A banda de Massachussetts tocou ontem no Meo Arena e sentiu-se o perigo de que tudo podia acontecer
Antes do advento da comercialização dos concertos, propalado pela publicidade e pelas redes sociais, o 'Concerto Rock' era um espectáculo tudo menos glamoroso: salas escuras e mal ventiladas, cheiro a cerveja e transpiração, banhos de cerveja a rodos (às vezes cerveja 'quentinha'; se é que me faço entender) e no palco, a sensação que tudo podia acontecer a qualquer momento. O caos. Perguntem a qualquer habitué dos concertos em Portugal nos anos 80 e ouvirão histórias de horror contadas com um estranho brilho nos olhos, de quem tem saudades de um perigo que só se podia sentir num concerto Rock. Foram "os bons velhos tempos", dirão eles.
Esses tempos já lá vão. As organizações melhoraram muito e felizmente (ou infelizmente?) o perigo é algo que já não se sente num concerto Rock. O problema é que essa sensação de segurança não raras vezes se estende ao palco, ao ponto que já levamos a página da setlist.fm aberta no smartphone com o alinhamento do último concerto (eu próprio sou culpado deste crime) e tudo segue conforme o planeado. Não é lá muito Rock N' Roll.
Importa este prólogo para enquadrar o que se viu e viveu ontem no concerto dos Aerosmith. Porque ontem houve mesmo Rock N' Roll no Meo Arena. Como nos bons velhos tempos.
Comecemos pelos factos. O espectáculo de ontem fez parte da digressão de despedida dos Aerosmith, intitulada de "Aero-Vederci Baby!" e foi muito provavelmente o último concerto da banda em Portugal. A despedida vem na altura certa já que, olvidando algumas entradas e saídas temporárias, esta ainda é a formação original dos Aerosmith: Steven Tyler, Joe Perry (os Toxic Twins), Brad Whitford, Tom Hamilton e Joey Kramer. Quem esteve ontem no Meo Arena pode gabar-se de ter visto os mesmos Aerosmith que em 1973 lançaram o álbum de estreia homónimo que trouxe bombas como "Mama Kin" (o grande ausente da noite de ontem) e "Dream On"; que em 1975-1976 gravaram os cocainados "Toys In The Attic" e "Rocks"; e que em 1993 rebentaram a MTV com os singles "Cryin'" e "Crazy". Ainda são os mesmos cinco gajos de Massachussets. Só que agora com 70 anos.
Os Aerosmith apresentaram um set carregado de hits para cantar de braços no ar como "Livin' On The Edge", "Cryin'" e "Dude (Looks Like A Lady)" (que ao vivo ganha outra vida), alguns clássicos dos anos 70 como "Walk This Way", "Sweet Emotion" e "Dream On" (com Joe Perry a dar uma de Slash e a subir ao piano para o solo) e algumas surpresas como os meus preferidos "Seasons Of Wither" e "Eat The Rich" (seguido de um belo arroto ao microfone, respeitando a gravação original no disco). Também não faltou a balada para levantar o telemóvel — "I Don't Want To Miss A Thing" — que é a chamada 'canção que paga as contas'. Eu preferia fechar os olhos e deixar-me dormir, mas isso sou eu.
Fora a balada da ordem, os Aerosmith trouxeram um cheirinho do que era o rock selvagem e imprevisível dos anos 70 (e não, não foi só o cheiro a transpiração provocado pela sauna no pavilhão). Talvez pela idade avançada e aspecto frágil da banda (embora pareçam mais cool que nunca), talvez pela setlist diferente de noite para noite, talvez porque nem sempre correu tudo bem, houve um irresistível aroma de imprevisibilidade durante todo o concerto. Porque só quando a banda se atreve a sujeitar-se ao erro é que o Rock N' Roll acontece. Como quando o auricular de Steven Tyler morreu e obrigou a banda a estender uma jam session no palco — a única rede que eles tinham era continuar a tocar; ou quando Steven Tyler puxava pela voz e ela não dava para mais, mas ele respirava fundo e continuava. Podia até ser tudo parte do espectáculo, mas sentiu-se que tudo podia acontecer ali. Sentiu-se perigo. E isto, meu amigos, é um concerto Rock.
Os Aerosmith tocaram: