quarta-feira, 24 de maio de 2017

E ao sexto dia, Deus criou Manchester

 Como a cultura de Manchester salvou a minha vida e como a querem matar

Amo Manchester. Amo-a profundamente, não pela sua beleza, mas pela sua alma. Para quem vive e adora viver em Lisboa, não é fácil apreciar Manchester. Ali não há praia nem sunsets, até porque não há sun; quem lá vai à espera de encontrar arco-íris e unicórnios, vai embater de frente com a realidade cinzenta da cidade. À primeira vista feia, triste e austera, a cidade esconde porém uma cultura de afirmação positiva sem paralelo – um oásis de rosas de pedra onde as ruas são frias e solitárias, mas os beijos dados por baixo das pontes metálicas são mágicos e à noite nos podemos sentir como uma estrela de Rock N' Roll. Se acharam a frase anterior desconexa, mas sentem que já ouviram isto antes (parem-me!), então devem ter percebido que comecei aqui algo que não sei se consigo terminar. Passemos, pois, ao assunto: esta é a história de como a música de Manchester salvou a minha vida (não literalmente, Mãe; está descansada).

Eu tinha 14 anos e não me identificava com nada em meu redor. Vivia num quotidiano casa-escola-casa solitário, sem rumo nem guia, de uma desorientação típica adolescente. Até que um dia ouço uma música (e como todas as revoluções na minha vida, esta também começou com uma música). A música chamava-se "Rock 'n' Roll Star" e respondia a todos os meus anseios. Era tudo tão simples – "Tonight I'm a Rock 'n' Roll star". Porque sim. Porque "na minha cabeça, os meus sonhos eram realidade" e se eu quisesse, podia ser tudo. E assim abri a porta à cidade que salvou várias vezes a minha vida e à cultura com que eu, finalmente, me pude identificar – a música de Manchester.

Muitas vidas mais tarde, fui finalmente a Manchester. Visitar o lugar de onde saíram os nossos heróis é uma jogada de risco; a expectativa é alta e a cidade pode não corresponder à imagem que criámos ao ouvir a música. E eu não escondo que o meu primeiro pensamento foi "como raio uma cidade tão fria pode fazer música tão quente?". O que vale é que nos pubs está sempre calor.

"E ao sexto dia, Deus criou Manchester" – pode ler-se à porta do Afflecks, um dos mais icónicos lugares da cidade, em pleno coração do Northern Quarter. Aqui acredita-se piamente que Manchester é um lugar mágico e sagrado. E não é para menos. Afinal este é o lugar que deu berço às bandas mais cool da história do Rock: Oasis, The Stone Roses, The Smiths, Joy Division, New Order, James; outras menos cool mas com igual sucesso como Simply Red, Take That, The Hollies e The 1975 e outras menos conhecidas mas de igual pujança como os Buzzcocks, The Fall, Happy Mondays, A Certain Ratio, The Durutti Column (e restante legado da Factory Records e de Madchester). Só neste bocadinho enumerei 15 bandas saídas da capital mundial do estilo.

Gostei tanto de Manchester, que voltei logo a seguir para ver The Stone Roses – heróis da cidade e símbolos maiores da sua cultura (reparem na t-shirt que usei para a minha foto na NiT) – e ali deixei parte do meu coração. A que trouxe comigo, partiu-se esta semana a ver aquelas imagens horripilantes de um lugar onde eu já fui tão feliz.

É a mesma história do Bataclan. Estão outra vez a querer atacar o meu, o nosso, modo de vida. Agora doeu ainda mais, porque atacaram o lugar onde tenho parte do meu coração, porque atacaram a geração mais nova, porque atacaram o oásis da cultura da positividade. Mas estão com azar. Em Manchester, por pior que as coisas pareçam, há sempre alguém que se levanta e diz que "I am the resurrection and I am the life". Manchester é vida. Não é assim que a vão matar.


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