quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O homem de Londres

A história do melhor tema de James Bond que nunca o foi.

Um dos maiores elogios que recebi em toda a minha vida foi de uma paixão que durou apenas 3 dias em Londres. Há amores que são assim — só existem numa determinada janela de espaço e tempo. Passadas as portas da Martini na Portela, o turbilhão desvaneceu tão rapidamente como aparecera; mas naquelas 72 horas, parecia que não havia mais nada do mundo. Era toda a música no mundo, todas as cores e todos os sonhos ao mesmo tempo, condensados numa só tempestade adamastora que lavrava tudo à sua passagem.

Encostados ao muro junto ao rio, a olhar para a Tower Bridge depois de um beijo apaixonado, ela virou-se para mim com um olhar encantado e disse-me que o que mais a impressionava em mim é que eu parecia não ter medo de nada. Sem perceber a tragédia do verdadeiro alcance das suas palavras, sorri e por um momento, senti-me o James Bond.

Toda a minha vida fantasiei com duas coisas: ser uma estrela de Rock n Roll e o James Bond. Por isso senti as palavras dela foram como um enorme elogio, mas nem por isso tirei quaisquer dividendos deste destemor. A verdade é que o medo não é mais que uma consequência das experiências negativas. É um sinal de inteligência emocional. Esta minha estúpida falta de medo deve-se ao facto de ter sido abençoado com a maldição de não aprender com as experiências anteriores e por isso não ter medo de cair nos mesmos erros uma e outra vez. Talvez por isso tenha sempre sentido esta atracção irresistível pelo abismo, pelo erro iminente. E como tal, não tenho medo de nada.



Man-o-war is very melodramatic. Too melodramatic. When we started out, it was just a homage to Bond themes really. I like it. It's pretty much the opposite to everything we're writing."

Os Radiohead escreveram "Man Of War" nos anos 90, por alturas do álbum "The Bends", como uma homenagem aos Bond themes, na expectativa de um dia a EoN (produtora dos filmes do James Bond) ligar à banda com o convite — no documentário "Meeting People Is Easy", podemos ver a banda em estúdio a gravar o tema. O telefone nunca tocou e "Man Of War" ficou na gaveta durante 20 anos, até ao ano passado, quando finalmente viu a luz do dia na reedição de "OK Computer".

A chamada da EoN chegaria finalmente em 2015 e, mel para os Radiohead, eles tinham exactamente o que a EoN. Só que perversamente, a EoN não quis "Man Of War", por ser um tema antigo. Como tal, os Radiohead gravaram "Spectre", o qual foi igualmente rejeitado por ser demasiado sombrio. Em última instância foi chamado Sam Smith, que acabaria por editar o deveras underwhelming "Writing On The Wall", tema competente mas desprovido de alma.

Na verdade, "Man Of War" talvez fosse demasiado complexo para o retrato que a EON quer fazer do James Bond nos seus filmes. Na visão original de Ian Fleming, James Bond é um assassino. Plain and simple. É um homem com mais morte e menos swing que a série de filmes quer fazer crer. Mas acima de tudo, é um homem. Um homem igual aos outros, com medos, desejos e anseios. A morte dos outros é a forma que Bond encontrou para compensar a sua própria morte interior. E é assim que os Radiohead se atrevem a caracterizá-lo.

"Drunken confessions and hijacked affairs just make you more alone"

O que mais me fascina na personagem do James Bond é o que estará por trás do homem infalível que vemos no ecrã. Nas cenas nunca mostradas, quando a câmara desliga e a missão está descomprometida, de certeza que detrás de todas aquelas conquistas há um homem que bebe uns copos a mais e conta os seus segredos a pessoas que conhece há tempo de menos para os saberem; que pega no carro bezano e conduz sem medo pelas curvas de Monte Carlo, em busca de respostas para os seus tormentos; que vai para Londres em busca das cores e encontra cinzento; que anseia pelo momento em que chega a miúda que lhe diz "és a minha Rock 'n' Roll Star".

"Man Of War" retrata este herói solitário e perturbado, um homem sozinho que vive com o peso d'"a missão" nos seus ombros. É o melhor tema de James Bond que nunca o foi. A recusa da EoN faz com que "Man Of War" deixe de ser necessariamente sobre Bond e passe a ser sobre quem quer que viva oblívio do medo e do perigo que espreita a cada esquina. Até finalmente perceber que Londres não tem finais felizes.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Estamos vivos — Uma reflexão sobre o Rock em 2018

O labirinto que cerca o Rock e a procura de uma saída

O Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell em trabalho e rocker a tempo inteiro, mexeu com as águas esta semana. Bastou-lhe despejar a alma numas linhas de um jornal para que, neste mundo beije e insípido onde o politicamente correcto reina e todos temem ter uma opinião, ele fosse imediatamente notícia. Não estranho. Numa crónica publicada no Jornal de Leiria, o Fernando discorre sobre os cronistas de Lisboa "de todo o peido que a Madonna dá", que dão o Rock como "uma coisa ultrapassada, para gente “fatela” e “burra”". Ora, eu também sou um cronista de Lisboa e embora não me sinta um dos visados (ou não fosse um fellow rocker a tempo inteiro), o tema é por demais pertinente para me passar ao lado. Até porque se o assunto é Rock 'n' Roll (e a sua tão propalada morte), então é comigo também.

Concordo com o Fernando em grande parte do texto. Adorei a metáfora da família do Rock "sentada à mesa, a comer com as mãos, a beber da garrafa e a abanar a cabeça". Retrata bem essa maravilhosa maluqueira que é o Rock, que nos mantém indefectíveis mesmo quando partimos quatro dedos de um pé num moshpit no Alive, ou mesmo quando levamos um pontapé nas partes baixas num concerto dos Metallica — ambas comigo, sim. São ossos do ofício. É o prazer em quebrar as regras, um escape das nossas vidas mundanas. E é essa visão de família que sinto quando olho para o tio Axl a ajudar o tio Angus a repor o carvão no comboio dos AC/DC, para que este continue a rolar infinitamente por essa linha fora.

Relativamente à morte do Rock 'n' Roll, desde os anos 60 que ela é declarada semanalmente e no entanto ele continua aí. O Rock é dado como moribundo nas publicações, mas vemo-lo de boa saúde na venda de bilhetes para espectáculos — veja-se a loucura na procura para o Alive, para os Metallica e para os U2. É dado como fora de moda, mas a venda de t-shirts (até nas lojas mais mainstream) mostram que o Rock é que tem ainda as marcas mais cool do mercado. Por isso não se deixem levar pelas notícias — o Rock está bem vivo. O que não significa que o panorama seja só de rosas. Ignorar o complexo labirinto onde o Rock está colocado é contribuir para a sua marginalização. O que também não significa que seja um mau prenúncio. Mas vamos por partes.

O labirinto onde o Rock está metido é complexo. Por um lado, há um claro défice de investimento nas bandas Rock, tanto monetário por parte das editoras, como social por parte dos media. Sem o dinheiro nem a projecção de outros tempos, as bandas vêem-se com menos recursos e menos tempo para criar as obras grandiosas do passado. Os tempos dos adiantamentos de milhões para a gravação de um álbum já lá vão e isso, inevitavelmente, vai reflectir-se na qualidade do material. Porque por cada "Chinese Democracy" há um "A Night At The Opera" ou um "The Seeds Of Love".

Por outro lado, se esse investimento megalómano porventura existir (pela própria banda, por exemplo), o lucro com as vendas em formatos físicos não vai justificar a despesa. Os tempos mudaram e com as novas formas de ouvir música e a migração para as plataformas de streaming, o investimento na criação da música Rock — mais caro que a EDM ou que o Hip Hop, onde basta um laptop para "fazer" música — deixou de compensar. As bandas veêm-se encurraladas neste ciclo vicioso do qual é complicado sair. A solução que encontraram para recuperar rendimentos foram longas digressões após longas digressões, interrompidas por um "novo álbum", muitas vezes apenas como pretexto para ir novamente para a estrada. E por isso chegamos a este ponto curioso — perverso, até — em que numa altura que se ouve cada vez mais música, os artistas passem cada vez mais por dificuldades. O reavivamento do mercado do vinil e a aposta nos (meus tão amados) boxed sets veio equilibrar um pouco as coisas e a aposta na valorização da música é um dos caminhos, mas os puristas e os coleccionadores não deixam de ser apenas um nicho do mercado.

Antes que venham com a questão da pirataria, esqueçam. Ela sempre existiu e está aqui desmistificada. Porque não é a restringir a audição e a perseguir os ouvintes que os miúdos se vão apaixonar pela música, pelas bandas e pelas suas histórias, O que é preciso é deixar as pessoas apaixonarem-se pela música. As pessoas fazem as coisas mais incríveis por amor. Até comprar discos. Uma porrada deles.

Independentemente das vendas físicas, a transição para o streaming é evidente, pelo que terão que ser essas plataformas — que vieram, em parte, substituir o papel das "editoras" — a compensar melhor os artistas pela sua música e até a investir neles; mas isso implica uma negociação complexa, da qual estamos ainda muito longe. A não ser, claro, que estejamos a falar de "marcas" já estabelecidas, com poder de alavancagem suficiente para negociar. Foi o caso dos Beatles, que por causa disto mesmo, só recentemente entraram no Spotify. E aqui reside outra questão importante na marginalização do Rock — a falta de "marcas" novas.

Se pensarmos em cada banda (ou artista) como uma "marca", em que marcas é que os novos investidores preferem apostar? Se virmos as bandas novas axiomaticamente como marcas de risco e as bandas mais antigas e já estabelecidas como marcas seguras, a resposta é fácil. A falta de "marcas" novas acaba por ser o grande problema dos media, nomeadamente das publicações musicais, problema esse do qual são ao mesmo tempo réus e vítimas. Vítimas, porque não são eles os principais culpados do que está a acontecer, sendo apenas um peão (um cavalo, vá) nesse grande tabuleiro de xadrez; réus, porque não fazem nada para mudar o estado das coisas e deixam simplesmente a coisa andar, até finalmente afundarem elas mesmas — casos da NME, Rolling Stone e, obviamente, da Blitz.

Depois há a questão da projecção social. Com a falta de promoção por parte das editoras, as bandas são obrigadas a auto-promover-se. Mas o mundo está hoje pejado de um falso e pútrido puritanismo que disseca todas as opiniões (ou meros desabafos nas redes sociais), confunde a criação com o criador e tritura quem se atreve a pensar pela sua cabeça. Não é por isso fácil ser-se um jovem rocker com ideias fortes e vontade de transcender as regras. Se estas fugirem do status quo, um bocadinho que seja, cai uma shitstorm sobre ele e lá se vai o seu trabalho. Nem para os velhos a coisa está fácil. Perguntem ao Cid, humilhado por causa de uma piada; ou ao Reininho, indignadamente expulso de um programa da RTP. Ser um homem livre é algo que se paga e em Portugal paga-se a dobrar.

Com o panorama mirrado em "estrelas" beije e com pouco brilho, fica difícil vender revistas. Principalmente quando elas estão demasiado preocupadas em encaixar nos "novos tempos", ou então com medo de apostar em alguém com um discurso mais anguloso, não vá o alvo ser apontado para eles também. É de facto, um ciclo vicioso.

Há também o argumento que tudo está feito. Que o Rock está esgotado e só estamos a repetir os ases do passado. Isto é historicamente falso. Desde a sua invenção que o Rock teve a capacidade de se reinventar sempre —Prog, Punk, Metal, Grunge, Britpop, Indie e por aí fora. Há sempre espaço mais uma mutação. E porquê? Porque o Rock está sempre aí em quem o ama e olhem à vossa volta — somos muitos. Enquanto houver rockers, haverá Rock. E aqui recupero o argumento do início, que esta marginalização do Rock não tem de ser forçosamente um mau prenúncio. Porque todas as grandes explosões, todos os grandes movimentos do passado, começaram assim. Debaixo do radar. A mensagem continua a mesma do célebre concerto do Liceu D. Pedro V em Maio de 1979, onde os Xutos & Pontapés fizeram a sua segunda actuação ao vivoEstamos vivos. Pela minha parte, enquanto eu viver e me for dado espaço para difundir o Rock, nestas linhas ele viverá.