quinta-feira, 19 de outubro de 2017

"George Michael: Freedom" é o último trabalho de George e é de partir o coração

Nos últimos dias de vida, George Michael realizou um documentário sobre os melhores anos da sua carreira. Esta semana o filme viu finalmente a luz do dia.

George Michael deixou-nos no último Natal com muito menos música do que devia. O seu derradeiro trabalho foi o documentário "George Michael: Freedom", filme que realizou nos últimos dias de vida para promover a reedição do álbum "Listen Without Prejudice Vol.1" de 1990 e que irá para as lojas amanhã. O filme tem como grande mérito explicar por que um talento tão grande como George nos deu tão pouca música.

George Michael lançou o seu primeiro single "Wham Rap! (Enjoy What You Do)" em 1982 e ao longo de 34 anos de carreira discográfica, editou apenas 7 álbuns de originais – 3 com os Wham! e 4 a solo. Em período semelhante, o seu amigo Elton John fez 17 álbuns e isto já em fase descendente da sua carreira. Porquê tão pouca produtividade? Ainda que nunca de forma explícita, o documentário indica-nos três razões: insegurança, perfeccionismo e perda. Nada que não soubéssemos já pela música de George. Bastava estarmos atentos.

Insegurança. George foi sempre um menino tímido e inseguro que precisava da aprovação dos outros. Foi Andrew Ridgeley (o miúdo fixe da escola, com quem formaria os Executive e mais tarde os Wham!) que lhe deu a confiança para se lançar no mundo do espectáculo. Em "Listen Without Prejudice Vol.1", já depois de se ter tornado uma mega estrela, George diz em "Waiting (Reprise)" que "All those insecurities that have held me down for so long, I can't say I've found a cure for these". Só esta necessidade de aprovação explica que o documentário passe tanto tempo a ouvir as opiniões de "famosos" como James Corden, Ricky Gervais, e Jean Paul Gaultier sobre a música de George.



Aliás, o rol de celebridades que aparecem para reverenciar George é avassalador: Mark Ronson, Mary J. Blige, Nile Rodgers, Tony Bennett, Elton John ("I think people generally adore George. Not just his music."), Stevie Wonder (que faz uma piada a ele mesmo – "O quê? O George é branco?!"), Kate Moss, as supermodelos de "Freedom '90" (Naomi Campbell, Christy Turlington, Cindy Crawford, Linda Evangelista e Tatjana Patitz – quem?) e até o actual líder das tabelas britânicas Liam Gallagher, que descreve George como "Modern day Elvis" e revela que Noel também ouvia os Wham!. Naturalmente que todos discorrem sobre como George é fantástico, mas disso já todos sabíamos. A maioria dos testemunhos é dramatizado e dispensável; teria sido preferível ouvir o que tinham para dizer os que estiveram realmente em palco e no estúdio com George, casos de Deon Estus (baixista dos Wham! e de George a solo) e claro, de Andrew Ridgeley. Nem sequer houve nada da Pepsi e da Shirlie. Uma pena.

Perfeccionismo. Talvez uma consequência da razão apontada em cima, George era também um control freak. Neste documentário é ele o realizador e o narrador, algo que só causa estranheza a quem não conhece George. Este é o mesmo George Michael que em 1984 se desentendeu com o realizador Lindsay Anderson no filme "Foreign Skies: Wham! in China"; que em 1990 dava ordens a David Fincher (esse mesmo, do "Fight Club") no teledisco de "Freedom '90"; que em 1992 afastou Thierry Mugler do vídeo de "Too Funky"; e que ao longo da sua carreira vetou o lançamento de todos os filmes-concerto que gravou porque não estava completamente satisfeito com eles, acabando por lançar (provavelmente por obrigação contratual) o mais insípido de todos – "Live In London", ao vivo no Earls Court em 2008. Para trás ficaram (pelo menos) os filmes do The Final Concert dos Wham! no Estádio do Wembley em 1986, da Faith Tour no Madison Square Garden em 1988 e da Cover To Cover Tour na Wembley Arena em 1991. Todos eles aparecem no documentário em pequenos excertos, que perfazem alguns dos melhores momentos deste filme.



George era muito teimoso, "um dos homens mais teimosos que já conheci", diz Elton John. Tão obstinado a fazer as coisas à sua maneira, que levou a toda-poderosa Sony a tribunal por esta não aceitar a mudança de direcção artística em "Listen Without Prejudice Vol.1". George tinha razão em querer fazer um álbum diferente de "Faith" (como questiona Nile Rogers: "quando se tem aquela dimensão de sucesso, chega-se a casa e pensa-se 'e agora? o que é que eu faço?!'"); mas não toda a razão, principalmente quando classificou como "escravatura" a sua relação com a editora, enquanto vivia numa mansão em Highgate. No fim, George perdeu no tribunal em toda a linha e confessou que "foi tudo uma completa perda de tempo". Acabaria por ser David Geffen a salvar George (também seria interessante ouvi-lo), ao comprar o contrato com a Sony por 40 milhões de dólares. Mas a história do litígio com a Sony tem muito que se lhe diga e isso é pela primeira vez explicado neste documentário.

Na verdade, a batalha legal contra a Sony serviu como escape para a morte de Anselmo Feleppa, o namorado de George (para os mais desavisados, sim, George era homosexual) que caiu aos pés da SIDA pouco depois daquela lendária actuação de George com os Queen, que serviu precisamente para consciencialização desta doença. O conflito foi a forma que George encontrou para canalizar a raiva que sentia pela perda do amor da sua vida. O que nos leva à última razão da falta de produtividade de George.

Perda. O terceiro e mais sombrio de todos os motivos aparece na parte final do documentário. "George Michael: Freedom" terá sido provavelmente a primeira vez em que George fala abertamente da sua relação com Anselmo Feleppa num registo pura e cruamente confessional. O desaparecimento da sua paixão abalou-o profundamente. Depois da batalha com a Sony e subsequente resgate pela Virgin, George sacou um álbum superlativo sobre luto, sofrimento e recuperação – "Older". O single de avanço  – "Jesus To A Child" – era sobre Anselmo e dizia tudo o que George sentia, numa perspectiva agridoce: "I've waited for you all those years and just when it began, he took you away".



"Older" foi um mega-sucesso crítico e comercial e parecia um bálsamo na vida de George Michael. Mas o alívio pela boa prestação do seu álbum não durou muito tempo. George descobriu que a mãe tinha cancro e Lesley morreria poucos meses depois, em 1997. George sentiu que estava amaldiçoado e confessa que aqui "perdeu a música" nele. 

E perdeu mesmo. Na prática, a carreira de George Michael parou ali. A seguir a "Older", houve um punhado de faixas na colectânea "Ladies & Gentleman" (1998), um álbum de covers em 1999 ("Songs From The Last Century") e um último album de originais em 2004 – "Patience" –, muito abaixo da bitola de qualidade de George.

George termina o filme com o desejo de ser recordado como um grande compositor e um artista com um integridade. Onde quer que esteja, pode ficar descansado, que isso ninguém lhe vai tirar. No resto, o tempo far-lhe-á a devida justiça, como já fez no último ano, em que até mereceu artigos na Pitchfork.

"George Michael: Freedom" é um documentário de George Michael, sobre George Michael e à George Michael. Não admira por isso que partilhe as virtudes e os defeitos do homem: é um retrato honesto, profundo e destemido, mas a espaços também auto-indulgente e disperso; é um filme de partir o coração, que nos recorda o quanto George melhorou as nossas vidas; é um excelente resumo dos anos musicais de George, desde os tempos dos Wham! até a música se lhe acabar em "Older"; e é especial, por ser o último trabalho de George Michael.

No documentário, Ricky Gervais recordou-me o motivo que me levou a começar a ouvir George Michael nos meus turbulentos anos de adolescente: "em tempos de grande depressão há sempre quem diga que 'isto é terrível'; e depois há os escapistas, aqueles que dizem 'let's party!'". George tinha essa coragem. Isto para além de me ter ensinado as primeiras dicas para engatar miúdas com a letra de "I'm Your Man". Fun fact: as dicas funcionaram na altura e ainda funcionam hoje. True story.

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