terça-feira, 22 de junho de 2021

O génio resiliente de Noel Gallagher


Noel Gallagher atingiu esta semana o décimo segundo nº 1 na tabela de álbuns do Reino Unido com o lançamento da compilação "Back The Way We Came", que reúne os melhores temas (segundo ele) da sua carreira a solo. Este é o quarto no.1 da sua discografia a solo (em quatro álbuns), depois de oito com os Oasis (em oito álbuns), aos quais se somam nove singles que também atingiram o topo das tabelas. Números impressionantes que, ainda assim, deixam Noel longe de reunir consensos. Não que ele os queira, ou sequer os procure — Noel adora antagonizar a sua própria audiência — mas é notável que depois de três décadas a disparar hits, melodias e letras que aumentaram a realidade das nossas vidas, Noel ainda seja olhado de soslaio pela franja mais hipster do público que, pura e simplesmente, não o percebe. Não é assim tão difícil.

As canções de Noel Gallagher personificam tudo aquilo que a música pop deve ser — durante quatro minutos e meio, transformam a nossa vida mundana numa aventura épica, onde o amor vence e os sonhos são realidade. "In my mind my dreams are real" ("Rock 'n' Roll Star") é a linha que define toda a magia da escrita de Noel. Um rapaz do council estate que recusou o seu destino, votado a uma vida esquecida na classe média-baixa mancuniana, e aprendeu a olhar para as estrelas enquanto ouvia a música dos Beatles, Stone Roses, Sex Pistols e The Smiths, trancado no quarto, para se esconder de um pai bêbado e violento. Quantos de nós não passámos horas infinitas trancados no quarto a ouvir música, cada um com as suas razões? Eu sei que passei. A diferença é que o Noel teve a coragem, e o talento, de pegar na guitarra e começar a escrever as suas próprias viagens ao céu. Conduzido por uma melancolia e uma ânsia de sair muito inglesas, o Noel veio anunciar que há mais para além do que nos querem dar. Que não estamos presos ao nosso destino. Que num mundo onde nos querem pôr constantemente no nosso lugar, baixinhos e inofensivos, podemos ser o que quisermos ser. Que num mundo onde todos nos dizem para olhar para o chão, devemos apontar ao céu. Que num mundo obcecado com a morte, podemos viver para sempre

Para quem vem de baixo, para quem tem a ânsia de chegar mais alto, ou simplesmente para os sonhadores — todos aqueles que vivem a vida a olhar para as estrelas —, estas canções ressoam, batem forte como um exorcismo, um bálsamo que nos leva deste "mundo grande e mau" (para citar outro génio da Britpop). Não é suposto serem uma afirmação intelectual, são apenas o reflexo das nossas ansiedades, a verdade que procurávamos e que nos liga uns aos outros. É por isso que, 25 anos depois, milhões de pessoas ainda cantam em plenos pulmões estas canções em bares, parques, arenas, estádios e comboios um pouco por todo o mundo, enquanto abraçam um qualquer desconhecido ao seu lado. Porque o apelo da sua música é transversal. É esse o génio resiliente de Noel Gallagher — um génio que cruza gerações, continentes e estratos sociais.

Sei perfeitamente que é daqui que vem grande parte da resistência aos Gallaghers. Por muito que se glorifiquem histórias da ascensão social do underdog, quando elas acontecem na realidade, quem está em cima não gosta dos trepadores que ali chegam e quem está em baixo não gosta dos que saem de lá. Basta olhar para o caso do Ronaldo, que mesmo depois de tantos anos de conquistas, de se afirmar como um génio que será lembrado durante décadas, para muitos nunca passará de um azeiteiro pé rapado dos confins Madeira. A ascensão dos Gallaghers significa o triunfo dos bárbaros, dos iletrados, da classe operária. A classe intelectual nunca os perdoará. Mas que importa isso para os sonhadores? Rigorosamente nada.

Se leram até aqui, já perceberam que a música do Noel teve uma grande influência na minha vida. Foi ele que ensinou um miúdo que cresceu trancado num quarto em Castelo Branco a olhar para o céu, apontar ao Sol e querer sempre mais. Lembro-me como se fosse ontem de estar naquele quarto — o meu Pai chamava-lhe "o bunker" —, a voar com a música dos Oasis, tal como o Noel fizera anos antes com os seus heróis. "In my mind my dreams are real", e foram mesmo. Noel não é Morrissey, mas a sua lírica é tão ou mais efectiva.

Atentemos no imaginário de “Slide Away”, provavelmente a obra-prima do espólio de Noel Gallagher. “Slide Away” é uma canção de amor, mas não é uma canção de amor qualquer. Em vez do prosaico “quero ficar contigo para sempre”, Noel pede para "ser aquele que brilha contigo" (“Let me be the one who shines with you”), porque juntos, nós voamos (“Together we fly”) e juntos, vamos apontar ao Sol (“we’ll find a way of chasing the sun”). Querem lírica mais gloriosamente romântica que isto? Curiosamente, a música de Noel é praticamente assexuada (Noel Gallagher não é, definitivamente, o George Michael), em vez disso remete-nos para uma dimensão amorosa platónica, estratosférica, onde um beijo nunca é “só” um beijo — é um desejo pintado num céu de veludo. E a Supernova de Champagne, bem, isso talvez seja de facto uma metáfora sexual.

O Noel de hoje já não tem nada a ver com o rapaz do "Definitely Maybe", que ansiava por uma vida melhor fora do council estate. Mas Noel continua a olhar para as estrelas. Os últimos 10 anos deram-nos preciosidades como “A Simple Game Of Genius”, “Alone On The Rope”, “Revolution Song”, “Let The Lord Shine A Light On Me”, ou “Rattling Rose”, curiosamente, ou muito provavelmente não, todas elas fora do alegado best of que Noel lançou na semana passada. Noel adora antagonizar e confundir a sua audiência, Há coisas que nunca mudam. Esqueçam por isso a nova colectânea e ouçam antes esta playlist de Lados B da sua carreira a solo, que é muito mais interessante.

terça-feira, 8 de junho de 2021

David Gilmour vs Roger Waters: A guerra sem fim



Quase tão antigo como o conflito israelo-palestiniano, e tão ou mais interessante, é o conflito Waters-Gilmouriano. Duas estrelas que durante duas décadas colidiram numa supernova criativa e que agora parecem nao sair do buraco negro. As duas últimas semanas trouxeram muitas novidades, mas desta vez nem todas más. Aqui o tio Nuno, parte interessada neste conflito há mais de 30 anos, dá-vos o update do essencial.

Comecemos pelo fim. Ontem saiu uma entrevista à Rolling Stone do casal inseparável John/Yok..., errr desculpem, David/Polly, onde o tio David atira a matar sobre o tio Roger. Na parte mais escaldante da entrevista, a inevitável pergunta dos Pink Floyd, David não mostrou a sua habitual contenção:

RS: Is there anything going on with Pink Floyd on the archival front? There’s been talk of an Animals reissue in recent years.

Gilmour: Well, a very lovely Animals remix has been done, but someone has tried to force some liner notes on it that I haven’t approved and, um, someone is digging his heels and not allowing it to be released.

Samson: But you don’t have liner notes, do you?

Gilmour: No, we’ve never had liner notes.

Samson: Why are you suddenly having liner notes?

Gilmour: Because someone wants them, and they got a journalist to write some, and I didn’t approve them. And he’s just getting a bit shirty. You know how he is, poor boy.

Ora, esta entrevista e esta resposta em particular, explicam o que aconteceu na semana passada na barricada do tio Roger que, como sabemos, não é propriamente conhecido pela sua contenção. Num vídeo carregado de veneno, o Roger anunciou o lançamento da nova remistura do álbum Animals, bloqueada desde 2018 pelo conflito Waters-Gilmouriano, tudo graças àbonomia do próprio Roger, que ia ceder pela sua parte e anuir ao lançamento sem as liner notes escritas por Mark Blake (autor de "Pigs Might Fly: The Inside Story of Pink Floyd"), que contariam a história por trás da criação do álbum e que David se recusava a incluir nesta reissue. Algumas notas sobre isto:

Em primeiro lugar, o David está (quase) correcto em como, mal ou bem, os lançamentos dos Pink Floyd nunca tem liner notes. Curiosamente, a excepção que me recordo é a caixa "Shine On", que o próprio David lançou como projecto pessoal em 1992, quica para "legitimar" os seus Floyd ao lado dos classic Floyd, numa altura em que o assunto ainda era, e muito, discutido (hoje acho que não há discussão - os Floyd dos 80s e 90s são tão Floyd como os dos 70s). Retirando essa (curiosa) excepção, de facto, os lançamentos dos Floyd costumam deixar a música falar por si e deixar o "behind the scenes" envolto em mistério.

Depois, como é óbvio, a inclusão destas liner notes é mais do interesse do Roger do que do David, uma vez que o Roger é que foi o principal responsável pela criação e pelo conceito do álbum "Animals". Se David tivesse levado a sua ideia avante, o álbum "Wish You Were Here" teria sido formado por 3 longas composições: "Shine On You Crazy Diamond" no Lado A e "Raving And Drooling" e "You Gotta Be Crazy" no Lado B. Teria sido um álbum largamente instrumental mas, segundo Roger (e bem), sem um fio condutor. Com a composição conjunta do tema "Wish You Were Here", o disco ganhou uma nova direcção e o resto é história. Para "Animals", uma nova perspectiva Orwelliana recuperou "Raving And Drooling" de Roger como "Sheep" e "You Gotta Be Crazy" de David como "Dogs". A face política de então inspirou Roger para "Pigs (Three Different Ones)" (com a ajuda de um loop de Rick Wright e que nunca foi creditado) e estava assim feito o álbum mais sombrio dos Pink Floyd. Para Roger, ele compôs 4/5 do álbum. Para David, ele compôs metade, uma vez que "Dogs" compõem a quase totalidade do Lado A. Ambos têm razão à sua maneira, mas é impossível fazê-los concordar em quem fez mais ou em quem fez o que (o que, convenhamos, é um bocado triste quando pensamos que estes senhores já tem 80 anos). As liner notes de Mark Blake, mais elogiosas para o Roger, foram assim naturalmente vetadas pelo David. E assim chegámos a 3 anos de um conflito sem fim à vista. Até há semana passada.

O vídeo de Roger a anunciar a reedição de "Animals" apanhou toda a gente de surpresa, primeiro porque ninguém sabia por que este projecto estava bloqueado e segundo, porque não lhe cabe a ele fazer esse anúncio. Para todos os efeitos, o Roger saiu da banda em 1985, anunciando que os Pink Floyd eram uma "força esgotada". David tinha outras ideias e levou a bandeira dos Pink Floyd pelos anos 80 e 90, introduzindo a banda a novas gerações (eu incluído), provando que Roger estava errado. Entretanto, os Pink Floyd tornaram-se num million dollar business e Roger, responsável pela maioria da sua música, ficou de fora da esfera de decisões, por (má) decisão própria. Para o bem e para o mal, é assim que funciona. Chegados aos dias de hoje, temos o ridículo dos livros de Polly Samson a serem anunciados no site oficial dos Pink Floyd e os projectos de Roger Waters, (auto-denominado) génio criativo dos Pink Floyd, fora do site, fora do Facebook, fora de tudo. É ridículo, sim, mas o Roger só se pode culpar a ele próprio. Por mais que esbraceje e ataque o David, nada vai mudar nesse sentido.

Nesta guerra sem fim, o Roger foi suficientemente esperto ao antecipar os comentários da entrevista da Rolling Stone (certamente alguém o avisou do que aí vinha) e, com este vídeo, sair como o herói da situação para os fãs, e colocar o David entre a espada e a parede (e ao mesmo tempo lançar as famigeradas liner notes no seu site - o tio Roger não dá ponto sem nó - enquanto chamou David de "a jolly good guitarist and singer"). Depois da cedência de Roger, David está agora obrigado a lançar a remistura de "Animals", sob pena de sair como o vilão da história que age puramente por despeito e perder a imagem de "nice guy" que tem na audiência. E esta é a única boa notícia para nós, fãs dos Pink Floyd, que estamos para este conflito como os filhos de um casal divorciado que não se consegue entender. Do mal o menos, vamos mesmo ter a caixa de "Animals", com novas remisturas em Stereo e Surround e uma nova e mais recente imagem da magnífica Battersea Power Station, onde este que vos escreve trabalhou durante 2 anos como Lead Engineer de Temporary Works (a jóia da coroa da minha carreira profissional). Nesta altura, já não espero que os meus dois ídolos se entendam, mas como diz o David no fim da sua entrevista na Rolling Stone - "we live and we hope".