O cronista musical da NiT é um fanático de Tears For Fears e vai trazer-vos tudo o que precisam de saber e, fundamentalmente, tudo o que não precisam de saber, sobre o novo disco da banda de Bath.
Os Tears For Fears (TFF) têm um novo álbum e vocês não imaginam o gosto que me dá escrever esta frase. À hora que vos escrevo, estou na Central Line, de regresso de uma sessão de autógrafos na hmv do Westfield, em Londres, ainda eletrificado por ter conhecido e conversado com os meus heróis. É esse o tipo de fanático que vos escreve. Mas não pensem que isso amnistia de alguma forma a responsabilidade dos TFF na hora de lançar um disco novo. Bem pelo contrário, sou especialmente exigente com as minhas bandas favoritas.
A fasquia é particularmente elevada quando se trata dos Tears For Fears. Já o escrevi aqui — o arco discográfico dos Tears For Fears, desde "The Hurting" até "Everybody Loves A Happy Ending", é nada menos do que perfeito. Cada álbum é drasticamente diferente do anterior, todos são inseridos no contexto musical e pessoal da sua época e todos, sem excepção, são extraordinários. "Happy Ending", em particular, pareceu fechar este arco de forma primorosa em 2004, com um maravilhoso e catártico (não são todos?) disco de reconciliação, depois de 10 anos sem sequer uma palavra entre Curt Smith e Roland Orzabal. Estava por isso muito apreensivo relativamente a este novo trabalho.
A primeira vez que ouvi as músicas novas foi na passada segunda-feira, 25 de fevereiro, em Hackney, num Q&A com Curt e Roland, que com a conversa se tornou no que aqui chamam de "advance listening party". As minhas reservas não foram diluídas. Lembrava-me bem da primeira vez que ouvira "Happy Ending" em 2004 e da paixão instantânea que esse disco me despertou. Não estava a sentir o mesmo arrepio naquela sala gelada em Hackney. O mais importante daquela noite foi a torrente de informação inaudita que Curt e Roland ali despejaram sobre as gravações, os seus conflitos pessoais, as suas vidas privadas e como tudo influenciou a difícil gestação deste disco. Foi essencial para contextualizar a música quando, uns dias mais tarde, pude ouvir o álbum do princípio ao fim, como mandam as regras. Mas já lá vamos. Comecemos pelo fundamental contexto.
"The Tipping Point" saiu na última sexta-feira, mas os Tears For Fears tinham um disco pronto para sair no final de 2017. Também se chamava "The Tipping Point", mas não tinha nada a ver com o álbum que agora nos chegou. A primeira iteração deste disco fora o resultado de sucessivas sessões de gravação com produtores de nomeada, que Roland descreveu como "speed dating", e que visavam uma busca vápida por um hit single. Escusado será sublinhar o quão bizarro é ter alguém a tentar ensinar os Tears For Fears em como escrever um hit. E no entanto, Curt e Roland alinharam na estratégia e no final de 2017, os astros começaram a alinhar-se: era anunciada uma nova colectânea, "Rule The World", que juntava dois novos temas aos êxitos antigos; e era marcado um comeback show no Royal Albert Hall, para assinalar o regresso triunfal dos TFF (adivinhem quem lá esteve). O plano que a editora desenhou consisitia em promover o best of como rampa de lançamento do novo disco de originais, a sair no início de 2018. Só que à última hora, os decisores negaram-se a lançar o disco, e o manager da banda limitou-se a dizer: "Vocês não precisam de lançar música nova, basta andarem na estrada a tocar os hits antigos". Foi despedido na hora. Sem manager, sem editora e sem disco, era o regresso à estaca zero para os Tears For Fears.
Estas foram, porém, boas notícias para Curt Smith. Ele não via nenhum propósito em perseguir um êxito nesta fase da sua carreira e já detestava o disco, mesmo antes de ele ter saído. Quando a estrutura frágil que segurava esse conceito bizarro que era um disco "moderno" dos TFF colapsou, o fim da banda parecia iminente. Só que entretanto, outra tragédia se abateu sobre os Tears For Fears.
No verão de 2017, a mulher de Roland Orzabal, Caroline, sua companheira desde a adolescência, morreu. Pior, desintegrou-se numa lenta espiral descendente de alcoolismo e demência, num inferno do qual Roland tentou sair através das suas canções, algumas das quais podemos ouvir em "The Tipping Point". É o caso do tema-título, que se refere ao "ponto de viragem" em que viu a sua mulher passar para "o lado de lá", mais morta que viva. O outro é "Please Be Happy", cuja demo Roland partilhou na sua conta pessoal do Soundcloud em Abril de 2017 e rapidamente apagou (sendo que a Internet não esquece), por ser demasiado descritiva. Já voltaremos a este tema.
Ao lidar com uma tragédia pessoal, Curt e Roland aproximaram-se. E depois de quase dois anos de recuperação anímica de Roland, arrastando o impasse sobre o futuro da banda, os rapazes reuniram-se no final de 2019, na casa de Curt em Los Angeles, para discutir o que fazer com o disco que fora abandonado no início de 2018. Smith foi claro — "se é para continuar na mesma direcção, não contes comigo", disse a Roland. E foi nesse momento que, pela primeira vez desde que tinham 17 anos, Curt e Roland se sentaram com guitarras acústicas a tentar procurar um caminho comum na música. O resultado desse dia foi "No Small Thing", o tema de abertura do álbum "The Tipping Point" e, esse sim, o "ponto de viragem" para um futuro com sentido dos Tears For Fears. Desde esse dia, até ao fim da gravação do disco, foram três meses. Só que depois, já adivinharam, rebentou a pandemia. E o novo disco dos TFF foi mais uma vez para a gaveta. Até agora.
Voltamos agora para Hackney. Depois de meses de promoção, a falar para tudo o que fosse jornalista e podcaster, os Tears For Fears tiveram o primeiro contacto com os seus fãs desde 2019. Era para ser uma sessão de perguntas e respostas mas, levados pelo entusiasmo, os rapazes quiseram mostrar aos seus fiéis, em primeira mão, as novas músicas. Todas tiveram direito a uma introdução onde foi explicado o processo criativo, a produção, a sua escolha para o disco (entre mais de 30 faixas), enfim, uma verdadeira dissertação de cada tema, isto ainda antes de os ouvirmos.
Começámos por ouvir “Rivers Of Mercy”, anunciado à partida como um dos temas fortes do álbum. O tema começa com sons de motins, mas logo se transforma numa faixa atmosférica, que mergulha a sequência de acordes de “Woman In Chains”, num “Blood Of Eden”, de Peter Gabriel. Não é das minhas favoritas, confesso, mas isso sou eu que começo a ouvir “The Seeds Of Love” na segunda faixa. Roland descreveu “Rivers Of Mercy” como uma canção de amor e compreensão em tempos de guerra. Só que isto foi na segunda-feira e a guerra só começou na quinta, quando os tanques russos invadiram a Ucrânia. O propósito original da música era referir-se aos tempos tumultuosos da pandemia, das manifestações do Black Lives Matter e da invasão ao Capitólio. Claro que na semana passada, o tema ganhou uma dimensão completamente nova. E quão irónico é que o tema de abertura, "No Small Thing", atire a linha "freedom is no small thing" precisamente nesta semana?
Roland introduziu “Master Plan” (nada a ver com o épico dos Oasis) como um clássico "snidey jab at the recording company", piscando o olho ao público na procura de um bingo de entendimento, como quem quer evocar temas na mesma linha de "Death On Two Legs", "Welcome To The Machine" ou, talvez mais apropriadamente, "You Never Give Me Your Money". É que "Master Plan" é Roland a canalizar o seu mais intrínseco McCartney na melodia, com Lennon nos arranjos. Ouvem-se laivos de "A Day In The Life" e acenos a "Schrodinger's Cat", num tema que fecha o flanco ao álbum anterior, fortemente perfumado pelos Fab Four.
"Long, Long, Long Time" foi o terceiro tema que ouvimos de Curt Smith para o novo álbum — uma contribuição bastante mais significativa que o normal para o músico que se mudou para L.A.; é também o melhor de todos, com o refrão angelicalmente interpretado por Carina Round. Já conhecíamos "Stay" desde 2017, incluído na referida compilação "Rule The World", que aqui funciona muito melhor como uma conclusão tranquila do álbum. O mais catchy, porém, é "Break The Man", um tema que, esse sim, é "moderno" na produção e na lírica, retratando a luta contra o patriarcado que Curt Smith projecta para a vida das suas filhas. É evidente que com a idade, Roland se sente mais à vontade para deixar Curt tomar um papel mais preponderante no álbum da banda. "The Tipping Point" é, de longe, o disco mais Curt heavy dos Tears For Fears.
Os rapazes também não se coibiram de mostrar as canções supostamente “modernas” que sobreviveram do disco abortado de 2017. A primeira que ouvimos foi “My Demons", que Roland descreveu como “a melhor tentativa em alcançar uma sonoridade moderna para os Tears For Fears”. Moderna? “My Demons” soa a Depeche Mode de 1987-1990, o que é obviamente um elogio. Depeche For Fears tem tudo para resultar. Roland disse que a chave deste disco está no equilíbrio, e como tal, "My Demons" segue "Break The Man" com a linha "I am the demolition man".
Outra das faixas “speed dating” que sobreviveu foi “End Of Night”, que Roland disse que pode, ou não, ter sido escrita para uma colaboração com The Weekend. Não é difícil imaginar essa fusão, depois do sample que o norte-americano roubou para o seu hit “Secrets”. Também não admira que tenha sido esta a faixa que a nova editora escolheu para single de avanço do novo álbum. Os TFF vetaram a decisão, e bem, em favor do muito mais apropriado tema-título “The Tipping Point”. O tema já é conhecido desde o ano passado e é um dos pontos fortes do álbum. Fundado no beat de “Everybody Wants To Rule The World” e na sequência de acordes de “Head Over Heels”, intenso e incessante, é o sumário perfeito deste maravilhoso novo disco dos Tears For Fears.
A obra-prima de "The Tipping Point" é, contudo, o já referido “Please Be Happy”. Um filme de Béla Tarr em forma de canção. Uma chapada de mortalidade. Depois da demo proibida de Roland em 2017, “Please Be Happy” aparece aqui numa versão decalcada da original, mas agora com a voz de Curt, cuja entrega é também em tudo semelhante à de Roland. É como se este tema fosse de tal forma pessoal, que Roland não quis que o público o ouvisse com a sua voz. Ao introduzir o tema em Hackney, o mais literal de todos sobre o inferno que passou com a espiral destrutiva da sua mulher, Roland desatou a chorar. Naquele momento, quis dizer-lhe que estava tudo bem. Que a música dos Tears For Fears fora sempre sobre a luta contra a dor e deitar tudo cá para fora (“let it all out”). É por isso que se chamam Tears - For - Fears. É música visceral, da víscera do músico, para a víscera do ouvinte. Se alguém percebe o Roland, somos nós, os ouvintes, que o seguimos desde sempre, a lutar contra a nossa dor usando a sua música como antídoto. Nós percebemos. Achei que o Roland precisava de ouvir isso, mas não tive oportunidade de o dizer naquela noite.
E eis que chegamos a Sexta-Feira, 25 de Fevereiro, dia do lançamento oficial de "The Tipping Point". Acordo com o anúncio de uma imperdível sessão de autógrafos dos Tears For Fears na hmv do Westfield — um centro comercial no Oeste de Londres. Agarrei no meu vinil de "Seeds Of Love" e no fim do dia, lá fui eu com uma pilha de nervos para o Westfield. Conhecem aquele ditado que diz que nunca devem conhecer os vossos heróis? Esqueçam lá isso. Quando vi o Roland, disse-lhe tudo aquilo que não pude dizer em Hackney. A resposta dele fica comigo. No fim, sussurrei-lhe "não digas nada ao Curt, mas o meu álbum favorito é o "Raoul And The Kings Of Spain" [disco de 1995, sem Curt Smith]". Roland riu-se, pôs a mão ao lado da boca para Curt não ver e disse baixinho "o meu também!". Foi um momento bonito com um dos meus heróis, que vou guardar para sempre.
Apesar das boas impressões que tirei da listening party do início da semana, foi só quando tive o disco na mão e o pude ouvir do princípio ao fim, uma e outra vez, sem conseguir parar de virar o prato, que percebi o fio condutor de "The Tipping Point". Curt tinha razão — só fazia sentido lançar um disco dos Tears For Fears, se este disco tivesse algum sentido. Um disco catártico sobre perda, luto, dor e superação. Vive independente de todos os outros discos dos TFF, estilística e sonicamente, na velha tradição do espólio da banda, como referi no início do texto. A linha que conecta todos os pontos desta imaculada discografia é precisamente o nível de profundidade e de intensidade da música, que vibra num comprimento de onda diferente da música Pop habitual. Quem conhece os Tears For Fears para além da rama dos seus êxitos, sabe bem disto. Esqueçam o passado. Os Tears For Fears são uma grande banda hoje. Neste momento. Em tempo de guerra, "The Tipping Point" é o disco que o mundo precisa ouvir.
P.S.: Se quiserem ouvir um resumo da carreira dos Tears For Fears, nao deixem de ouvir o podcast do London Calling desta semana.