Para quê apostar no Euromilhões, se o prémio não vem em bilhetes para concertos do Bruce Springsteen?
Há dias em que tudo parece correr mal. Mas esses dias cinzentos são passados no frio do escritório, no trânsito, debaixo da chuva, com o cabelo despenteado e pedaços de comida nos dentes. Dias cinzentos não podem ser dias de concerto do Bruce Springsteen na quente e soalheira Los Angeles. Não devia ser.
Mas à chegada à LA Sports Arena (que vivia naquela noite o seu último concerto), logo começa o drama da lotaria. Passo a explicar: nos concertos do Bruce em solo americano são distribuídas pulseiras numeradas por ordem de chegada e poucas horas antes do início do espectáculo, é sorteado um número. É a partir desse número que é feita a entrada na venue, pelo que são esses que ficam com os melhores lugares. As primeiras pulseiras ficam na "pit" - a área junto ao palco - e os outros, bem, os outros vão lá para trás. Mas mesmo esses têm que respeitar a ordem de entrada sorteada.
Eu fora um dos primeiros a chegar, tinha a pulseira 64. Na minha ingenuidade, achava que chegar cedo me traria alguma vantagem. À minha volta multiplicavam-se os relatos de quem tinha cronometrado cirurgicamente a hora de chegada, de modo a receber uma pulseira com um determinado número, com base em estatísticas de anteriores sorteios. O equivalente a quem faz estatísticas do Euromilhões e joga nos números que saem mais vezes. Mas para quê apostar no Euromilhões, se o prémio não vem em bilhetes para concertos do Bruce Springsteen?
À minha frente está uma senhora com os seus 65 anos, vestida de branco integral, trevos na t-shirt, trevos nas calças e trevos nas meias (gente que leva o St. Patrick's Day a sério), que tinha acabado de chegar de Toronto para o concerto. De autocarro. Vou deixar-vos um momento a pensar no que é fazer Toronto - LA de autocarro (o Google Maps dá-me um tempo de viagem de 5 dias). O sonho desta senhora era dançar com o Bruce Springsteen, ser filmada e aparecer no YouTube. Falava nisso com o mesmo olhar obstinado que a senhora do "Requiem For A Dream". Medo. "Eu não falo com pessoas que não sejam die-hards, eles não entendem que Bruce é uma religião.", dizia. E eu pensava: "então é assim que eu sou aos olhos das outras pessoas, quando falo do Bruce Springsteen."
Ao fim de cinco horas de espera, chega o momento do sorteio. Sai o número 326. Eu, com o 64, era obrigado a contentar-me com um lugar lá atrás. Desilusão. É por isto que não gosto de casinos.
Já lá dentro, vou-me chegando à frente um passinho de cada vez, à medida que a plateia ia ao bar matar a sede. À hora do início do espectáculo, já só havia 10 filas entre mim e a passadeira a meio da arena, que dividia os sortudos da "pit" dos plebeus. "Menos mau", pensei; até que olho para cima e tenho o Vinnie Jones a espumar-se à minha frente, enquanto me tira as medidas para uma cena de pancadaria. "Não devias estar aqui. Mostra-me a tua pulseira!", ordena-me furiosamente enquanto me agarra no braço. Naquele momento, qualquer pessoa com a mínima réstia de amor próprio teria disparado dali para fora de cabeça baixa, mas eu tenho um grande defeito: uma crónica inaptidão em identificar situações de perigo. E por isso levantei-lhe a voz e disse-lhe que ele não tinha nada a ver com isso. Gente, não confundam isto com coragem. Não. Se o Vinnie Jones resolvesse partir para a batatatada, eu ia passar a puré em três tempos. Mas tive sorte, ele deve ter vindo da última sessão de anger management e engoliu em seco, enquanto quase cuspia os olhos das órbitas. Como podem atestar por este relato, estava a ser um início de concerto com tanto de agradável, como de prometedor. Ainda por cima tinha pago 175 dólares pelo bilhete. Longe do palco. Tudo parecia correr mal.
Mas depois entrou o Bruce Springsteen. Entrou e despejou o álbum "The River" inteiro e mais um punhado de êxitos, em 3 horas e meia de concerto sem intervalo (deixo-vos um momento para pensar nisto, sabendo que o homem tem 66 anos). O "The River", álbum que sempre olhei com desconfiança, ganhou uma nova dimensão para mim, numa viagem da miséria à redenção ali feita. Ao vivo, até minudências como "Cadillac Ranch" ou "Crush On You" se tornam épicos, ciclos de um programa de lavagem da alma que é um concerto de Bruce Springsteen.
E quando a noite já ia longa e as luzes da LA Sports Arena já estavam ligadas, como quem convida o público a abandonar a sala, Bruce decide arrancar para um último número: "Tenth Avenue Freeze Out", do álbum "Born To Run". Bruce sai do palco, dirige-se para a passadeira a meio da arena e enquanto olha para o mar de plebeus desafortunados, pára à minha frente e fita-me nos olhos... e aperta-me a mão.
E tudo ficou bem.
Sem comentários:
Enviar um comentário