sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Crítica: New Order – "Music Complete" é uma sexta-feira à noite, toda a semana

Os velhotes voltam a mostrar quem é que sabe disto.


Antes da música, uma constatação: a capa do novo álbum dos New Order é das melhores artworks que vi nos últimos anos. É uma ideia tão simples e tão enigmática. Será que estão lá um "M" e um "C" das iniciais do álbum? Um "N" e um "O" das iniciais da banda? Uma mensagem subliminar? Fuck knows. Passo dezenas de minutos a olhar para aquilo e não faço a mínima ideia do que é. Mas é espetacular. Se consegue pôr a imaginação a trabalhar, não se pode pedir mais.

Para além da capa, o que dizer então deste "Music Complete" – o primeiro álbum dos New Order desde a saída de Peter Hook (o meu elemento preferido da banda)? Cuidado. Muito cuidado. Ou "porra!", também podemos dizer isso. Não estava à espera deste álbum. No meu livro, "Music Complete" é somente um dos melhores álbuns dançáveis dos últimos anos e é somente o melhor dos New Order desde 1989, ano de "Technique". Chega para vos chamar a atenção? Boa.

O arranque é feito com "Restless", um típico single dos New Order. Bernard Sumner põe-nos logo à partida confortáveis, quando nos pergunta "how does it feel?". Onde é que já ouvimos isto? O tema poderia vir dos anos 80, mas também poderia vir dos 90s, ou dos 00s, de tão New Order que é. Instant classic. É a canção mais amigável do álbum e o single óbvio.
As coisas ficam mais interessantes quando passamos para o segundo tema. "Singularity" começa como um tema dos Joy Division (JD), mas por volta da marca dos 50 segundos salta para território dos New Order (NO). Fica marcado o antagonismo entre a música downer dos JD e upper dos NO e como elas podem funcionar na mesma personalidade densa que é a banda de Manchester.

Falando em Manchester, é para lá que vamos logo a seguir em "Plastic". Logo no início levamos com Acid House e BAM!, estamos na Haçienda. Fookin' Madchester all over again. O álbum, esse, continua a ganhar passada. Hook já não está lá, mas os hooks não faltam. A cavalgada do refrão de "Tutti Frutti" (You've got me where it hurts / but I don't really care / cause I know I'm OK / whenever you are there), cantando em dueto com Elly Jackson dos La Roux, é ouro Pop. "Gold, Jerry, gold!", diria o Bania, do Seinfeld. Mas o toque de Midas vem a seguir, quando entra a voz de um narrador de um qualquer filme soft porn italiano de Tinto Brass (julgava que nunca ia mostrar a minha sabedoria nesta matéria) e dispara "TUTTI FRUTTIIIIII". Eishhh... E ainda só vamos no quarto tema.

Depois chega o funk. Os velhotes de Manchester querem mesmo bater em todas as portas da dança. O riff de piano de "People On The High Line" é das maiores pérolas deste álbum, a lembrar aqueles doces Pop deliciosos dos early 90s, quando George Michael e Madonna davam masterclasses de como fazer um single Pop.

"Stray Dog" escurece a sala, num monólogo bêbado, confessional e sombrio de Iggy Pop, com a banda sonora de uma perseguição policial, madrugada adentro. As luzes regressam com "Academic", em mais um potencial single. Este é o tipo de coisa que as tabelas tabelas suplicam há anos. É criminoso se as rádios não tocarem "Academic" nos próximos meses. Nota ainda para "Superheated", que fecha o álbum antecipando os sinos natalícios, com Brandon Flowers dos The Killers a anunciar o cair do pano: "it's over".

Estou há duas semanas em audição repetida e obsessiva de "Music Complete". A primeira metade do álbum é do melhor que tenho ouvido no panorama da música dançável nos últimos anos. Agora que a música de dança está tão em voga e é tão popular (tomando conta até dos festivais, como sabemos), os velhotes voltam para mostrar quem é que sabe disto. Dançar em 2015, (ainda) é com os New Order. É sexta-feira à noite toda a semana com "Music Complete".

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

David Gilmour e um Fariseu em Pula

Quando eu tive o David Gilmour à distância da minha canadiana na Arena de Pula, lembrei-me de um episódio bíblico.



Conta o Novo Testamento que quando os Fariseus conheceram Jesus Cristo, não ficaram muito impressionados. Os Fariseus sabiam de estórias de um Rei cujo reino "não fazia parte deste mundo", um Rei dos Reis, mas quando lhes apareceu, Jesus era "apenas" um homem mal vestido que falava de maneira diferente. "O quê? É isto?! É este gajo? Este gajo está vestido pior que nós!", terão protestado os Fariseus, num qualquer dialecto hebraico.

Quando eu tive o David Gilmour à distância da minha canadiana na Arena de Pula, na Croácia, lembrei-me deste episódio bíblico. Durante toda a minha vida, tive Gilmour como um ser divino, criador de obras que engrandeceram a minha existência. Mas agora este ser divino estava ali, tão perto de mim, mais perto do que eu poderia imaginar quando o meu Pai me submetia a visualizações repetidas do concerto dos Pink Floyd em Veneza. Vi-o como um qualquer Fariseu que teve o acaso de se cruzar com aquele a quem chamavam o Rei dos Reis. E assim pude ver que David Gilmour é "apenas" um homem vestido com uma t-shirt preta. David é, afinal, humano.

Mas vamos ao princípio. Recuemos 24 horas.
Chego a Pula no dia anterior ao concerto e vou directo para a Arena. Estão a montar o palco e pasme-se, as visitas turísticas ainda estão abertas. Entro. WOWOWOW!!! O que é isto? PINK FLOYD WORLD TOUR? Equipamento dos Pink Floyd?! Nem acredito que me deixam andar ali.
Ao fim da tarde, enquanto virava canecas num bar com vista panorâmica para a Arena, David aparece para o soundcheck. Sem mais, começa a despejar temas do novo álbum, um depois do outro, seis no total. Incrível, um concerto de borla!
Depois vem "Wish You Were Here". Esta todos conhecem, é vê-los de telemóvel em punho, a gravar o momento. Cena normal nos nossos dias. Mas David ainda tem mais uma na manga. Pam... Pam... Pam... Pam... "High Hopes"! A minha reacção neste momento não deveria ser descrita aqui, sob pena de perder a imagem máscula perante as meninas. Mas que se foda. Mal ouvi o sino, desatei a chorar descontroladamente, cara escondida no braço da canadiana. "High Hopes" é a minha música, o meu elixir. Naquele momento, tudo valera a pena. O pé partido, o risco da viagem solitária para a Croácia, o frio que rapei em Zagreb, tudo fora compensado.

Fast-forward para o concerto. Já conhecendo os cantos à casa, finto a segurança e consigo entrar com uma garrafa de Jameson. Ouvir Pink Floyd sóbrio também é fixe, é verdade, mas para que é que eu haveria de fazer uma coisa dessas?
Vou directo com um LP do "The Division Bell" para junto do camarim do David, na esperança de um autógrafo. Poucos minutos depois, David sai do camarim. "DAAAAVID!", grito em súplica. David vira-se e vem na minha direcção. Quase a chegar, a um metro apenas, David repara que naqueles parcos segundos se haviam juntado dezenas atrás de mim. David pára. Vira-se. Vai-se embora.
"FODA-SE! Estive tão TÃO perto! FODA-SE!", gritei num português que pareceu aos demais um qualquer dialecto hebraico.

Procuro o meu lugar. Segunda fila, ainda a inspirar o fumo saído do palco, que maravilha. E logo chega David, com todas as rugas à minha frente, juntando o ar frágil de um homem de 69 anos, com a robustez de quem teve que aturar o Roger Waters durante quase duas décadas.
Não sabia nada da setlist e tinha feito um aviso de excomunhão a quem ousasse quebrar-me esse segredo. Por isso quando David arrancou com o BRRRRRUMMMM de "Sorrow", saltei da cadeira num grito que deve ter sido audível no outro lado do Adriático (na verdade são dois gritos bem audíveis neste vídeo). Foi o meu momento da noite.
Ao longo da noite, David fartou-se de borrar a pintura, num concerto longe da perfeição, mas tão perto de mim. Pude ver que ele é "apenas" um homem e passei a amá-lo ainda mais por isso. Porque David Gilmour não é um homem qualquer, é um homem que cria coisas divinas.

Artigo publicado originalmente
na revista online New In Town (NiT), 
Segunda-Feira, 10 de Outubro de 2015