domingo, 30 de junho de 2019

Lena D'Água está volta com um lote de canções de macramé

"Desalmadamente", o regresso triunfal da nossa menina

Uma das maiores revelações deste ano vem de uma artista cuja carreira discográfica começou há 40 anos. Parece estranho, eu categorizar como revelação alguém que tem mais anos de música do que eu de vida. Mas o novo disco de Lena D'Água é muito mais do que uma mera nota de rodapé nos lançamentos da semana. É o regresso triunfal de um ícone da cultura portuguesa, que adoptámos nos anos 80 como a nossa menina e depois largámos à sua sorte. Ela está de volta, melhor que nunca.

Filha do mais elegante levantador de taças da História, foi em 1979 que, ainda sob o nome de Maria Helena Águas, lançou o seu primeiro álbum de música infantil "Qual É Coisa Qual É Ela?". Dona de uma voz de menina e uma carinha angelical, a Maria Helena passou a Lena d'Água e na década de 80 conquistou as tabelas e os corações dos portugueses. Teve uma carreira ultra-prolífica naqueles 10 anos, tanto a solo, como na Salada de Frutas e na Banda Atlântida e assim se tornou numa das estrelas Pop que mais brilhou no nosso país. Depois, veio "a porcaria da droga" e a nossa menina perdeu-se. E nós esquecemo-nos dela.

Fast-forward para 2019 e a Lena está de volta com "Desalmadamente" — o seu primeiro álbum a solo de originais desde "Tu Aqui" de 1989. E como eu disse no início, é uma revelação. "Desalmadamente" é um disco sonhador e quase autobiográfico. "Quase" porque, na verdade, foi escrito por Pedro da Silva Martins dos Deolinda. Pedro tricotou um lote de canções de macramé, especificamente para a nossa menina, com um carinho que é audível nestas gravações. Há que tirar o chapéu ao grupo de músicos que ajudaram a Lena a ser um furacão outra vez — Francisca Cortesão, António Vasconcelos Dias, Mariana Ricardo, Benjamim e Sérgio Nascimento. Num disco de influências diversas no espaço e no tempo, eles foram várias bandas diferentes, mudando a bússola da máquina do tempo consoante o que a canção pedia.




São vários os destaques do álbum. Começo pelo mais óbvio, o single de avanço "Grande Festa". Todos os superlativos se aplicam. Num tema que parece retirado das sessões de "Parklife" dos Blur, eu ia jurar que ouvia o Graham Coxon na guitarra. Mas pelos vistos não. É a Francisca e o António. E aquele órgão delicioso que conduz o tema, esse é do Benjamim. Música produzida em 2019, mas de aroma intemporal.

E por falar em intemporalidade, que dizer do tema de abertura "Opá", com uma introdução de embalar que evoca o início de carreira da Lena, num dos temas mais fortes do álbum. A história da sua vida é espelhada em "Queda Para Voar": "Cheguei, subi para o palco e caí no chão e aplaudiram a minha canção". Impossível não sorrir à ironia deste tema. "Minutos" é outro dos meus grandes favoritos, um tema que junta uma linha de órgão que parece levantada do "Closer" dos Joy Division a um solo de saxofone urbano dos Destroyer. Junta-se a voz delicada da Lena e todo este tricot resulta numa manta de luxo.

Que revelação, é este "Desalmadamente". Ao fim de 6 meses, é difícil encontrar na Pop de 2019, nacional ou internacional, algo que sequer se aproxime remotamente de algo como a "Grande Festa". Para quem teve que se submeter recentemente ao novo álbum da Madonna, voltar a ouvir a "Grande Festa" significa perceber com toda a clareza de que lado é que se encontra a verdade. Para mim, é até ver o tema Pop do ano. De longe.

domingo, 23 de junho de 2019

Madonna contra Bruce Springsteen — A grande batalha nas tabelas da última semana

The Queen vs. The Boss — A batalha que colocou os fãs da Madonna contra Bruce Springsteen

Talvez não se tenham apercebido, mas na última semana deu-se uma das maiores batalhas das tabelas dos últimos anos — Madonna contra Bruce, The Queen vs. The Boss. Normalmente as editoras têm o cuidado de evitar que lançamentos de artistas que almejem o primeiro lugar da tabela coincidam na mesma semana. Mas desta vez calhou que ao mesmo tempo, na sexta passada, Madonna decidiu lançar o seu luso-perfumado (mas pouco) "Madame X" e Bruce Springsteen tirou da gaveta o seu álbum perdido "Western Stars". Os dias que se seguiram viram uma batalha feroz nas trincheiras.

Ambos os álbuns foram recebidos com alguma surpresa. "Western Stars" foi uma obra-prima inesperada — um disco que Bruce foi guardando desde 2011, inseguro sobre a reacção do seu público, mas que acabou por ser aclamado pela crítica e pela maioria dos fãs. Já dissertei extensivamente sobre "Western Stars" na crónica da semana passada.

Já "Madame X" foi o típico álbum "late period" da Madonna — um disco que colecciona as "novas tendências" dos últimos 5 anos, numa tentativa desesperada da Rainha da Pop em se manter relevante e em coleccionar mais uns hits. A Madonna, concedo-lhe o feito de se ter conseguido manter relevante ao longo de quatro décadas numa cena tão fugaz como a música Pop (e por isso ainda lhe é concedida tanta atenção, bem como planos de estacionamento especiais pela EMEL). O problema é que esta fugacidade em 2019 é exponenciada pela velocidade com que as ondas vão e vêm. No passado, Madonna foi-se rodeando dos produtores da moda, conhecedores do que fervia por entre a audiência teen, para lhe darem a receita dos hits que sempre perseguiu. Hoje em dia, com as mudanças na paisagem cultural a serem conduzidas por fenómenos virais, o espaço de uma artista com o peso da Madonna é ainda mais limitado. Imagino que ela esteja à espreita do que as filhas estão a ouvir e sendo a Madonna, pode ligar ao produtor de uma determinada faixa e pagar-lhe o voo para estarem a gravar no dia seguinte. Mas com o tempo que demora a manejar uma estrutura pesada como a do lançamento de um álbum novo da Madonna, quando ele chega às ruas, já a tendência mudou uma série de vezes. No caso de "Madame X", o resultado é uma almálgama de sonoridades desconexas que não soam nem particularmente actuais, nem particularmente passadas, mas que acima de tudo, não soam particularmente harmoniosas. E qual é a ideia do uso profuso de adereços vocais como o vocoder? A Madonna é reconhecida primeiramente pela sua voz. Sou particularmente adverso a temas onde canta como se estivesse a mastigar uma sandes de presunto ("God Control"). Mas divago.

Os lançamentos dos discos foram muito diferentes. Bruce apresentou "Western Stars" timidamente, quase como que envergonhado do que poderiam dizer dele. Não houve nenhum anúncio de uma digressão a solo ou com a E Street Band para promover o álbum. Pior que isso, Bruce anunciou de forma apologética a intenção de lançar um álbum e ir para a estrada com a sua banda para o ano que vem, ainda antes do lançamento de "Western Stars", como se este álbum fosse algo de somenos. Já Madonna apareceu no Festival da Eurovisão e a juntar à sua máquina publicitária, ainda anunciou a Madame X Tour, com 48 datas nos Estados Unidos e 31 datas na Europa (incluindo 6 no nosso Coliseu dos Recreios e 15 aqui no London Palladium). E foi aqui que ela sacou do seu Ás de trunfo — o ticket bundling — isto é, todos os bilhete vendidos (pelo menos nos EUA e no UK) incluíam uma cópia do seu novo álbum "Madame X". Isto significa que a venda de cada bilhete conta como a venda de uma disco.

As digressões sempre foram utilizadas com o objectivo final de promover um disco novo. Mas nesta era em que os artistas ganham mais com as digressões do que com os álbuns, a ordem dos factores reverteu-se. A verdade é que o "ticket bundling" não é original, nem exclusivo de Madonna. O truque já tem alguns anos e é utilizado com frequência pelos artistas de maior nomeada, de modo a facilitar o caminho para o primeiro lugar das tabelas. Mas não faz muito sentido. Grande parte do público quer ir ao concerto para ouvir os hits antigos e não quer saber do último álbum para nada; esses vão ficar com um disco que nunca vão ouvir. Já os verdadeiros fãs do artista, aqueles que não podem esperar, esses já têm o álbum de qualquer forma e vão agora ficar com duas cópias do mesmo disco. Por outro lado, dá também uma vantagem virtual (e injusta) nas tabelas.

Foi precisamente assim que "Madame X" começou a última semana. Com um avanço enorme sobre todos os outros. Só que quando os álbuns chegaram ao juízes que realmente decidem o andamento das tabelas — o público — a maré começou a virar. O hype do novo álbum da Madonna deu-lhe a liderança automática no iTunes e na Amazon na sexta-feira de manhã, mas a meio do dia, já era Bruce quem liderava.

E foi aí que começámos a assistir a cenas incríveis nas trincheiras desta batalha, algo que passou aparentemente despercebido aos mass media, mas que eu não via desde a famosa batalha entre os Oasis e os Blur nos mid-90s. Na tentativa de salvar a sua rainha, os fãs da Madonna começaram a acorrer às plataformas virtuais de venda, desde o iTunes até à Amazon, para deixar reviews de 1 estrela a "Western Stars" com o grito de guerra: "Buy Madame X". Alguma noção é precisa, caros fãs da Madonna.


Foi assim toda a semana. Bruce a recuperar paulatinamente da desvantagem inicial até à liderança em quase todos os mercados. Vejamos então a posição final de "Madame X" e "Western Stars" nas tabelas cujo resultado já é conhecido:

  • Reino Unido: Bruce #1; Madonna #2
  • Irlanda: Bruce #1; Madonna #8
  • Escócia: Bruce #1; Madonna #4
  • Itália: Bruce #1; Madonna #2
  • Alemanha: Bruce #1; Madonna #5
  • Holanda: Bruce #1; Madonna #2
  • Bélgica (Valónia): Madonna #2; Bruce #3
  • Bélgica (Flandres): Bruce #1; Madonna #2
  • Finlândia: Bruce #3; Madonna #7
  • Suécia: Bruce #3; Madonna #10
  • Noruega: Bruce #1; Madonna #6
  • Austrália: Bruce #1; Madonna #2
  • Nova Zelândia: Bruce #1; Madonna #5
Como podemos ver, as tabelas até agora dão a vitória a Bruce Springsteen em quase toda a linha. Faltam ainda alguns resultados importantes, como o de França (Madonna tem 10 datas no Grand Rex, em Paris), o de Portugal (que Madonna deve ganhar facilmente) e claro, o dos Estados Unidos. As primeiras notícias dão conta de uma vitória tangencial de Madonna em casa, por apenas 25 mil cópias. O que na prática significa que Madonna não vendeu mais álbuns, mas com a ajuda dos bilhetes e do "ticket bundling", pode agora dizer que o seu álbum foi número 1 nos EUA. Uma vitória pírrica, portanto.

Há várias reflexões a fazer aqui. Em primeiro lugar, o facto de estarmos a falar numa batalha entre dois artistas que tiveram o seu auge comercial há 35 anos significa que nos faltam ícones hoje para despoletar o mesmo nível de paixão; aquela cegueira que faça fãs irem insultar o álbum de outro artista só para defender a sua dama. E mais que isso, este truque do "ticket bundling", que é mais um sinal de aviso que os miúdos não estão a comprar discos. Ainda há poucas semanas tivemos o Ed Sheeran a esgotar a Luz por duas noites e a regressar ao topo das tabelas em Portugal com um álbum que lançou há dois anos. É ele quem carrega a tocha de saber o que fazer nos dias de hoje e levar os miúdos a comprarem discos outra vez. Mas se é no Ed Sheeran que depositamos todas as nossas esperanças, então estamos condenados.

domingo, 16 de junho de 2019

Era uma vez no Oeste — "Western Stars", o maravilhoso novo disco de Bruce Springsteen

Hoje à noite, as estrelas do Oeste vão brilhar outra vez

Que maravilhosa surpresa. Aos 69 anos, numa altura que já poucos esperavam, Bruce Springsteen volta a sacar de um clássico para o seu reportório e cimenta a sua posição como o melhor contador de histórias do último século. O Boss já nos acompanhou na fuga da raízes, já nos levou à orla da cidade e já nos conduziu pelo rio abaixo. Agora, em "Western Stars", Bruce senta-nos no banco do pendura da sua pick-up e dá-nos boleia rumo ao Oeste americano, com mais um set de histórias de vidas mundanas, embrulhadas num álbum rico, polido e cinemático.

"Western Stars" é o disco mais cinemático da discografia de Bruce Springsteen desde "Nebraska" de 1982. Mas se a paisagem de "Nebraska" era lúgubre, como um filme de Béla Tarr; as imagens evocadas por "Western Stars" são vibrantes, como um filme de Wes Anderson. Bruce descreveu este álbum como "a jewel box of a record" ("uma caixa de jóias de disco") e eu, que confesso, duvidei do entusiasmo do Boss, hoje confesso que não encontro melhor descrição para o seu décimo nono álbum de originais.

Há um pouco de toda a carreira de Bruce em "Western Stars": ouve-se a América de "The Rising" em "Tucson Train"; as histórias de "Tunnel Of Love" em "Western Stars" e "Moonlight Motel"; a atmosfera de "Devils And Dust" em "Drive Fast (The Stuntman)" e "Somewhere North of Nashville"; a inocência de "E Street Shuffle" em "Sleepy Joe's Cafe"; a riqueza de "Working On A Dream" em "There Goes My Miracle", "Sundown" e, na verdade, um pouco por todo o álbum. "Western Stars" é o sucessor natural do cânone sonhador de "Working On A Dream" (2009), o que faz todo o sentido, uma vez que este lote de canções remonta a esta altura.



"Western Stars" é lançado em 2019, mas a sua génese é antiga e o seu espírito ainda mais remoto. Segundo o que Bruce foi adiantando nas suas entrevistas ao longo dos anos, a ideia de um álbum de histórias do Oeste terá nascido antes do ano 2000, por alturas da Reunion Tour com a E Street Band. As gravações terão começado em 2010, depois da Working On A Dream Tour (2009) e das sessões de "The Promise" (2010), tendo o álbum sido sucessivamente posto na gaveta em detrimento de projectos (agora sabemos) inferiores, como "Wrecking Ball" (2012) e "High Hopes" (2014).

Bruce estava inseguro relativamente à reacção do seu público a "Western Stars" e com alguma razão, diga-se. A fanbase de Bruce é muito exigente, espera sempre que Bruce saque de um novo "Born To Run" e nunca fica satisfeito com menos que isso. Mas Bruce já não tem 20 anos e já não quer fugir da sua cidade natal (como contou em "Sprinsgteen On Broadway" (2018), agora vive a 10 minutos da casa onde nasceu). Por estes dias, ele quer pegar na sua pickup e contar as histórias das vidas perdidas que foi encontrando ao longo dos anos. E quer fazê-lo com a roupagem das canções da Pop sul-californiana do início dos anos 70, que despoletaram a sua imaginação quando ele era miúdo. É um álbum arriscado, que rompe com a estética clássica dos seus discos com a E Street Band, mas é ao mesmo tempo um álbum deliciosamente familiar. Bruce faz leves acenos ao seu passado, num álbum firmemente ancorado na eternidade. 

Os arranjos orquestrais são tão quentinhos e aconchegantes que só apetece abraçar a música. Mais que isso, estes arranjos opulentos conferem a "Western Stars" um estatuto de intemporalidade. O álbum foi lançado na sexta, mas após 5 audições, parece que estas canções estiveram sempre aqui. São canções que contam histórias de vida como a minha e vossa. São canções que, nestes tempos de divisão, chegam para nos juntar. São canções que, nestes tempos pesados, nos visam aliviar. Para todos nós que sentimos o peso do trabalho, das contas e de todos os problemas da vida, este álbum é um bálsamo que nos levanta o peso das costas.



Bruce usa a qualidade cinemática de "Western Stars" para desmistificar o mito cultural moribundo do sonho americano. No epílogo do álbum, o herói, incapaz de satisfazer as exigências do compromissos domésticos e da sociedade ("bills and kids and kids and bills"), entra na sua pickup e faz-se à estrada rumo à escuridão ("where nobody travels and nobody goes"), fechando assim o círculo de "Nebraska". Ele chama-nos à terra, com as suas histórias de heróis comuns com vidas partidas; e ao mesmo tempo, consegue pôr-nos a olhar para as estrelas.

Eu estou tão feliz com este álbum, que só me apetece abraçar o Bruce e assegurá-lo que está tudo bem; dizer-lhe que não há razão para inseguranças e que todos aqueles álbuns que ele tem na gaveta podem vir cá para fora. Depois de "Wrecking Ball" e "High Hopes", confesso que já temia que ele tivesse perdido a sua musa. Queria muito que este álbum fosse bom. Foi muito melhor do que eu esperava. Obrigado, Bruce.

P.S.: Este é apenas um dos projectos que Bruce Springtseen tem na calha para os próximos tempos. Bruce já revelou que tem pronto um lote de canções para gravar com a E Street Band e para lançar num álbum em 2020. Antes disso, ainda em este ano, a quadra natalícia deverá trazer-nos uma nova mega-caixa com gravações antigas, que vai suceder a "Tracks" de 1998. Este ano é também o 35º aniversário de "Born In The U.S.A." (1984) e o material que foi gravado nessas sessões é tanto, que vai certamente acontecer uma caixa expansiva do álbum, à semelhança do aconteceu com "Born to Run: 30th Anniversary Edition" (2005), "The Promise: The Darkness on the Edge of Town Story" (2010) e "The Ties That Bind: The River Collection" (2015). Se quiserem ter uma ideia do que ficou para trás nas sessões de "Born In The U.S.A" e do que poderia ser um segundo disco deste álbum, ouçam o podcast do London Calling — Murder Incorporated – O segundo disco de Born In The U.S.A..

terça-feira, 4 de junho de 2019

"Rocketman", o filme que é tudo aquilo que "Bohemian Rhapsody" não conseguiu ser

O musical mais esperado do ano visto à lupa por um fã do Elton... e dos Queen


"I don't live my life in black and white!", atira Elton John à sua mãe, numa das cenas-chave de "Rocketman" que define o tratado do filme e de toda a vida de Elton. E que também resume a diferença fundamental entre "Rocketman" e "Bohemian Rhapsody".
Saídos do berço do mesmo realizador — Dexter Fletcher — com menos de um ano de diferença, as comparações entre "Rocketman" e "Bohemian Rhapsody" são inevitáveis. Começando logo pela base do enredo que, se substituirmos Freddie por Elton e Bernie Taupin pelos restantes Queen, é inusitadamente similar. Nada que eu não estivesse à espera, diga-se (não fiquei muito longe na minha aposta para o plot) — Fletcher encontrou uma fórmula ganhadora e não mexeu. Mas as semelhanças com "Bohemian Rhapsody" não vão muito além da superfície. Se escavarmos mais um pouco, percebemos que há muito mais profundidade em "Rocketman".

Disse logo que confiava muito mais em Elton John para contar a sua história, do que em Brian May para contar a história dos Queen, e o Captain Fantastic não me desapontou. Brian é demasiado cuidadoso com o seu "legado". A porra do legado — essa dimensão fantasiosa onde tudo é limpinho e lavadinho; os bons são muito muito bonzinhos; os maus são uns grandes grandes mauzões; e tudo é preto ou branco. Não há nuances, não há tons de cinzento. Mas para quem tinha dúvidas, Elton afirma cabalmente – "eu não vivo a minha vida a preto e branco". Assim também eram os Queen, pelo menos até 1982.

A preocupação da defesa do legado de Elton John nunca se pôs verdadeiramente, uma vez que ele fez a sua carreira vivendo precisamente do factor choque. Basta olha para os fatos que Elton desde cedo adoptou para a sua persona de palco (retratados na perfeição no filme); ou pensar nos escândalos constantes que enchiam os tablóides nos anos 70 e 80 (também mencionados no filme). Elton nunca foi de se resguardar e "Rocketman" mostra que toda esta sede de exposição pode ser rastreada até aos pais. Elton viveu uma infância contraída de afecto e isso deixou-lhe marcas que o feriram para toda a vida, mas que também criaram este monstro de palco extrovertido e extravagante, que mais não é que uma busca para compensar défices de atenção do passado. Elton põe o dedo em todas estas feridas ao longo de "Rocketman" n um filme onde tem a coragem de expor o seu passado sem medos, mas onde também toma algumas liberdades para fazer alguns ajustes de contas. Lá chegaremos.

Antes de mais, tenho que deixar aqui um aviso — eu odeio musicais. Admito que isso possa estar relacionado com alguma ansiedade social da minha parte, mas sinto-me sempre desconfortável quando vejo uma cena dramática transformar-se numa performance coreografada da Broadway. Regra geral, parece-me desnecessário e violador da acção e do ritmo do filme. Mas isto sou eu, que não costumo ter vontade de desatar a cantar quando estou a meio de uma discussão acesa. Por outro lado, este é um filme sobre o Elton John, o personagem mais campy e ultrajante da história da música. Se há um filme onde este tipo de violação pode ser permitida, é o filme sobre um homem a quem sempre tudo foi permitido. Com uma nuance acrescida — Elton conseguiu safar-se com uma carreira plena de transgressões, polémicas e outfits escandalosos, sem nunca deixar de ser family friendly. Talvez porque nunca deixou de lado aquele sorriso de miúdo que lhe é tão característico. E isto terá muito a ver com a tal infância que não lhe sorriu.

O sorriso ubíquo de Elton é peça central em "Rocketman". Ele é sublinhado noutra das cenas-chave do filme quando, antes de entrar em palco no Royal Albert Hall, Elton liga à mãe para lhe revelar que é "Homossexual! Bicha! Paneleiro!" e ela o avisa que escolheu uma vida em que nunca vai ser amado "devidamente" (imagino que ela tenha usado mesmo a palavra "properly", ipsis verbis, uma vez que é repetida no fim do filme, mas em retaliação). Como se não bastasse, Elton leva um murro do homem que amava — o seu empresário, John Reid (já lá vamos) — e ainda discute com o seu melhor amigo de sempre — o adorável Bernie Taupin (já lá vamos também) —, a quem grita "escreve as letras e eu tomo conta do resto!". Mesmo com a sua vida a desabar, Elton nunca deixa de ser Elton e como tal, vestiu um dos seus fatos extravagantes, rasgou o sorriso e entrou no Royal Albert Hall para mais um concerto de levantar o tecto. Como disse uma vez Herman, Elton é o maior profissionalão da história da música.



Todos os filmes precisam de um vilão e em "Rocketman", cabe a John Reid esse papel. Reid é superiormente interpretado por Richard Madden (o Robb Stark, de "Game Of Thrones") e passa aqui por um empresário frio e ninfomaníaco, que seduz e depois trai Elton, sem nunca ser capaz de o amar. A realidade é um pouco mais complexa que isso. Se viram "Bohemian Rhapsody", recordar-se-ão que o mesmo John Reid (aí interpretado por Aidan Gillen, o Littlefinger de "Game Of Thrones", go figure!) é quem leva os Queen ao estrelato e depois é despedido num mal entendido com Paul Prenter (numa das muitas estupidificações que percorrem todo o filme). Na realidade, John Reid viveu com Elton 5 anos, entre 1970 e 1975, numa relação que, digamos assim, foi o mais estável que uma relação pode ser quando uma das partes é o Elton John. Eles separaram-se de facto em 1975, data que bate certo com o filme, quando Elton confessa ter começado a comportar-se como uma besta. Mas a verdade é que Elton e Reid mantiveram-se inseparáveis profissionalmente até 1998 quando, aí sim, John Reid traiu Elton, mas no campo financeiro. "Rocketman" faz um ajuste de contas com o antigo manager de Elton e para tal, reajusta os factos a favor do protagonista.  Note-se que Reid foi inclusive o padrinho de Elton no seu casamento de fachada com Renate Blauel em 1984 — casamento esse que no filme parece ter lugar algures entre 1979 e 1980, na ressaca do seu absoluto nadir discográfico (o álbum "Victim Of Love"),  numa das várias "afinações temporais" do filme.

Por falar em afinações temporais, quem é que acreditou que Elton entrou no concerto que mudou o rumo da sua carreira, sem conhecer a sua própria banda? Espero que ninguém. Como é óbvio, Elton já conhecia e tocava com o baterista Nigel Olsson e o baixista Dee Murray há vários meses e quando entraram no Troubador, já tocavam de olhos fechados. Elton ainda não tinha um guitarrista na altura, sendo que Davey Johnstone só ingressou na banda em 1972. Tanto Davey, como Nigel, ainda hoje fazem parte da Elton John Band (Dee morreu em 1992). Os membros da banda de Elton são meros figurantes no filme.

Outra daquelas afinações que fazem comichão a um fã é ver Elton apresentar "Daniel", "I Guess That’s Why They Call It the Blues" e "Sad Songs Say So Much" a Dick James em 1967, quando estes temas só iriam ser gravados em 1972, 1982 e 1983, respectivamente. Se era para mostrar baladas da altura, por que não "Skyline Pigeon", "Sixty Years On", ou "Border Song"? É daquelas coisas perfeitamente desnecessárias. E se quisermos ser mesmo minuciosos, é preciso apontar que "Crocodile Rock" não podia ser tocado no histórico concerto do Troubador em 1970, uma vez que só foi gravado em 1972.




A razão destes ajustes temporais é, na verdade, muito simples — Elton quis cingir-se aos êxitos em "Rocketman", uma vez que o principal objectivo do filme é mostrar as jóias do seu reportório para cativar a audiência mais nova. Eu teria preferido que ele fosse historicamente acurado, mas consigo viver com estes ajustes, desde que a densidade dos personagens compense. E se compensou.

Taron Egerton é fenomenal como Elton. Ao contrário de Rami Malek, o seu treino de Elton não se limitou a uma dentadura e uma coreografia. Começando logo pelo facto que Taron cantou, ele mesmo, as músicas de Elton; e não envergonhou ninguém. Mas mais importante ainda, Egerton mergulhou a fundo na personalidade de Elton, captou-lhe as nuances e conseguiu assim despejar no espectador o tremendo sofrimento por que Elton passou nos seus anos de desgraça, na segunda metade dos anos 70 e primeira dos 80. Neste período, Elton lidou com a exaustão, depressão, solidão e alienação (ouçam esta playlist para mais sobre o assunto). O filme não foge a nada disto

A cena do reencontro com o Pai é tão pessoal que a sua visualização se torna um exercício penoso. Para quem, como eu, tem um sentido familiar muito forte, ver o pai de Elton agarrar nos seus novos filhos, quando tudo o que Elton queria era um abraço do Pai é devastador. Ver a cara do Elton, quero dizer, do Taron, a olhar para aquela cena tira qualquer um do sério. Só esta cena faz valer o filme. Os manos do Elton têm uma opinião diferente acerca do que aconteceu, mas que importa? Foi assim que Elton se sentiu e este é o filme de Elton.

Mas nem todos foram maus com o pobre Elton. Todos os heróis têm um sidekick e o de Elton é o seu amigo de sempre, Bernie Taupin. Todos os que temos a sorte de ter um amigo a sério, sabemos reconhecer o valor a Bernie. Bernie tem em "Rocketman" o seu momento de glória, o reconhecimento de uma lenda que sempre viveu na sombra de Elton, mas sem quem Elton não teria existido. A relação entre os dois sempre foi muito especial. Apesar de terem um processo criativo sempre totalmente separado — com Bernie a escrever as letras sozinho e Elton, depois, a criar a música a partir das emoções que os poemas de Bernie lhe evocam —, a verdade é que Elton serviu de musa de Bernie por inúmeras vezes ao longo dos anos. Bernie escrevia sobre o ordálio que via Elton passar e por isso mesmo tantas das suas canções parecem autobiográficas, apesar de não serem escritas por ele. É o caso de "Idol", um tema que resume a vida e a carreira de Elton, especialmente do seu período negro e que escandalosamente não figura no filme. Ou então "Ego", que ilustra como nenhum outro a relação criativa entre ambos — um tema acusatório que Bernie escreveu aquando da sua separação com Elton e que Elton gravou e lançou em single (!) antes de embarcar nos seus projectos extra-Bernie. Pena não termos ouvido isto no filme. Mas claro está, a prioridade eram os hits.

O filme termina com uma maravilhosa semi-reconstituição do fantástico videoclip de "I'm Still Standing" (um dos meu favoritos de sempre) que, como eu previ aqui há meses, fecha o filme como a grande reviravolta na carreira de Elton (que o foi, de facto), em 1982.


https://www.youtube.com/watch?v=ZHwVBirqD2s

Continuo a odiar musicais, mas "Rocketman" é o melhor musical que eu já vi. E é tudo aquilo que "Bohemian Rhapsody" não conseguiu ser — honesto, infame e explícito. Elton quer contar a sua história, mas fá-lo à sua maneira — sem filtros. Com sexo homossexual e cocaína em barda, Elton não deixa nada por dizer, nem nada para mostrar. E continua sem se importar muito se acham isso mal.