segunda-feira, 22 de junho de 2015

Os dias mais felizes das nossas vidas

Esta é a história de uma cabra.



Em 1979, os Pink Floyd lançaram "The Wall", uma obra autobiográfica de Roger Waters que dividia a sua vida em quatro lados de vinil. O primeiro era dedicado à sua infância e daí saiu o êxito "Another Brick In The Wall Pt.2", com a célebre linha "Hey, teacher! Leave the kids alone!". Antes desse tema vinha "The Happiest Days Of Our Lives", uma tirada irónica sobre como são felizes os dias da nossa infância. Só que não são. Mas esta não é uma história sobre os Pink Floyd. Esta é a história de uma cabra.
"Os dias mais felizes da nossa vida", uma ova. A infância só é boa quando estamos a pagar as contas e olhamos para trás, com saudade do tempo em que não abríamos a carteira, seletivamente esquecendo tudo o que passámos até ali.

A verdade é esta: a infância é uma merda. Ser miúdo é ser oprimido pelos pais, oprimido pelos professores, oprimido pelos mais velhos, oprimido pelos bullies no recreio. É um caminho percorrido de derrota em derrota, até à vitória final, a da liberdade, da independência.

Na nossa turma da primária não havia bullies, mas havia rivalidades e a ocasional cena de pancadaria. O normal. Uma coisa nos unia, porém: como todas as crianças, detestávamos ir ao circo. Aliás, ao fim de 20 anos, ainda estou para perceber qual o apelo naquele espectáculo que as crianças detestam e os adultos abominam, mas que todos assistem com aquele entusiasmo de quem vai a um festival à espera dos Foo Fighters e depois tem que levar com os Florence and The Machine.

Do circo, salvava-se uma coisa: quando íamos pela escola, o caminho pela cidade era uma paródia. E era preferível a ter Estudo do Meio.

Foi aí, numa tenda de circo em Castelo Branco, que vivemos o ponto alto da nossa infância. Depois dos palhaços (outro enigma da sociedade), dos leões e de todos aqueles números que não nos interessavam, apareceu uma cabra. Uma cabra? Sim, uma cabra. Estava ali, imóvel, pachorrenta, posicionada ao fundo de uma escadaria metálica em caracol. Ninguém sabia ao que vinha. Até que rebenta nas colunas do circo o êxito da época "La Cabra", num volume tão alto, que parecia que tinha soado o alarme dos bombeiros. A cabra começa a subir as escadas. Era este o número.


Para quem não conhece, "La Cabra" foi um tema chavasqueiro dos anos 90 que rezava assim: "La cabra, la cabra, la puta de la cabra, la madre que la parió" (não será necessário traduzir). É agora pertinente recordar que a audiência era formada por crianças entre os 3 e os 9 anos, que frequentavam o Jardim-Escola João de Deus de Castelo Branco.

Foi o nosso momento. Aquela palavra proibida do "pê", que pais e professores nos ordenavam calar e nos castigavam por dizer, estava ali a ser difundida em emissores gigantescos. Ao pânico das professoras, lestas em exigir a interrupção imediata do som, a turma reagia num êxtase reminiscente da cena do futebol em "Sleepers", ou da cena da ópera em "Shawshawk Redemption". No meio de tantas derrotas, aquela música foi a nossa vitória. No meio de tanto silêncio, aquela música foi a nossa ópera. E nós abraçados, aos saltos, rivalidades esquecidas, amizades eternas prometidas, a rir e a festejar aquele triunfo, como se de uma medalha olímpica se tratasse. Durante aqueles minutos, demos a volta ao marcador, ganhámos, fomos livres. A música da cabra deu-nos uma vitória tão grande e tão pura, que duraria por anos a fio.

Tínhamos 9 anos. A partir daí, foi sempre a descer. Até ao primeiro ordenado.

Artigo publicado originalmente neste link,
na revista online New In Town (NiT), 
Segunda-Feira, 22 de Junho de 2015

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Uma overdose de vinil

A minha droga é a música e a coca pura chama-se vinil.

Os meus amigos têm-se queixado que nas últimas semanas não tenho saído à rua. E com razão. Desde que redescobri todos os meus álbuns preferidos nos discos de vinil, não tenho cabeça para outra coisa. Ao pé da minha colecção de discos, sinto-me como a Amy Winehouse numa rave na casa de um traficante de cocaína colombiano. A minha droga é a música e a coca pura chama-se vinil.

Nas últimas semanas, a minha colecção de LPs cresceu ao ritmo de um incêndio de Verão no pinhal da Pampilhosa da Serra, queimando todo o espaço ocupado por CDs nas minhas prateleiras. Tenho muito orgulho na minha colecção, que só é rivalizada pela Fnac do Colombo (eles têm a Mono Box dos Beatles, eu (ainda) não) e por aquele maluquinho brasileiro que tem 3 milhões de discos no armazém. Construí-a com muito carinho, muito tempo perdido e claro, muito dinheiro torrado. Só na semana passada, vim de Marselha (onde fui ver o Macca) carregado com 48 discos do melhor loja de discos onde já entrei Tangerines Musiques.

Aquele na foto sou eu, armado em Tio Patinhas, a nadar numa piscina de vinis. O Patinhas tinha as moedas, eu é mais discos. Mas nem sempre foi assim.

Antes desta febre do vinil que me assolou nas últimas semanas, eu andava perdido, sem rumo, a resvalar para a ratoeira do MP3. Estava como o Fernando Couto, que dizia ter "caído nas malhas da nandrolona", como se tivesse tropeçado num lancil. Música em MP3 no telemóvel não é música, é nandrolona. E a nandrolona não bate como a coca (é o que me dizem). Não há prazer nenhum na nandrolona, só há a tentação do menor esforço. O MP3 é o whisky barato (malta, o Ballantine's de bom, só tem mesmo a música da publicidade), é o louro prensado vendido como haxixe na baixa de Lisboa, é fazer chichi na cama — bom e quentinho no início, irritante e nojento no fim. Uma merda.

O clique que me trouxe de volta à verdade foi "The Miracle". Não foi um milagre, foi o álbum dos Queen. O álbum não é sequer um dos meus preferidos, mas quando ouvi o baixo no "Breakthru"... Foi como se estivesse uma vida inteira a jogar Super Mario em 2D no Game Boy (para os mais novos, pensem numa Nintendo DS, mas a preto e branco e em formato calhau) e depois passasse para o Super Mario Galaxy na Wii, com gráficos em 3D e banda sonora orquestral. De repente, a música ganhou uma terceira dimensão. Tudo soava maior, mais vivo, mais encorpado. Digo isto sem snobismos de qualquer espécie. O vinil não é um snobismo, é um direito que nos assiste de ouvirmos música conforme era suposto que ouvíssemos. A diferença não se explica,ouve-se. Até porque, para vos descrever melhor esta sensação, sinto que teria que ir a uma prova de vinhos para ganhar vocabulário.

Desde este Breakthru (olha que belo trocadilho), gastei mais de metade do meu salário num gira-discos novo e o investimento não ficará por aqui. Neste momento, tenho no prato uma prensagem alemã de um álbum dos Floyd e é das coisas mais maravilhosas que já ouvi. Não quero sair daqui. Não compreendo sequer como é suposto eu ter uma vida lá fora. Os meus amigos queixam-se da minha ausência, mas quem tem sofrido a sério é a minha vizinha de baixo. Lara, se estás a ler isto, desculpa lá. Pensa assim: se eu gostasse de música House, era bem pior. Para ambos.

Originalmente publicado na NiT aqui, a 15/06/2015

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Evangelho segundo Paul

Que interessam o líder da religião Católica, o presidente dos EUA, ou o da Rússia, se nenhum deles esteve nos Beatles?


O Novo Testamento reuniu os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Paulo, o Apóstolo, também contribuiu para as Escrituras Sagradas com treze epístolas onde pregava a doutrina de Jesus. Quase dois mil anos depois, outro Paulo surge com novos escritos sagrados e uma nova doutrina. The Beatles, chamavam-lhe. "Maiores que Jesus", chegou a atirar João – outro dos novos evangelistas – sobre o impacto das frescas epístolas.

Cinquenta anos mais tarde, esses mesmos escritos continuam a ser celebrados numa festa que transcende gerações, cores e culturas, provando a imortalidade dos novos escritos. Não é a missa, é um concerto de Paul McCartney.

Estou entusiasmado, é evidente. Neste fim-de-semana, fui a Marselha para ver, ouvir e estar perto do homem mais importante do mundo. Papa Francisco? Obama? Putin? Deixem-me rir. Que interessam o líder da religião Católica, o presidente dos EUA, ou o da Rússia, se nenhum deles esteve nos Beatles?

Paul levou ao novo Velódrome o seu Evangelho e tocou 40 temas durante três horas. Tocou sem rede, sem playback, sem grandes props (excetuando em "Live And Let Die" onde foi despejada uma quantidade de pirotecnia de fazer inveja ao réveillon da Madeira), desafinando quando a voz não dava para mais e desafiando as mais ousadas previsões para um concerto de um rocker de 72 anos. Um puro e cru show Rock.

Paul levou ao novo Velódrome o seu Evangelho e tocou 40 temas durante três horas

Com aquela cara de miúdo (que inacreditavelmente ainda mantém), Paul pode não ser o mais convincente dos rockers, mas nem por isso deixa de ser um dos melhores de todos. Já depois de duas horas em palco e de um rol inesgotável de clássicos dos Beatles, Paul arrancou para o último terço do espetáculo com a sequência "Band On The Run" / "Back In The USSR" / "Live And Let Die". Sempre a abrir. E quando chegou ao último encore, ainda teve forças para recuperar um dos berços do heavy rock, "Helter Skelter" e mandar a casa abaixo. Foi a estocada final. Pelo menos para mim, que após 3 horas de espera debaixo de um calor abrasador e 3 horas de concerto a cantar a plenos pulmões, ali perdi os sentidos durante uma fração de segundo e só fui amparado pelo mais próximo fiel de Paul.


No fim, estava demasiado subnutrido, desidratado, exausto para ter a noção do que acabara de presenciar. Só na manhã seguinte, e na outra, e na outra, começou a aterrar em mim a verdadeira dimensão daquela noite. Macca ao vivo é um investimento certo, uma memória que se capitaliza com o passar dos dias, um ativo para o resto da vida.

Foram 3 horas e 40 temas, mas 40 temas que souberam a pouco. Não que a minha voz e as minhas pernas aguentassem mais (já estava mais preso por arames que um treinador no Sporting), mas onde ficaram clássicos como "Sgt. Pepper", "Magical Mystery Tour", "I Saw Her Standing There", "Drive My Car", "Hello, Goodbye", "I'm Down", ou (podia ficar aqui o dia todo) "Get Back"? Imperdoável, Paul.Ok, perdoo-te com uma condição: volta a Portugal e vem evangelizar esta malta. Já temos o Papa Francisco em 2017, tratemos agora de garantir o Evangelho que mais interessa.