quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A censura é sempre um caminho perigoso, mesmo quando se trata de música racista

Uma reflexão sobre a nova forma de censura socialmente aceite

Na semana passada, o Spotify eliminou uma série de bandas identificadas como "racistas" e de "incentivo ao ódio" pelo Southern Poverty Law Center (organização americana que monitoriza os grupos de ódio). Enquanto alguma imprensa musical se apressou a aplaudir a decisão, eu não tenho a certeza que a censura seja o melhor caminho para combater os nazis. Nem que seja por abrir um precedente muito perigoso.

Na cena final do "Inglorious Basterds" de Tarantino, o Tenente Aldo "The Apache" Raine (o Brad Pitt) explica ao Coronel Hans Landa (Christoph Waltz) do exército nazi que não o pode deixar ir embora sem lhe "dar uma coisa que ele não pode tirar". O Tenente americano gostava de identificar os nazis que prendia cravando-lhes à faca uma suástica na testa, de modo a que eles nunca pudessem esconder quem tinham servido (eu teria escolhido usar o uniforme). Se alguma coisa se pode aprender com o "Apache" é que o caminho para a derrota dos nazis não se faz escondendo os nazis. Pelo contrário. Faz-se expondo-os ao absurdo que eles defendem. Porque nem eles gostam de ser conhecidos como nazis.

Veja-se o caso do estudante universitário que andou pelas marchas de Charlottesville e em poucos dias viu a sua cara publicada por toda a internet e como tal agora diz que "não é o racista que vêem nas fotos". Talvez não seja. Mas de certeza que é um miúdo muito confuso.
Melhor ainda é o caso do "temível" protagonista da (excelente) reportagem da Vice sobre Charlottesville, que no dia da marcha era uma máquina de guerra "treinada para a violência", mas dias mais tarde chorava como uma Madalena arrependida e afinal já não era violento. Como vêem, estes gajos só precisam de educação, um pouco de realidade e talvez um abraço do Morgan Freeman. Alguém que lhes explique, por exemplo, que a música que eles ouvem foi muito provavelmente criada por indivíduos de raça negra.

O assunto da censura musical é mais complexo do que pode parecer e merece uma reflexão fria e cuidada; nem que seja pelo paradoxo da liberdade que implica a censura de uma peça de arte, por muito obscena que seja. É que tirando os meus tímpanos (e de todos os que gostam do volume no máximo), a música nunca matou ninguém. Pode moldar erradamente cabeças mais incautas, é verdade, mas esse é um problema que se resolve com educação. Vou ligar o caps lock: EDUCAÇÃO. Não é por acaso que estes movimentos tendem a surgir nos sectores mais iletrados (sendo o universitário mencionado em cima uma óbvia excepção, com a atenuante da idade e de provavelmente só ter visto brancos em toda a sua vida) e portanto mais susceptíveis ao populismo e a ideologias de ódio com fundações instáveis.

Quando foi reeditado o "Mein Kampf" — livro onde Adolf Hitler expressou a sua ideologia — também surgiu esta discussão. Contra algumas correntes a favor da censura, o livro foi mesmo editado e faz-me confusão ver os mesmos que estiveram do lado da publicação do livro, em nome da liberdade, agora defenderem a censura de música. Qual o sentido disto? É porque se pensava que o nazismo já tinha passado? Agora que está aqui outra vez, vamos à Fnac fazer uma queima de livros?

É um caminho perigoso, este que estamos a trilhar. Onde é que se traça a linha do aceitável? Vamos eliminar os Ace Of Base, cujo passado tem ligações nazis? E o "Station To Station" do David Bowie? Aquele Thin White Duke era um fascista, não enganava. E já que estamos com o machado na mão, podemos mandar abaixo a maioria da música punk, que incita à anarquia e à revolta contra o sistema? E o metal? Isso é só violência, era mandá-los de vela também. E por falar em violência, que dizer dos filmes do Tarantino, cheios de ideias criativas para assassínios? E por falar nisso, e a Céline Dion? Caso não tenham percebido a ironia, não, não vamos eliminar nada disto. O que levanta a questão anterior: onde é que se traça a linha? Na minha opinião, ao estarmos a censurar a música destes gajos, estamos a dar-lhe a sua maior vitória — a vitória da relevância.

Este é um problema grave, mas não é um problema que se resolve com censura. Pelo contrário. A censura dá-lhes força. A censura só gera publicidade que leva ao aumento da procura (nem que seja por curiosidade) por este tipo de movimentos. Falo por mim, que não sabia dizer o nome de uma única banda desta ideologia, mas que agora, depois de tanta publicidade, já sei.

Esta medida do Spotify fez com que eu fosse obrigado a pesquisar o que é afinal isto da música de supremacia branca para perceber o fenómeno, algo que nunca me passaria pela cabeça. Como eu, terão havido muitos mais curiosos. Encontrar as bandas foi fácil, depois foi só abrir o Youtube, pesquisar a primeira banda da lista e estava lá tudo; até álbuns completos. No Google, facilmente temos acesso à sua discografia, naqueles sites de torrents que fingimos que desconhecemos (Pirate Bay? Isso é um site de piratas, não é?). O que vai nas caixas de comentários do Youtube não é nada bonito, diga-se. Discurso de ódio, sim, muito. Mas é diferente de qualquer secção de comentários na internet, em qualquer site de notícias? Vamos fechar o Público, o Observador e o Expresso por causa das caixas de comentários a abarrotar com ódio e visões toldadas e obtusas do mundo? Vêem como é mais complexo do que parece?

A partir do momento em que começamos a dobrar a espinha e a moldar os nossos valores, os nazis já estão a ganhar. Precisamos de ser mais inteligentes que isto. Mais espertos. Não podemos dar-lhes o luxo da vitimização. E muito menos a publicidade que advém dessa vitimização. Esta história da proibição foi o melhor cartaz que estas bandas poderiam desejar. Notem que em lado nenhum neste texto eu refiro nomes. Os sites de lápis azul que listam dezenas bandas racistas, só facilitam o trabalho de pesquisa a quem quer que queira ter acesso a esta música. Nem o Spotify faria melhor nas suas recomendações semanais.

Entendam, não estou aqui a advogar a sua difusão generalizada. Incomodar-me-ia tanto ouvir um tema racista na rádio, como ver um outdoor na rua a promover o Mein Kampf. Mas tal como não defendo a proibição do livro de Hitler, como documento histórico que é, também não defendo a censura da música. Por princípio, sou contra a censura de qualquer forma de música ou literatura. Porque atrás da exposição, vem a crítica; e atrás da crítica, a compreensão do fenómeno. Dadas as bases correctas, em forma de valores e educação, e toda a arte será devidamente enquadrada e compreendida. Porque tal como acontece há séculos, a arte continua a ser uma ferramenta fundamental no processo educacional. Censurá-la, ou fingir que não existe, é um passo atrás na educação.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O que é uma música de verão?

"Despacito" é apenas a mais recente das ervas daninhas que germinam todos os anos por esta altura. Mas há esperança.



O que é uma música de verão? É difícil definir. Será o "Despacito" — a praga de que não conseguimos fugir este ano —, ou será o "Loud Places" do Jamie XX, que paulatinamente bateu todas as festas do verão passado sem incomodar ninguém? Deverá falar sobre os fugazes amores de verão como o "Baile de Verão" do José Malhoa, ou como o "Babe I'm Gonna Leave You" dos Led Zeppelin? E por falar em Rock, deverá a música de verão ser como o Rockzinho da praia do Jack Johnson, ou como o Rockzão do deserto dos Queens Of The Stone Age? Eles até escreveram uma modinha para o efeito, adequadamente baptizada de "Feel Good Hit Of The Summer". Bons vibes e tal.

A "nossa" música de verão não é mais que a soma do que queremos ouvir (quando podemos escolher) e do que escolhem para nós quando estamos em locais públicos. O pior é que o que escolhem para nós é quase invariavelmente merda. Já todos passámos por aquele sentimento de terror e impotência — sentados numa esplanada fora da redoma da nossa música, com os ouvidos susceptíveis a qualquer mórbido hit de verão que já sabemos que vai passar dez vezes e não mais sair da cabeça o resto do dia.

Este ano temos que levar com o Luis Fonsi, mas o "Despacito" é apenas a mais recente espécie de uma longa linhagem de ervas daninhas que germinam todos os anos por esta altura. São temas virais que invadem rádios, programas de televisão, festas populares e, Freddie me livre, qualquer sítio no meio do nada onde haja uma coluna e um leitor de CD, cassetes ou — obrigado, tecnologia — um telemóvel com Bluetooth.

No início custava-me a perceber de onde vinham estas canções bizarras; e mais que isso, por que raio tinham tanto sucesso. Lembro-me de ter 9 anos e pensar como é que o "Scatman (Ski-Ba-Bop-Ba-Dop-Bop)" era o maior hit de verão em todo o mundo. Como era possível?! Ao mesmo tempo, tínhamos por cá o Iran Costa a dançar em cima das Amoreiras e a conduzir um cacilheiro (?!) com a coreografia d'"O Bicho". Estávamos em 1995 e o Big Show SIC estabelecia as tendências musicais em Portugal (eu sei, tão trágico que parece mentira). Em 1998, o Ediberto Lima trouxe-nos o Netinho com a "Milla" e as "mil e uma noites de amor com você" e aí percebi logo que estava a ouvir o "hit de verão". Não havia muito para perceber. Era tentar levar uma vida normal, evitando ao máximo ouvir o tema, o que com sorte resultava num total de apenas quinze a vinte audições diárias da "Milla".

O que é então um hit de verão? É um fenómeno sociológico (quase sempre) acidental, alimentado pelos media e por milhões de pessoas que numa situação normal não abdicam das suas noções de postura social, mas que quando ouvem o hit de verão vigente mandam tudo ao ar e não se importam de cantar assertivamente versos impronunciáveis — "Aserejé" (2002), "Dragostea Din Tei" (2003), "Gangnam Style" (2012) — e fazer as coreografias mais ridículas — "O Bicho" (1995), "Macarena" (1996), "Bomba" (2000), "Aserejé" (2002), "Ai Se Eu Te Pego" (2011), "Gangnam Style" (2012) — em frente a toda a gente que conhecem e não conhecem. Não que eu seja diferente. At one time or another, também fiz estas coreografias todas em público. É o que faz beber whiskey com muito calor.

Todos os anos há uma praga deste género. Felizmente a maior parte delas desaparece tão rapidamente como germinou, mas outras ficam para nos atormentar para sempre. Vejam a Rihanna, para quem o verão de 2007 ainda dura até hoje à custa do "Umbrella"; ou os Black Eyed Peas, cujo verão durou 6 penosos anos (entre 2003 e 2009), mas que ainda hoje leva pessoas a procurarem objectos pontiagudos para perfurar os ouvidos sempre que começa a tocar o "I Gotta Feeling". Eu, por exemplo. Mas já chega de pragas, que acho que tive um mini-AVC a recordar isto. Ouçam por vossa própria conta e risco, se tiverem coragem.

Música de verão, todos temos a nossa. A minha (a que ouço quando posso escolher) pode ser muita coisa: a Electronica Downtempo dos Air e dos Zero 7 para ouvir ao final da tarde; o Rock acelerado dos Deep Purple e dos Guns N' Roses para conduzir à hora de maior calor; o Rock mais pesado dos Led Zeppelin e dos Scorpions para as noites quentes; a Americana dos Eagles e do Tom Petty para longas roadtrips; a New Wave dos Tears For Fears e dos Duran Duran para deixar o vento da marginal bater na cara. E por falar em Duran Duran, é deles a melhor música de verão de sempre — "Save A Prayer" — ou não tivesse o verso que melhor define a proverbial noite de verão: "Some people call it a one-night-stand but we can call it paradise". Essa e outras nesta playlist de risco mais controlado:

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O dia em que o Rock morreu

O 21º aniversário do último grito de glória do Rock à escala global. É hoje.


Knebworth Park, 10 de Agosto de 1996. Noel Gallagher entra no palco cheio de si: "THIS IS HISTERAY! THIS IS HISTERAY! Right here, right now, THIS IS HISTERAY!" grita, ciente que naquele momento estava sentado no topo do mundo. Ao seu lado, o irmão Liam podre de bêbedo, como sempre (naquela altura). Na sua cabeça, tudo normal; afinal, ele já se sentia no topo do mundo desde que cantava nos bares de Manchester "Tonaaaaaaaaaaaaaaaaaaa-ite I'm a Rock N' Roll staaaaaaaaaaaar" para dez bifes saídos das obras. Knebworth Park era por isso somente o cumprimento do óbvio para Liam. A sua maior preocupação naquela era a cerveja, que não estava suficientemente fresca.

Mas Noel sabia da efeméride que Knebworth encerrava. Depois de ditar que todos os que estavam ali, naquele momento, presenciavam História, Noel dá as boas vindas oficiais com um "bom dia, planeta Terra!"... e arranca para um eufórico "Columbia" (do álbum de estreia "Definitely Maybe"). Basta ouvir os gritos de "Yeah-yeah-yeah!!! Yeah! Yeah! YEAAAAAH!" do Noel nas backing vocals e medir, de zero a Knebworth, o quanto ele estava a flutuar acima do chão.



Nunca fui a Knebworth Park. Com muita pena minha, nunca tive oportunidade de ir ao local sagrado onde os Pink Floyd enterraram o "The Dark Side Of The Moon" em 1975, os Led Zeppelin enterraram os seventies em 1979 e os Queen se enterraram em 1986. Por alguma razão, Knebworth parece estar sempre associado a uma imagem bipolar de apogeu e fecho de ciclo. Qual acaso profético, foi também o local escolhido pelos Oasis para celebrar aquele que seria o pináculo da Britpop e último grande grito do Rock no mainstream musical, com um fim-de-semana de concertos esgotados em Agosto de 1996. Faz hoje exactamente 21 anos. Sem saberem, na sua noite da sua maior bebedeira, os Oasis estavam também ali a enterrar o Rock.

A ressaca da bebedeira viria logo a seguir. Numa perversa coincidência, ao mesmo tempo que se fazia a festa em Knebworth, um grupo de raparigas desconhecidas — umas tais de Spice Girls — saltava para o primeiro lugar das tabelas do Reino Unido e da Irlanda com o tema "Wannabe". Mal sabiam Noel, Damon, Jarvis e seus pares, que tudo ia mudar a partir dali. Atrás das Spice, vieram as Britneys, os Backstreets e até por cá os Excesso. O Rock tinha deixado de ser o estilo com maior projecção e em breve deixaria de ser tocado nas rádios generalistas.

Esta troca de poderes fez-me ganhar uma aversão especial às Spice Girls. Na verdade, hoje posso confessar que "Wannabe" tinha aquele hook de piano (ba-bada, badá-bababada) que até nem era mau de todo. Somaram-se uns bons hooks a uma imagem polida e milimetricamente medida e mudou-se todo um panorama musical.

Desde então, o mais próximo que o Rock esteve do mainstream e das rádios generalistas terá sido na vaga de Nu Metal do fim dos 90s; ou quando os White Stripes lançaram "Seven Nation Army" em 2003; ou talvez quando Foo Fighters encheram o Wembley em 2008, cavalgando no sucesso do single "The Pretender; ou mais recentemente quando os Arctic Monkeys lançaram "A.M." e o single "Do I Wanna Know?" em 2013. Em 21 anos, não houve muitas bandas Rock a ocuparem novamente a cadeira dos deuses.

Quanto aos Oasis, o melhor que poderiam ter feito a seguir a Knebworth seria gozar umas merecidas férias para limpar a cabeça. Mas Noel e a Creation (a editora da banda) queriam capitalizar o momentum e como tal afogaram-se em cocaína para fazer o álbum "Be Here Now", lançado um ano mais tarde, em Agosto de 1997. O mundo recebeu "Be Here Now" em euforia, mas rapidamente se apercebeu que não era assim tão bom como desejava. O álbum denotava clara falta de quality control: metade brilhante, metade decepcionante, mas todo ele dilatado ao máximo. Quando a banda se apercebeu disso, já o mundo tinha seguido em frente e trocado os Oasis pelos "zig-a-zig-ahhh". Terminava assim a última dinastia do Rock no mainstream.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A melhor música da primeira metade do ano

O crítico de música da NiT tem a playlist perfeita para o verão

Já dobrámos a primeira metade de 2017 e chegou a altura de rever a matéria dada com uma playlist mesmo a tempo da praia, da piscina, ou daqueles 'warm sunny days indoors' tão bons. Notem que isto não é bem a vossa clássica "Playlist de verão". Pelo menos não estou a ver ninguém a curtir Mount Eerie num sunset de copo de gin na mão. O espectro é mais largo que isso e o critério é absolutamente pessoal e parcial. Passemos então aos maiores destaques da playlist.

Álbum do ano: Ryan Adams — "Prisoner"

A playlist abre com "Doomsday", um tema retirado de "Prisoner" — o mais recente álbum de Ryan Adams e o que mais me encheu as medidas este ano. O Ryan tem dado muito que falar pelo tamanho da sua língua, numa série de ataques aos The Strokes no Twitter, que já não víamos desde que o Liam Gallagher se tornou um gajo calmo (até quando fala do irmão!). O próprio reconheceu isso mesmo e assinou o tweet da mesma forma que Liam fecha os seus escritos — "As you were". Adoro, adoro, adoro.

Infelizmente só se fala nas bocas de Ryan Adams e não no que realmente importa, que é o seu mais recente, superlativo e criminosamente ignorado trabalho "Prisoner". Este álbum mostra um Ryan na sua zona de conforto, que no seu caso é o mesmo que dizer —  a carpir mágoas com canções sobre relações falhadas e corações partidos. Continua a haver algo de irresistivelmente masoquista e metaromântico nesta vontade Louis-CKiana de Ryan se apaixonar sem medo da miséria do pós-heartbreak, ou até na ânsia da inspiração que essa miséria lhe pode dizer. E não é esse o sal da vida?

Mas não pensem o universo de "Prisoner" se esgota nos 12 temas que compõem o álbum. Semanas após o seu lançamento, Ryan lançou 17 (!!!) temas adicionais gravados nas sessões deste álbum. Se quiserem mergulhar mais a fundo nesta fase prolífica do músico americano, não deixem de ouvir a overwhelming compilação "Prisoner B-Sides".


Tema do ano: Radiohead — "Man Of War"

A segunda entrada da playlist é "Man Of War" dos Radiohead. Segundo a minha fiel fonte dos Radiohead, "Man Of War" foi o tema que a banda sugeriu à EoN  (produtora dos filmes do James Bond) quando foram abordados para escrever o tema de "Spectre". "Man Of War" foi escrito por alturas do "The Bends" como uma homenagem aos Bond themes, na expectativa de um dia os Radiohead serem chamados à prova (no documentário "Meeting People Is Easy", podemos ver a banda no estúdio a gravar o tema). A chamada não chegou tão cedo como esperavam e "Man Of War" ficou na gaveta durante 20 anos.

O telefone tocou finalmente em 2015, mas a EoN perversamente não aceitou "Man Of War" por ser um tema antigo. Como tal, os Radiohead gravaram "Spectre", que foi igualmente rejeitado por ser 'demasiado dark' e em última instância foi chamado Sam Smith, que acabaria por gravar o deveras underwhelming "Writing On The Wall".

Na verdade, talvez "Man Of War" fosse demasiado complexo para o retrato que a EoN quer fazer do James Bond nos seus filmes. Na visão original de Ian Fleming, James Bond é um assassino. Pura e simplesmente. É um homem com mais morte e menos swing que a série de filmes quer fazer crer. Mas acima de tudo, Bond é um homem. Um homem igual aos demais, com medos, desejos e anseios. A morte dos outros é a forma que Bond encontrou para compensar a sua própria morte interna. E é assim que os Radiohead se atrevem a caracterizá-lo no melhor tema de 2017... mas que foi gravado em 1997 (ou entre 1995 e 1997 para ser mais exacto) e agora viu finalmente a luz do dia na reedição de "OK Computer". Podem ler mais sobre "Man Of War" aqui.


Regresso do ano: Roger Waters — "Is This The Life We Really Want?"

O regresso mais surpreendente do ano tem que ser o de Roger Waters. Tanto pelo simples facto de ele acontecer, como (e principalmente) por ser algo que realmente vale a pena ouvir. Faz-me muita confusão ler as opiniões quase unanimemente complacentes e moderadas relativamente a "Is This The Life We Really Want?". Condescendentes, diria até. Parece que ouviram uma vez — se ouviram uma vez sequer — escreveram meia dúzia de banalidades e siga para bingo. Mas que é isto? Todas as reacções são possíveis, mas se há uma coisa que Roger Waters não provoca é indiferença. Esta condescendência constitui maior ofensa ao Roger do que se lhe dissessem na cara que o álbum é uma valente merda. Mas que nova moda é esta de não ter opinião para não magoar ninguém? Vamos agora todos pintar as nossas palavras de cinzento porquê? Para agradar aos outros? Citando o Roger, "fuck them!".

Vou ser directo: "Is This The Life We Really Want?" não é um álbum de digestão imediata. É uma audição extenuante, tal o negativismo que assola a música do princípio ao fim. É também um álbum fatalmente político; eu até costumo ser apologista que os meus artistas se mantenham longe da política, mas a verdade é que o "Animals" era político e não deixa de ser uma obra-prima por isso. Roger tem opiniões fortes e quer expressá-las; e ainda bem. Se ao menos o fizesse mais vezes.

Para lá da visão niilista da vida e do mundo, "Is This The Life We Really Want?" é também um exercício de introspecção implacável. Roger despe-se por completo, olha para dentro e escava a fundo em si mesmo. Sem medos. E desta vez, não é só a interminável saga do pai que morreu na guerra; é o Roger que morreu por dentro e quer falar sobre isso. Este é o álbum mais pessoal de toda a sua carreira. E se eu tivesse que apostar, diria que este álbum confessional só chegou agora, porque só agora é que Roger aprendeu a olhar para dentro e viu a besta que é.

Roger descreveu "Is This The Life We Really Want?" como um álbum "parte tapete mágico, parte discurso político, parte angústia". Belo resumo. Ouçam, mas tenham um copo de vinho à mão, de preferência. Sempre é uma anestesia para o vazio que vão sentir.

Para uma leitura mais aprofundada sobre "Is This The Life We Really Want?", podem ir aqui, aqui e aqui.

O que resta do ano: Foo Fighters, The War On Drugs e Liam Gallagher

A primeira metade de 2017 também nos deu muitas amostras do que podemos esperar para o que resto do ano. Muitos destes temas são singles de avanço dos respectivos álbuns que aí vêm e compõem também parte do melhor que já se ouviu este ano.

Começando pelos Foo Fighters, que deixaram água na boca com o novo "Run", tema que testaram no concerto do Alive com resposta positiva. No último álbum, Dave quis dar uma de Roger Waters e formular um elaborado conceito que cruzava uma série televisiva sobre a cultura musical de várias cidades, com um álbum em que cada tema era inspirado numa cidade e acompanhava o respectivo episódio. O conceito era ambicioso, a série foi excelente, o álbum nem por isso. "Run" parece ser um regresso dos Foos à boa forma, depois do sensaborão "Sonic Highways".

Os The War On Drugs vêm aí com "A Deeper Understanding", o tão aguardado sucessor do maravilhoso "Lost In the Dream" de 2014. E cada faixa parece ser melhor que a anterior. Este não engana.

Liam Gallagher está de volta e o seu álbum "As You Were" (que como já vimos parece estar a virar hashtag para qualquer post mais corrosivo) é ao mesmo tempo a maior expectativa e a maior incógnita deste ano. Apesar de ser um enorme fã do Liam, confesso que não esperava muito das suas canções (que nunca fogem muito à regra dos 'Liam standards'), mas cada faixa tem-me vindo a surpreender. Quem sabe e não teremos aqui uma revelação. Em qualquer dos casos, o que eu quero mesmo é o regresso dos Oasis. As you were.


A playlist

Sem mais demora, fiquem então com a playlist com os 25 temas que fizeram o melhor que ouvi na primeira metade de 2017 (na verdade são 26, mas quem está a contar?).