A crónica de uma noite de Rock 'n' Roll pelas razões correctas
Sempre fui fã de concertos de beneficência. Paira nestas noites um sentido de comunhão e urgência que as torna especiais e tantas vezes nos proporciona momentos icónicos que marcam de forma indelével a cultura popular. A tradição do Rock neste tipo de eventos é rica e antiga: começando no longínquo Concert For Bangladesh (primeira actuação a solo de George e logo a tocar temas dos Beatles com Eric Clapton), passando pelo famoso Live Aid (quando os Queen tomaram de assalto o Wembley e as duas mil milhões de pessoas a assistir em casa) e o seu irmão mais novo Live 8 (quando os Pink Floyd enterraram o machado por uma noite), pelos concertos do Prince's Trust nos anos 80 (George Harrison e Ringo Starr finalmente reunidos) e pelo Tributo ao Freddie Mercury que despertou o mundo para a SIDA (Axl e Elton abraçados, George Michael a tomar os Queen de assalto, infelizmente só por uma noite), até ao mais recente One Love de Manchester (Chris Martin a fazer as pazes com um Liam Gallagher munido de uma magnífica parca laranja). A lista de páginas históricas desenhadas nestes concertos é infindável.
Há um momento, porém, que define para mim estes concertos — quando Paul McCartney entra em palco no Hyde Park para fechar o Live 8 e diz ao público: "You came for the right reason. You wanna rock.". Porque depois de pagar o seu bilhete e fazer a sua contribuição, é exactamente para isso que o público lá está.
Foi nesse espírito que eu fui ao concerto Hoping For Palestine no Roundhouse, em Camden, norte de Londres. O dinheiro da bilhética revertia para as crianças da Palestina, pelo que sabia que algum bem ia sair dali. Mas a partir do momento em que estava lá dentro, o que eu queria mesmo era Rock N' Roll. O problema é que nem todos os artistas da noite receberam o memorando. Mas já lá vamos.
Comecemos como o Memento, pelo fim — The Libertines. Que concertão. Uma noite sem dormir à custa destes gajos. Não que o concerto tivesse acabado a hora tardia, que em Londres a partir das 23h não há barulho para ninguém (eles ainda estenderam a coisa por mais 10 minutos); mas quem é que consegue dormir depois de uma noite destas, com o corpo carregado de adrenalina? É por isso que os concertos a meio da semana (neste caso numa segunda-feira!) são sempre um desastre fisiológico que desregula por completo todo o equilíbrio de uma pessoa. Mas voltemos ao concerto.
Quem quer que ache que o Rock N' Roll está morto, precisa de ver The Libertines ao vivo. Urgentemente. A banda londrina está melhor que nunca e deu um espectáculo que viverá para sempre na memória de quem foi ao Roundhouse. Bem, na verdade não deu um, mas sim dois espectáculos. Passo a explicar.
Carl Barat fazia anos e como tal, a noite teve dois concertos diferentes: o primeiro, antes de Pete Doherty lhe cantar os parabéns e os dois irem para trás dos palco por 5 longos minutos (enquanto o baterista e o baixista improvisavam em palco); o segundo, quando voltaram do backstage a fungar e a coçar o nariz (não estou a metaforizar) e mais pareciam dois bêbados num karaoke. E pasmem-se, ambos os concertos foram maravilhosos.
A primeira parte do espectáculo mostrou uma banda bem ensaiada, feliz e plena de positivismo. Especialmente o Pete Doherty, que apareceu com o seu melhor aspecto desde desde 1998. Tem obviamente andado a comer a sopinha em casa.
Em cima do palco, tudo corria de forma inusitadamente sóbria. Talvez descontente com tal efeméride, Pete Doherty revela que era o aniversário de Carl Barat e é aqui que as coisas descambam. Doherty despe o blazer e mostra a camisola da Argentina em tempos usada por Maradona, ao mesmo tempo que começa a cantar os parabéns a Barat. Depois, enfim, foram os dois maradoniar para trás do palco. Mas como julgar? A ocasião merecia um festejo à antiga.
Quando voltaram, começaram a tocar os acordes de "Golden Brown" dos Stranglers e aí deixaram-me baralhado acerca da escolha da actividade atrás do palco. Branca ou castanha? Cheira-me a branca. Bem, não literalmente, que eu estava quietinho cá atrás.
A segunda parte do concerto foi um belíssimo descarrilamento de puro Rock 'n' Roll. "Gunga Din", "Time For Heroes", os hits continuaram a sair, mas agora aos tombos como nos "Good Old Days", um espelho perfeito dos dois frontmen em palco. Dois bêbados num karaoke, zero fucks given. Como não adorar?
O concerto terminou com Pete Doherty a lançar a sua própria guitarra para o público (microfones já tinham sido uns quantos) para desespero do seu guitar tech que, coitado, teve com certeza o pior serão de todos os que foram ao Roundhouse. A guitarra, essa, por pouco não me acertou na cabeça, distraído que estava aos pulos no meio do mosh pit. Ora fiquem aí com o vídeo do momento, cortesia da própria banda (atentem no roadie).
Antes do prato principal servido pelos Libertines, a noite teve uma série de aperitivos de nomeada: Patti Smith a abrir, Thurston Moore, Frankie Boyle e até Eric Cantona a declamar poemas entre sets. Cantona foi curto, directo e brilhante, mas os restantes deixaram muito a desejar. O memorando de que a audiência estava ali para se divertir deve ter sido dobrado em quatro e utilizado para fazer linhas no camarim dos Libertines, porque de certeza que mais ninguém o leu.
O set de Thurston Moore, voz e guitarra dos Sonic Youth, consistiu num cover integral do primeiro lado de "Metal Machine Music", acompanhado por um tipo num fato-macaco branco e aprumado a fazer dança contemporânea. Excelente combo para um concerto de beneficência. Mas a grande decepção da noite foi mesmo Frankie Boyle. O comediante, um dos melhores do mundo a fazer stand up comedy, preferiu a leitura sóbria às piadas, desperdiçando uma chance crucial para mostrar que todóos os momentos têm espaço para o humor. Que pena.
No início da noite, Patti Smith brilhou intensamente em "Pissing In A River", pondo toda a audiência madrugadora em sentido com o seu poderosíssimo vozeirão. Só foi pena ter ocupado o seu já curtíssimo tempo de palco com longos discursos activistas. Patti queria dar o enquadramento da ocasião à audiência, mas não percebeu que o público já estava no Roundhouse pelas razões correctas — para se divertir, ao mesmo tempo que ajudava. Os Libertines sabem como se faz.
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