quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Na guerra entre Neil Young e Spotify, quem é David e quem é Golias?

Em Novembro de 2018, Neil Young foi anunciado como headliner do festival British Summer Time, um evento anual no Hyde Park, em Londres, numa épica double bill com Bob Dylan a ter lugar no ano seguinte. Fãzíssimo de Neil Young, logo me apressei a comprar bilhete. Dias mais tarde, o impensável aconteceu — Neil Young fazia um ultimato ao festival por causa do patrocinador que lhe dava nome e que, em última instância, lhe estaria a pagar o seu próprio cachet — o Barclays. Acusando-os de financiar combustíveis fósseis, Neil escreveu uma carta aberta no seu site atirando: "Este patrocinador não serve para mim. Eu acredito na ciência. Preocupo-me com o ambiente e estou profundamente apreensivo com o futuro dos meus netos. Não há cedência possível". E Neil Young não cedeu.

O que se passou a seguir foi ainda mais impensável. Perante o ultimato de um artista contra os homens do dinheiro, a lógica ditava que a actuação de Neil iria ser cancelada. Só que não foi. Neil Young, alavancado apenas e somente pela sua música e pela sua teimosia, conseguiu forçar o festival BST a fazer cair o seu principal investidor no dia em que ia tocar.  Mas como, se todo o recinto estaria forrado a publicidade ao banco? Com a devida vontade, tudo é possível. No dia de Neil Young, todas as referências ao Barclays foram excluídas: todos os painéis foram tapados (alguns deles outdoors gigantes — incluindo o que estava no palco, que dizia Barclays Summer Time); todos os letreiros foram escondidos; até os terminais de pagamento tinham um autocolante branco, onde no visor aparecia Barclays. Foi das cenas mais bizarras que já vi na vida. O concerto? O Neil partiu tudo, claro.

Serve esta longa introdução para lembrar que a luta indefectível de Neil Young em nome daquilo em que acredita, seja na música, no ambiente, ou na ciência, está muito longe de ser nova. Sem medo, sempre irredutível, contra tudo e contra todos, por mais poderosos que sejam. E serve também para recordar que é perigoso subestimar a força de Neil Young. Sim, ele é "só" um músico de terceira idade com ideais florais dos anos 60. Mas é um músico com ideiais florais que não se verga, e que leva consigo milhares de fiéis que o ouvem, precisamente porque sabem que ele não aceita concessões. A força de Neil Young está assente na confiança, em décadas consecutivas de diálogo com a sua audiência através da música — palavras que ecoam entre gerações, "words between the lines of age". Conhecemos bem o Neil, sabemos que podemos confiar nele as chaves da nossa casa. 
 

Este poder de Neil Young, perene e assente na arte, não corre o perigo de desvalorizar 4 mil milhões de dólares em poucos dias. Que foi exactamente o que aconteceu às acções do Spotify, desde que Neil Young retirou a sua música da plataforma de streaming. Tem sido o assunto das últimas semanas. Tal como fizera com o BST em 2018, Neil Young accionou novo ultimato ao Spotify: ou parava de espalhar desinformação acerca das vacinas, ou a sua música seria retirada da plataforma com efeitos imediatos. O alvo era o super poderoso podcast do ex-comediante americano Joe Rogan — The Joe Rogan Experience. "Podem ter o Rogan, ou o Young. Ambos, não", rematou, em mais uma carta aberta no seu site. Quem achava que o Neil estava a fazer ameaças vãs estava, pois, redondamente enganado. Sem resposta por parte do Spotify, Neil retirou-lhes prontamente a sua discografia.

A resposta nas redes sociais tem sido curiosa. Vejo sucessivos ataques ao Neil Young, pela barulhenta minoria anti-ciência do costume, em nome de uma suposta liberdade de expressão, que o Spotify, e mais especificamente o Joe Rogan, devem ter para expressar os seus pontos de vista. Isto ao mesmo tempo que, no habitual bingo de coerência, mandam calar o Neil — uma vez que "é só um músico" — , mas por outro lado elevam o Eric Clapton a herói, porque tem a coragem de ir "contra o sistema". Bom. Em primeiro lugar, era só o que faltava que o Neil Young se calasse. É não saber nada sobre ele. E quanto ao "fruitcake" do Clapton (estou a citar o Brian May), que aparentemente está muito preocupado com os químicos injetados no seu corpo, recordo que este farol da ciência e da saúde consumia 16 mil dólares de heroína por semana (por semana!) nos anos 70. Na época, Neil Young cantava "The Needle And The Damage Done",  Eric fazia "Cocaine". Escolham bem os vossos heróis.

Mal ou bem, pelo menos o Eric Clapton é um herói da guitarra. O Joe Rogan, por seu turno, é herói de coisa nenhuma. Sei bem "quem" ele é, é fácil identificá-lo — Joe é o Gajo de Alfama do RAP, em versão "amaricana". A diferença do Joe Rogan para o nosso habitual frequentador da tasca lá da rua, é que em vez de debitar disparates para uma mesa de quatro, este tem um megafone que chega a mais de 11 milhões de pessoas em cada programa. Tendo uma audiência maior que os telejornais da BBC ou da CNN, é alguém com poder significativo, cuja desinformação tem custos directos na saúde pública. E por isso mesmo tem que ser devidamente contextualizado e, no limite, restrito. 

Nesta questão da liberdade de expressão, permitam-me que puxe pelos galões, para lembrar que sou, e sempre fui, contra qualquer tipo de censura. Já escrevi extensivamente na NiT sobre como todos os conteúdos devem ser abertos ao público, com o devido contexto e as devidas limitações. Da mesma forma que o Mein Kampf deve ser apresentado nas escolas, apenas aos meninos mais crescidos, como exemplo de como um discurso de ódio pode resultar no holocausto, o podcast de Joe Rogan tinha que ter um gatekeeper a avisar do conteúdo falacioso e fantasioso do mesmo. E não pensem que o Spotify defende a liberdade, ou não é capaz de remover conteúdo e que, inclusivamente, não o fez inúmeras vezes no passado, sempre que assim o entendeu. O ónus desta questão é precisamente que o Spotify reviu o conteúdo de Rogan e mesmo assim decidiu difundi-lo e promovê-lo.
 
Vamos ser claros. O Joe Rogan não é "um" conteúdo no Spotify, é "o" conteúdo de proa do Spotify. Para quem não sabe,  o Spotify investiu 100 milhões de dólares (!!!) em 2020, para ter os direitos exclusivos de emissão do podcast de Rogan. Não há nada de ingénuo na acção da plataforma em manter um Gajo de Alfama na proa do seu navio. Esta gente gera dinheiro. E foi por isso que, entre um ícone da música popular dos últimos 50 anos que tentava zelar pela saúde pública e um podcaster, o Spotify escolheu o último. A explicação é muito simples: o Spotify não é uma empresa de música, não quer saber de música para nada e muito menos dos chatos dos artistas que a produzem. O Spotify é uma empresa de tecnologia que quer fazer dinheiro. Ponto. A música foi apenas o veículo que usaram para chegar ao lucro e nem sempre (ou raramente) da forma mais ética.
 
O problema é que, como é hábito em quem toma decisões a olhar para folhas de Excel, os executivos do Spotify falharam em olhar para a floresta. Neil Young é uma árvore centenária. Se ele fala, as outras árvores ouvem. Foi por isso sem surpresa que vi artistas como Joni Mitchell, Graham Nash dos CSNY (David Crosby revelou que não tem controlo sobre o assunto, senão também o faria) e Nils Lofgren (guitarrista dos Crazy Horse e da E Street Band de Bruce Springsteen) a seguir-lhe os passos. Até James Blunt ameaçou voltar aos discos se medidas não fossem tomadas, algo que me assusta particularmente. Claro que a maioria dos músicos não os pode seguir para fora do Spotify,  uma vez que estão dependentes da plataforma; mas essa é outra conversa, não menos importante, relativa ao poder que deixámos que o Spotify assumisse e às royalties miseráveis que paga aos artistas. Talvez seja precisamente essa a discussão que devíamos estar a ter neste momento.
 
O Spotify comprou uma guerra contra um adversário que não pode tombar — a teimosia de Neil Young. Não preciso concordar com ele em tudo, para admirar a sua coragem e nutrir enorme respeito por um homem que não se verga em nome do que acredita. Nesta questão do Spotify, também eu tive, e tenho, as minhas reservas, uma vez que os principais prejudicados com esta acção são os seus fãs, como eu, que deixaram de poder ouvir a sua música a caminho do trabalho. Mas Neil também já tratou disso e ofereceu 4 meses de subscrição grátis na Amazon Music. E convenhamos, o Neil Young soa em melhor em vinil de qualquer forma . Guerra é guerra, e quem faz frente a Neil Young, tem que estar preparado para lidar com as consequências. O Barclays caiu do Hyde Park; depois dos 4 mil milhões de dólares perdidos na última semana, vamos ver até onde cai o Spotify. 

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