vivo é o mesmo mal de que sofrem os seus discos. Estão (propositadamente) carregados de baixo que assoberbam todo o pavilhão auricular, supostamente para a música "bombar" mais. Só que isso arruína por completo quem quer ouvir a música e não está no Urban Beach. A melodia fica tão diluída no dilúvio dos baixos, que a determinado ponto torna toda a experiência penosa. O concerto de ontem teve demasiados momentos destes e não tinha que ser assim. A mudança de paradigma na audiência foi perceptível quando entrou a já referida sequência "Secrets" / "Can't Feel My Face" / "I Feel It Coming", com muito menor proeminência de baixo. Pena ele ter voltado para o fecho com "The Hills".

Agora que atingiu o estatuto de super-estrela, esperar-se-ia que Abel tentasse proteger as suas criações do tratamento sónico obnóxio a que são sujeitas. Mas é "assim" que está estabelecido agora, não é? Pois, é pena.


Royal Blood (Palco Heineken | 00:00)


Enquanto não chegam os Foo Fighters, os roqueiros que marcaram presença no NOS Alive congregaram-se ontem à meia-noite no Palco Heineken para ver Royal Blood. Mas antes de contar o que se passou no concerto, permitam-me um desabafo. Os Royal Blood são o perfeito espelho do ponto a que chegou a música Rock em 2017; ou melhor, do que é permitido ser uma banda Rock para ter algum airplay em 2017. Não que haja alguma coisa de mal com o duo de Brighton, atenção. Mas fico algo confuso quando os parecem vender como os novos Led Zeppelin. Revela mais sobre o estado do mainstream actual do que da própria banda, que não culpa nenhuma disso. 

Como qualquer roqueiro, ouço-os com toda a facilidade e esse é que é o problema. Eles são tem genéricos, tão 'clean' e tão consensuais, que fica difícil estabelecer uma relação de afecto mais intensa. Na época do politicamente correcto, os rapazes inofensivos dos Royal Blood são os heróis moderados perfeitos. É que, já sabemos, agora os músicos não podem dizer nada que seja minimamente ofensivo, não podem ter atitude e, god forbid, alguma densidade. Pela minha parte, preciso de mais alguma profundidade ou. pelo menos. mais alguma tesão (e sim, esta é a palavra) do que a insipidez de um "Figure It Out"; embora reconheça alguma melhoria do primeiro para o segundo álbum (nomeadamente no "How Did We Get Do Dark?", que não foi tocado ontem). O problema não é não haver bandas Rock em 2017. É não haver bandas Rock que me compelem a criar uma religião sobre eles. Mas divago.

Dito tudo isto, meu amigos rockers que me lêem, o concerto de ontem no Heineken foi uma bomba. Puro Rock 'n' Roll. E não, não há aqui qualquer contradição. Ao vivo, a história é bem diferente. Não é por acaso que o concerto Rock ganhou fama de experiência transcendental.

Em primeiro lugar, tiro o chapéu à organização que teve olho em pôr o duo de Brighton na tenda Heineken, não caindo na tentação de pôr a banda a abrir para o The Weeknd no palco principal, misturando públicos diferentes e diluindo a sua pujança naquele espaço aberto. Na tenda, os Royal Blood puderam concentrar todo o seu músculo num espaço exíguo e, em comunhão com o público, criar um ambiente selvagem e ensurdecedor, daqueles que enchem o coração a qualquer roqueiro.

Enquanto os riffs rijos do baixo de Ben Thatcher ocupavam a tenda, Mike Kerr carregava na bateria com toda a força, castigando os pratos como se de uma terapia se tratasse. E quando chegou "Figure It Out" — esse mesmo que eu diminuí no início do texto —, foi o delírio. À frente do palco, o caos do mosh e cá atrás, o regresso do fenómeno das cavalitas, bonito espectáculo para ver nos ecrãs, menos para os desgraçados que estão directamente atrás.

No fim do concerto, Ben e Mike foram para o meio do público e despediram-se em crowd-surfing: "never in my life I've seen at the same place and at the same time so many beautiful people. Thank you so much!", até que a produção lhes cortou o som, porque por eles, já não saíam dali. Mesmo presumindo que Mike diz isso a todas (as audiências), eu fiquei a gostar mais dos Royal Blood. Vejam só a diferença que um concerto pode fazer. A vontade de formar a religião é que nem por isso.


Ryan Adams (Palco Heineken | 22:00)


Deixei o melhor para o fim. Eram 22:00 quando entrou na tenda Heineken o melhor músico que actuou ontem no Alive. É um cenário um pouco estranho, ver Ryan Adams aparentemente perdido no meio do cartaz, para quem traz na bagagem um dos melhores álbuns do ano (e não sou só eu que o digo). Mais estranho ainda é ver a organização impor a escolha perversa entre Ryan na Heineken e The xx no palco principal. Como se houvessem dúvidas.

Ryan Adams entrou logo a abrir com "Do You Still Love Me?", o primeiro single do seu novo álbum "Prisoner", que poderia também ser dos Whitesnake. "Do you still love me, babe?!" canta Ryan, num grito terapêutico que de imediato o liga emocionalmente com o público. É esse elo emocional que é trabalhado ao longo de quase hora e meia. Seguidamente avança para os clássicos "To Be Young (Is To Be Sad, Is To Be High)" do álbum "Heartbreaker" e "Gimme Something Good" do seu álbum homónimo de 2014, outro callback ao Hair Metal dos anos 80. Já estamos todos ligados.

O set de Ryan faz um resumo de toda a sua carreira, incluindo os álbuns com os The Cardinals, pecando só por mostrar muito pouco do seu superlativo novo álbum. Outro senão é a completa ausência de temas de "1989"; embora soubesse à partida que Ryan não costuma tocar esse álbum, não deixei de ficar um pouco desapontado. Faltaram também "Come Pick Me Up" e o seu famoso cover de "Wonderwall". Talvez Ryan tivesse ouvido acerca dos incêndios que castigaram Portugal no último mês e tivesse medo de pegar fogo à tenda Heineken com o tema dos Oasis.

Como artista multifacetado que é, Ryan quis dar um espectáculo a mostrar todos os seus registos. Assim, para além dos momentos de maior vapor, houve também espaço a temas de beleza tranquila como "When The Stars Go Blue" e refrões a capella (lamentavelmente interrompidos pelo ruído vindo do palco principal) e solos de guitarra de 5 minutos em "Peaceful Valley".

As canções que Ryan vai entregando sucessivamente em intensidade catártica são praticamente mono-temáticas. A sua música nasce à custa de um sem número de marteladas no coração e de um consequente abuso de substâncias proibidas (que também afectaram a sua fisionomia) que lhe trazem inspiração. Mas há algo de irresistivelmente masoquista e metaromântico nesta vontade Louis-CKiana que ouvimos na música de Ryan Adams, de se apaixonar sem medo da miséria do pós-heartbreak. Estou, aliás, cada vez mais perto de o proclamar o melhor escritor de canções de break-up desde Bruce Springsteen.

O espaço é perfeito para ouvir esta música acolhedora de Ryan Adams. Minha querida Heineken. Ryan não tem o baixo do Urban, mas não precisa de nada disso. Traz as melodias e os sentimentos nas suas canções. Porque "música não é fogo-de-artifício, música é sentimento", lembram-se? Ontem parecia até que havia uma Team Heineken, já que o baterista do Ryan Adams envergava uma t-shirt dos Royal Blood, que iriam actuar a seguir. Por falar em t-shirts, viram a do baixista, que dizia "THE SMITH" com o grafismo dos The Smiths e a cara do... Robert Smith? O elo emocional da banda com o público foi apertando e Ryan Adams (que vestia uma t-shirt da sua própria banda) despediu-se do público com um emocionado "This place fucking rules, you rule!". Não, Ryan. Tu é que reinas no nosso coração.