Quando eu tive o David Gilmour à distância da minha canadiana na Arena de Pula, lembrei-me de um episódio bíblico.
Conta o Novo Testamento que quando os Fariseus conheceram Jesus Cristo, não ficaram muito impressionados. Os Fariseus sabiam de estórias de um Rei cujo reino "não fazia parte deste mundo", um Rei dos Reis, mas quando lhes apareceu, Jesus era "apenas" um homem mal vestido que falava de maneira diferente. "O quê? É isto?! É este gajo? Este gajo está vestido pior que nós!", terão protestado os Fariseus, num qualquer dialecto hebraico.
Quando eu tive o David Gilmour à distância da minha canadiana na Arena de Pula, na Croácia, lembrei-me deste episódio bíblico. Durante toda a minha vida, tive Gilmour como um ser divino, criador de obras que engrandeceram a minha existência. Mas agora este ser divino estava ali, tão perto de mim, mais perto do que eu poderia imaginar quando o meu Pai me submetia a visualizações repetidas do concerto dos Pink Floyd em Veneza. Vi-o como um qualquer Fariseu que teve o acaso de se cruzar com aquele a quem chamavam o Rei dos Reis. E assim pude ver que David Gilmour é "apenas" um homem vestido com uma t-shirt preta. David é, afinal, humano.
Mas vamos ao princípio. Recuemos 24 horas.
Chego a Pula no dia anterior ao concerto e vou directo para a Arena. Estão a montar o palco e pasme-se, as visitas turísticas ainda estão abertas. Entro. WOWOWOW!!! O que é isto? PINK FLOYD WORLD TOUR? Equipamento dos Pink Floyd?! Nem acredito que me deixam andar ali.
Ao fim da tarde, enquanto virava canecas num bar com vista panorâmica para a Arena, David aparece para o soundcheck. Sem mais, começa a despejar temas do novo álbum, um depois do outro, seis no total. Incrível, um concerto de borla!
Depois vem "Wish You Were Here". Esta todos conhecem, é vê-los de telemóvel em punho, a gravar o momento. Cena normal nos nossos dias. Mas David ainda tem mais uma na manga. Pam... Pam... Pam... Pam... "High Hopes"! A minha reacção neste momento não deveria ser descrita aqui, sob pena de perder a imagem máscula perante as meninas. Mas que se foda. Mal ouvi o sino, desatei a chorar descontroladamente, cara escondida no braço da canadiana. "High Hopes" é a minha música, o meu elixir. Naquele momento, tudo valera a pena. O pé partido, o risco da viagem solitária para a Croácia, o frio que rapei em Zagreb, tudo fora compensado.
Fast-forward para o concerto. Já conhecendo os cantos à casa, finto a segurança e consigo entrar com uma garrafa de Jameson. Ouvir Pink Floyd sóbrio também é fixe, é verdade, mas para que é que eu haveria de fazer uma coisa dessas?
Vou directo com um LP do "The Division Bell" para junto do camarim do David, na esperança de um autógrafo. Poucos minutos depois, David sai do camarim. "DAAAAVID!", grito em súplica. David vira-se e vem na minha direcção. Quase a chegar, a um metro apenas, David repara que naqueles parcos segundos se haviam juntado dezenas atrás de mim. David pára. Vira-se. Vai-se embora.
"FODA-SE! Estive tão TÃO perto! FODA-SE!", gritei num português que pareceu aos demais um qualquer dialecto hebraico.
Procuro o meu lugar. Segunda fila, ainda a inspirar o fumo saído do palco, que maravilha. E logo chega David, com todas as rugas à minha frente, juntando o ar frágil de um homem de 69 anos, com a robustez de quem teve que aturar o Roger Waters durante quase duas décadas.
Não sabia nada da setlist e tinha feito um aviso de excomunhão a quem ousasse quebrar-me esse segredo. Por isso quando David arrancou com o BRRRRRUMMMM de "Sorrow", saltei da cadeira num grito que deve ter sido audível no outro lado do Adriático (na verdade são dois gritos bem audíveis neste vídeo). Foi o meu momento da noite.
Ao longo da noite, David fartou-se de borrar a pintura, num concerto longe da perfeição, mas tão perto de mim. Pude ver que ele é "apenas" um homem e passei a amá-lo ainda mais por isso. Porque David Gilmour não é um homem qualquer, é um homem que cria coisas divinas.
Artigo publicado originalmente
na revista online New In Town (NiT),
Segunda-Feira, 10 de Outubro de 2015
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