Depois de ver os vinte fogos-de-artifício da Margem Sul a competirem entre si (ganhou Almada, se quiserem saber), desci desde as Portas do Sol até ao Terreiro do Paço para ver o muito badalado espectáculo "Hits do Pop Rock Português", curado pelo Luís Varatojo dos Peste & Sida. E obrigado, Luís; não poderia ter escolhido uma Passagem de Ano mais adequada para a minha despedida do país. Não foi propriamente um regresso à infância, uma vez que nasci em 1985 e muitos destes êxitos, não os vivi no seu tempo. Mas isso pouco importa. Estas canções são parte indefectível da cultura nacional, seja qual for a geração e são por isso parte da minha identidade portuguesa.
Embora tenha achado o espectáculo um tremendo triunfo cultural com um todo, é impossível não apontar alguns pontos altos (Samuel Úria com "Patchouly") e outros que nem por isso (presumo que a Ana Deus – Ban e Três Tristes Tigres – tivesse abusado do champanhe à meia noite). Em particular, não posso deixar de sublinhar o quanto um dos segmentos se destacou acima de todos os outros – o set sólido de êxitos dos Delfins, interpretado pelo Miguel Ângelo.
Com isto, senti-me na obrigação de fazer aquele que arrisca ser a minha coluna mais uncool de sempre – uma apologia aos Delfins, a banda portuguesa mais sociologicamente injustiçada dos últimos 20 anos. E se o post é uncool, muito se deve à ridicularização exagerada a que a banda foi sujeita ao longo deste tempo, principalmente no início dos anos 00 em programas como o Levanta-te e Ri, uma consequência da ubiquidade que gozou em Portugal na segunda metade dos anos 90 (lembram-se do Cantigas da Rua?), no fundo o mesmo pecado que acabou com a carreira do Phil Collins. Adoro o Ricardo Araújo Pereira (única voz corajosa neste país contra a censura), mas temo que terá sido ele quem deu o prego final no caixão da banda de Cascais com este bit de stand-up sobre o Miguel Ângelo. O RAP, como sempre, teve piada. Mas com isto, meteu o Miguel Ângelo debaixo de um pesadelo mefistofélico que, em última instância, acabou com os Delfins em 2009.
Sim, eu sei. O Miguel Ângelo usa e abusa daqueles tiques idiossincráticos como acrescentar um "z" depois de cada "t" ("um lugar ao sol, sempre tzeu", "não pares de lutzar", "só tzu podes vencer"), ou colocar acentos circunflexos nos verbos da primeira conjugação ("sonhâr é só viver e viver imaginâr") - e tudo isto só no clássico "1 Lugar Ao Sol". Se ficarmos obcecados com estes trejeitos, a música dos Delfins tornar-se-á irremediavelmente irritante. Se tivermos a grandeza de nos rirmos deles, podemos apreciar a música. Até porque tem uns tiques fixes. Como quando o Miguel substitui dissimuladamente a linha "ser um corpo de prazer" no cover da "Canção do Engate" de António Variações, por "ser um porco de prazer". Ouçam o tema com atenção.
O que me deixa mais confuso ao ver tanto ódio aos Delfins é o espectro do mesmo. A carreira dos Delfins não pode ser comparada, por exemplo, ao sucesso meramente circunstancial dos D'ZRT. Ao contrário da banda dos Morangos Com Açúcar, que tiveram o seu tempo durante a temporada de Verão de 2005 (bolas, estou velho), os Delfins, que tiveram o "seu tempo" nos Anos 80, só começaram a vender discos em quantidades pornográficas na segunda metade dos Anos 90. Foi uma expansão consolidada. E no entanto, parece tão difícil encontrar alguém que tem um disco dos Delfins como encontrar um benfiquista que votou no Vale e Azevedo. Se só a compilação "O Caminho Da Felicidade" vendeu mais que 200 mil cópias – um número monstruoso para o nosso país – tem que haver alguém, algures, com o álbum em casa.
Para além da intemporalidade das canções de Miguel Ângelo e Fernando Cunha ( o "Steven Seagal", para quem não se lembra) que foram objecto de celebração da noite da Passagem de Ano, é preciso ainda lembrar o virtuosismo da besta que tocava baixo nos Delfins. Rui Fadigas era um extraterrestre do baixo e isso é por demais evidente no álbum "U Outro Lado Existe" (1988). Se têm dúvidas, é ouvir temas como "Bandeira" (atentem na intro), "1 Só Céu" (solo antes do refrão) e "1 Lugar Ao Sol" (mais um solo). Que besta.
Deixo para último o mais óbvio dos argumentos. É que vocês também gostam de pelo menos um tema dos Delfins. Nem que seja o superlativo cover do António Variações ("se tzu tze dá-ás"), com tiques e tudo. Vá, podem admitir, que já estamos em 2018 e odiar os Delfins é tão 2008.
É verdade, vou-me embora. London is calling. Mas as crónicas continuarão a partir da grande ilha.
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