Em 1979, os Pink Floyd lançaram "The Wall", uma obra autobiográfica de Roger Waters que dividia a sua vida em quatro lados de vinil. O primeiro era dedicado à sua infância e daí saiu o êxito "Another Brick In The Wall Pt.2", com a célebre linha "Hey, teacher! Leave the kids alone!". Antes desse tema vinha "The Happiest Days Of Our Lives", uma tirada irónica sobre como são felizes os dias da nossa infância. Só que não são. Mas esta não é uma história sobre os Pink Floyd. Esta é a história de uma cabra.
"Os dias mais felizes da nossa vida", uma ova. A infância só é boa quando estamos a pagar as contas e olhamos para trás, com saudade do tempo em que não abríamos a carteira, seletivamente esquecendo tudo o que passámos até ali.
A verdade é esta: a infância é uma merda. Ser miúdo é ser oprimido pelos pais, oprimido pelos professores, oprimido pelos mais velhos, oprimido pelos bullies no recreio. É um caminho percorrido de derrota em derrota, até à vitória final, a da liberdade, da independência.
Na nossa turma da primária não havia bullies, mas havia rivalidades e a ocasional cena de pancadaria. O normal. Uma coisa nos unia, porém: como todas as crianças, detestávamos ir ao circo. Aliás, ao fim de 20 anos, ainda estou para perceber qual o apelo naquele espectáculo que as crianças detestam e os adultos abominam, mas que todos assistem com aquele entusiasmo de quem vai a um festival à espera dos Foo Fighters e depois tem que levar com os Florence and The Machine.
Do circo, salvava-se uma coisa: quando íamos pela escola, o caminho pela cidade era uma paródia. E era preferível a ter Estudo do Meio.
Foi aí, numa tenda de circo em Castelo Branco, que vivemos o ponto alto da nossa infância. Depois dos palhaços (outro enigma da sociedade), dos leões e de todos aqueles números que não nos interessavam, apareceu uma cabra. Uma cabra? Sim, uma cabra. Estava ali, imóvel, pachorrenta, posicionada ao fundo de uma escadaria metálica em caracol. Ninguém sabia ao que vinha. Até que rebenta nas colunas do circo o êxito da época "La Cabra", num volume tão alto, que parecia que tinha soado o alarme dos bombeiros. A cabra começa a subir as escadas. Era este o número.
Para quem não conhece, "La Cabra" foi um tema chavasqueiro dos anos 90 que rezava assim: "La cabra, la cabra, la puta de la cabra, la madre que la parió" (não será necessário traduzir). É agora pertinente recordar que a audiência era formada por crianças entre os 3 e os 9 anos, que frequentavam o Jardim-Escola João de Deus de Castelo Branco.
Foi o nosso momento. Aquela palavra proibida do "pê", que pais e professores nos ordenavam calar e nos castigavam por dizer, estava ali a ser difundida em emissores gigantescos. Ao pânico das professoras, lestas em exigir a interrupção imediata do som, a turma reagia num êxtase reminiscente da cena do futebol em "Sleepers", ou da cena da ópera em "Shawshawk Redemption". No meio de tantas derrotas, aquela música foi a nossa vitória. No meio de tanto silêncio, aquela música foi a nossa ópera. E nós abraçados, aos saltos, rivalidades esquecidas, amizades eternas prometidas, a rir e a festejar aquele triunfo, como se de uma medalha olímpica se tratasse. Durante aqueles minutos, demos a volta ao marcador, ganhámos, fomos livres. A música da cabra deu-nos uma vitória tão grande e tão pura, que duraria por anos a fio.
Tínhamos 9 anos. A partir daí, foi sempre a descer. Até ao primeiro ordenado.
Artigo publicado originalmente neste link,
na revista online New In Town (NiT),
Segunda-Feira, 22 de Junho de 2015