quarta-feira, 6 de junho de 2018

The Libertines em Londres — Um concerto de beneficência que descambou numa festa maradoniana

A crónica de uma noite de Rock 'n' Roll pelas razões correctas

Sempre fui fã de concertos de beneficência. Paira nestas noites um sentido de comunhão e urgência que as torna especiais e tantas vezes nos proporciona momentos icónicos que marcam de forma indelével a cultura popular. A tradição do Rock neste tipo de eventos é rica e antiga: começando no longínquo Concert For Bangladesh (primeira actuação a solo de George e logo a tocar temas dos Beatles com Eric Clapton), passando pelo famoso Live Aid (quando os Queen tomaram de assalto o Wembley e as duas mil milhões de pessoas a assistir em casa) e o seu irmão mais novo Live 8 (quando os Pink Floyd enterraram o machado por uma noite), pelos concertos do Prince's Trust nos anos 80 (George Harrison e Ringo Starr finalmente reunidos) e pelo Tributo ao Freddie Mercury que despertou o mundo para a SIDA (Axl e Elton abraçados, George Michael a tomar os Queen de assalto, infelizmente só por uma noite), até ao mais recente One Love de Manchester (Chris Martin a fazer as pazes com um Liam Gallagher munido de uma magnífica parca laranja). A lista de páginas históricas desenhadas nestes concertos é infindável.

Há um momento, porém, que define para mim estes concertos — quando Paul McCartney entra em palco no Hyde Park para fechar o Live 8 e diz ao público: "You came for the right reason. You wanna rock.". Porque depois de pagar o seu bilhete e fazer a sua contribuição, é exactamente para isso que o público lá está.

Foi nesse espírito que eu fui ao concerto Hoping For Palestine no Roundhouse, em Camden, norte de Londres. O dinheiro da bilhética revertia para as crianças da Palestina, pelo que sabia que algum bem ia sair dali. Mas a partir do momento em que estava lá dentro, o que eu queria mesmo era Rock N' Roll. O problema é que nem todos os artistas da noite receberam o memorando. Mas já lá vamos.

Comecemos como o Memento, pelo fim — The Libertines. Que concertão. Uma noite sem dormir à custa destes gajos. Não que o concerto tivesse acabado a hora tardia, que em Londres a partir das 23h não há barulho para ninguém (eles ainda estenderam a coisa por mais 10 minutos); mas quem é que consegue dormir depois de uma noite destas, com o corpo carregado de adrenalina? É por isso que os concertos a meio da semana (neste caso numa segunda-feira!) são sempre um desastre fisiológico que desregula por completo todo o equilíbrio de uma pessoa. Mas voltemos ao concerto.

Quem quer que ache que o Rock N' Roll está morto, precisa de ver The Libertines ao vivo. Urgentemente. A banda londrina está melhor que nunca e deu um espectáculo que viverá para sempre na memória de quem foi ao Roundhouse. Bem, na verdade não deu um, mas sim dois espectáculos. Passo a explicar.

Carl Barat fazia anos e como tal, a noite teve dois concertos diferentes: o primeiro, antes de Pete Doherty lhe cantar os parabéns e os dois irem para trás dos palco por 5 longos minutos (enquanto o baterista e o baixista improvisavam em palco); o segundo, quando voltaram do backstage a fungar e a coçar o nariz (não estou a metaforizar) e mais pareciam dois bêbados num karaoke. E pasmem-se, ambos os concertos foram maravilhosos.

A primeira parte do espectáculo mostrou uma banda bem ensaiada, feliz e plena de positivismo. Especialmente o Pete Doherty, que apareceu com o seu melhor aspecto desde desde 1998. Tem obviamente andado a comer a sopinha em casa.


Num set de apenas uma hora, não havia espaço para grandes aperitivos e por isso os Libertines foram direitos ao "Heart Of The Matter". "Fame And Fortune", "What Katie Did", "Can't Stand Me Now", os hits foram saindo uns atrás dos outros, numa torrente que enchia a sala de sorrisos e o chão de cerveja. A sério, com a pint a 5 libras, quem é que no seu perfeito juízo vai lançar o copo cheio no ar sempre que entra um refrão? Só mesmo estes ingleses.

Em cima do palco, tudo corria de forma inusitadamente sóbria. Talvez descontente com tal efeméride, Pete Doherty revela que era o aniversário de Carl Barat e é aqui que as coisas descambam. Doherty despe o blazer e mostra a camisola da Argentina em tempos usada por Maradona, ao mesmo tempo que começa a cantar os parabéns a Barat. Depois, enfim, foram os dois maradoniar para trás do palco. Mas como julgar? A ocasião merecia um festejo à antiga.
Quando voltaram, começaram a tocar os acordes de "Golden Brown" dos Stranglers e aí deixaram-me baralhado acerca da escolha da actividade atrás do palco. Branca ou castanha? Cheira-me a branca. Bem, não literalmente, que eu estava quietinho cá atrás.

A segunda parte do concerto foi um belíssimo descarrilamento de puro Rock 'n' Roll. "Gunga Din", "Time For Heroes", os hits continuaram a sair, mas agora aos tombos como nos "Good Old Days", um espelho perfeito dos dois frontmen em palco. Dois bêbados num karaoke, zero fucks given. Como não adorar?

O concerto terminou com Pete Doherty a lançar a sua própria guitarra para o público (microfones já tinham sido uns quantos) para desespero do seu guitar tech que, coitado, teve com certeza o pior serão de todos os que foram ao Roundhouse. A guitarra, essa, por pouco não me acertou na cabeça, distraído que estava aos pulos no meio do mosh pit. Ora fiquem aí com o vídeo do momento, cortesia da própria banda (atentem no roadie).



Antes do prato principal servido pelos Libertines, a noite teve uma série de aperitivos de nomeada: Patti Smith a abrir, Thurston Moore, Frankie Boyle e até Eric Cantona a declamar poemas entre sets. Cantona foi curto, directo e brilhante, mas os restantes deixaram muito a desejar. O memorando de que a audiência estava ali para se divertir deve ter sido dobrado em quatro e utilizado para fazer linhas no camarim dos Libertines, porque de certeza que mais ninguém o leu.


O set de Thurston Moore, voz e guitarra dos Sonic Youth, consistiu num cover integral do primeiro lado de "Metal Machine Music", acompanhado por um tipo num fato-macaco branco e aprumado a fazer dança contemporânea. Excelente combo para um concerto de beneficência. Mas a grande decepção da noite foi mesmo Frankie Boyle. O comediante, um dos melhores do mundo a fazer stand up comedy, preferiu a leitura sóbria às piadas, desperdiçando uma chance crucial para mostrar que todóos os momentos têm espaço para o humor. Que pena.

No início da noite, Patti Smith brilhou intensamente em "Pissing In A River", pondo toda a audiência madrugadora em sentido com o seu poderosíssimo vozeirão. Só foi pena ter ocupado o seu já curtíssimo tempo de palco com longos discursos activistas. Patti queria dar o enquadramento da ocasião à audiência, mas não percebeu que o público já estava no Roundhouse pelas razões correctas — para se divertir, ao mesmo tempo que ajudava. Os Libertines sabem como se faz.

Sem comentários:

Enviar um comentário